domingo, 4 de dezembro de 2011

Irei cuspir-vos no túmulo.





Desde 1988, a comunidade LGBT norte-americana celebra o National Coming Out Day. A 11 de Outubro, todos os anos, festeja-se quem decidiu assumir publicamente a sua orientação homossexual. O livro de São José Almeida, Homossexuais no Estado Novo (Lisboa, Sextante Editora, 2010), é o sucedâneo português do Coming Out Day. Corajosamente, a autora assume a homossexualidade. Dos outros. Outros que já morreram. E que, em vida, nunca assumiram a sua orientação sexual. Estavam no seu direito, ou não? Pelos vistos, não.
Antes de lançar mãos a este poderoso trabalho de investigação, a autora confessa-nos que já tinha «lido umas coisitas sobre história» (p. 22). Daí a escrever um livro de História vai um passo. Um passo curto e ligeiro, um passinho que São José Almeida dá tranquila e lestamente, sem se interrogar, por um segundo sequer, se era moralmente legítimo escrever o que escreveu. Será eticamente correcto, será justo para com os hetero- ou homo-, do salazarismo ou da democracia, da monarquia ou da república, proclamar aos quatro ventos a sua orientação sexual? Não, não é justo. E mais do que isso: não é justo fazê-lo em letra de forma, em livro publicado e premiado, sem lhes dar sequer a oportunidade, a eles ou aos seus herdeiros (nunca entrevistados), de contestarem ou confirmarem a veracidade dos testemunhos ou confidências de terceiros, que a autora elege como fonte principal, senão mesmo exclusiva, deste seu manifesto-panfleto travestido de obra de investigação histórica.
Não se discutem as intenções de São José Almeida, certamente generosas. Contesta-se o produto do seu trabalho, inquestionavelmente desastroso. Homossexuais no Estado Novo é um livro pidesco e tirânico, um livro totalitário e desleal à dignidade alheia, que desrespeita a memória indefesa daqueles que, em vida, resguardaram o que de mais íntimo tinham, a sua privacidade, réstia de liberdade escassa num país oprimido e sufocante. Além disso, e por muito paradoxal que tal possa parecer, este é um livro homofóbico. Vamos a ele. Vamo-nos a ele.  
Convém dizer, antes de mais, que a gravidade moral desta empresa jornalístico-historiográfica é adensada por um facto singelo, mas decisivo: na sua esmagadora maioria, as fontes orais a que recorreu São José Almeida reservaram para si o absoluto anonimato. «O que está nestas páginas é […] fruto da recolha de depoimentos de pessoas que são homossexuais e que me deram o privilégio de me confiar as suas experiências, conhecimentos e reflexões, a grande maioria das vezes sob reserva de absoluto anonimato» (pág. 23, itálico acrescentado). Por outras palavras, os homossexuais que falaram com São José Almeida salvaguardaram a sua intimidade. Mas não tiveram pudor em revelar a intimidade de terceiros, já falecidos, sem que a estes, como é evidente, haja sido dada a possibilidade de contraditarem (ou confirmarem) o que sobre eles é dito. Fizeram sair do armário gente morta e indefesa, mas mantiveram-se lá dentro, acobertados, no calorzinho confortável da sua vidinha «normal». E isto, note-se, em tempos democráticos, onde a tolerância social face à homossexualidade é muito maior. Mesmo agora, em nossos dias, muitos optaram pelo anonimato. Que alguém não queira assumir em público a sua orientação sexual é perfeitamente legítimo. Mas quem assim procede não pode – ou não deve – dizer que Beltrano e Sicrano eram homossexuais.
De tudo isto o que resulta não é investigação, é delação. Os informadores da PIDE não procederiam melhor – ou pior. Um boçal agente de 2ª classe da polícia política poderia perfeitamente ter alinhavado este livrito, aos serões de piquete passados na António Maria Cardoso. O mais extraordinário é que a autora, uma jornalista experiente com décadas de carreira, não haja percebido esta evidência tão simples. O mais grave é que tenha escrito um livro que dá cobertura à mais cruel das tiranias, a que se dissimula sob as vestes da defesa da liberdade. Liberdade para uns, que se escondem atrás dos arbustos do anonimato; tirania para outros, que ademais estão mortos. 
É extenso o rol apresentado no livro. Quanto a lésbicas, são chamadas ao palco, queiram ou não queiram, a escritora Irene Lisboa, as feministas Alice Moderno, Olga Moraes Sarmento e Palmira Tito de Morais, Virgínia Quaresma, as poetisas Maria da Cunha Zorro e Natália Correia, a pintora Maluda, a actriz Irene Isidro. Amália Rodrigues constituía um caso singular: «era quanto muito bissexual» (pág. 120). Então, Dona Amália, qu’é lá isso? «Quanto muito bissexual»? «Quanto muito»? Que se passa consigo, Amália? Ficou-se nas encolhas e nas meias-tintas?
Sendo lésbicas ou não, há um denominador comum às várias mulheres referenciadas neste cadastro narrativo: é tudo gente morta. Irene Lisboa morreu em 1958, Alice Moderno em 1946, Palmira Tito de Morais em 2003, Virgínia Quaresma em 1973, Maria da Cunha Zorro em 1917, Natália Correia em 1993, Maluda em 1999, Irene Isidro em 1993. Várias, como se vê, morreram já depois do 25 de Abril, muito depois, podendo ter assumido mais livre, enfática e publicamente a sua orientação sexual. Não o quiseram fazer. Mas São José tratou bem delas, fê-las a todas saltar da toca. Cá p’ra fora do armário, vá, suas malucas, que isto de se andar a esconder no roupeiro é coisa bem feia e muito hipócrita.   
Ao Capítulo 6 entramos no closet masculino. De acordo com o depoimento do dirigente comunista Ruben de Carvalho, cuja autoridade nestas matérias desconhecemos qual seja, o Subsecretário de Estado da Presidência, Paulo Rodrigues, «era conhecido publicamente pelas suas relações homossexuais» (pág. 126). Também Pedro Feytor Pinto, responsável pelo Secretariado Nacional de Informação, «o António Ferro dos anos setenta», era «assumidamente homossexual» (pág. 126). Porém, nas suas memórias, recentemente publicadas (Na Sombra do Poder, Lisboa, 2011), Feytor Pinto não se revela, em lugar algum, «assumidamente homossexual». Aliás, em duzentas páginas de texto não dedica sequer uma linha à sua intimidade. E o «António Ferro dos anos setenta» está aí, vivo e lúcido, escrevendo memórias, dando entrevistas, aparecendo na televisão, proferindo conferências. Por que motivo não o contactou São José Almeida? Era o mínimo que se impunha, não apenas a uma historiadora como a uma jornalista digna desse nome: cruzar as fontes, confrontar testemunhos, ouvir os visados. Por que não falou a autora com Pedro Feytor Pinto?  
Homossexual era também Gustavo Cordeiro Ramos, «Ministro da Educação de Salazar» (já agora, uma rectificação: na época, a expressão correcta era «Ministro da Instrução Pública»). Gustavo Cordeiro Ramos, doutorado em Letras com uma tese sobre Fausto e nome grande da Mocidade Portuguesa, «levava meninos a uma pensão na Rua Jardim do Regedor» (pág. 126). Um amigo de Cesariny e fonte de São José Almeida, que para si reclamou o conveniente anonimato, diz que o infeliz Gustavo deixou de ser Ministro e passou a Presidente do «Instituto da Cultura» porque o «escândalo era já insustentável» (pág. 127). «A caminho do Ministério parava sempre num determinado urinol», acrescenta a fonte oculta. Onde ficava esse «determinado urinol», não é esclarecido. Mas, já agora, damos nós apenas dois breves esclarecimentos: em primeiro lugar, o nome do organismo era «Instituto de Alta Cultura» e não «Instituto da Cultura»; em segundo lugar, o doutor Cordeiro Ramos, ao contrário do que faz crer a anónima fonte da autora, não foi sumariamente despachado do Ministério da Instrução para o Instituto de Alta Cultura. É que entre a data de cessação de funções como Ministro e a criação do Instituto mediaram… três anos. Gustavo Cordeiro Ramos cessou funções em 1933 e o Instituto de Alta Cultura só foi criado em 1936. Desconhece-se em que urinol público se refugiou o ex-governante durante esse triénio.   
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Doutor Gustavo Cordeiro Ramos (1888-1974)
© R. Mapplethorpe. 


Senhores telespectadores, temos agora connosco o famoso escritor Fernando Dacosta, que nos adianta outra informação de grande relevo histórico: o doutor Gustavo Cordeiro Ramos, Ministro da Instrução da Ditadura Nacional, «frequentava, à tardinha, o urinol público existente no Príncipe Real» (pág. 127). Tinha, portanto, Sua Excelência o Senhor Ministro da Instrução Pública uma agenda diária bem preenchida: pelas manhãzinhas e às tardes, urinóis públicos nas idas e vindas do despacho em seu Gabinete; no entrementes, ele era com meninos numa pensão do Jardim do Regedor. Pouco tempo lhe restaria, ao que vemos, para sobraçar a absorvente pasta ministerial da Instrução Pública. É, aliás, sempre curiosa aquela referência a «meninos». Não se especifica a idade, nunca se clarifica se os «meninos» eram maiores ou menores, ficando-se com a difusa sensação que isto de homossexualidade e de pedofilia, no fundo no fundo, vai tudo dar ao mesmo sítio. Como se disse, este é um livro homofóbico, pelo que nada disto nos deve espantar.
Regressando a Dacosta, uma frase lapidar: «Salazar sempre viveu rodeado de gays» (pág. 127). O Estado Novo, que todos pensávamos ser um regime sensaborão e cinzento, constituía, afinal, um regabofe pegado de lésbicas e sodomitas. Ele era o rei Humberto de Sabóia (p. 127), ele era «uma filha de Augusto de Castro» (cujo nome nem se cita, claro, pois o que interessa é visar o pai), entrava também na farra o casal Amélia Rey Colaço & Robles Monteiro (ela, com jovens actrizes, ele mais virado para bombeiros (sic) – pág. 128). Na companhia de teatro que ambos dirigiam, pontificavam ainda como homossexuais os actores Sales Ribeiro e José de Castro, sendo que este último, coitadito, «não era assumido» (pág. 128). Trata-se de um pormenor que não incomoda a consciência de São José Almeida. O actor José de Castro não assumia a sua homossexualidade, mas São José Almeida fá-lo em seu lugar – e sem lhe pedir licença. Era difícil entrevistá-lo, reconhece-se: José de Castro faleceu em 1977. Mas terá deixado descendentes? Sim, é uma pergunta que se impõe. Muitos dos nomes citados no livro como homossexuais eram casados, tiveram filhos, netos, descendência directa ou colateral. Como se sentirá alguém se ler que o avô Felisberto Coelho Teles Jordão Robles Monteiro tinha uma predilecçãozita fogosa por sapadores bombeiros? E que a bisavó Amélia Schmidt Lafourcade Rey Colaço enfardava à bruta nas jovens actrizes lá da Companhia?  
No livro perpassa a ideia de que existiram homossexuais «maus» e «bons», consoante aderissem ou não ao regime. O título do capítulo 6 é, a este respeito, elucidativo: «Para os amigos, tudo, para os adversários, a lei». O que se pretende dizer, em direitas contas, é que os amiguinhos do doutor Salazar, que vivia «rodeado de gays» (Dacosta dixit), podiam dar largas à sua orientação homossexual, em pensões e urinóis (a alusão a locais sórdidos é recorrente no discurso homofóbico, sendo um dispositivo retórico clássico na degradação dos visados). Já os outros, em contrapartida, amargavam duramente a sua orientação em matéria de sexo.  
Em síntese, António de Oliveira Salazar, no fundo, no fundo, era um liberalão para os seus compinchas gay. Daí que Paulo Rodrigues fosse homossexual «publicamente» (Ruben de Carvalho dixit), Pedro Feytor Pinto «assumidamente homossexual» e Gustavo Cordeiro Ramos, enfim, um ver-se-te-avias de meninos em pensões e urinóis. O regime fechava os olhos ao facto de Robles Monteiro ter uma inclinação ardente por soldados da paz e de sua mulher, Amélia, se atirar forte e feio às actrizes mais novitas que se iniciavam nas artes de palco. Fernanda de Castro e António Ferro, outro casal-maravilha do Estado Novo, apadrinhavam um grupo que era «claramente um círculo de relações homossexuais» (pág. 128). Anafado e bonacheirão, Ferro protegia Leitão de Barros, que era homossexual, como homossexual era também um tal de Francis, bailarino famoso do Verde Gaio (pág. 129). A casa do declamador e actor João Villaret era conhecida por «Alfeite» (pág. 129), porventura devido à quantidade inusitada de marinhagem que por lá atracava a desoras. E, em 1952, lá temos a misteriosa morte de Carlos Burnay, descrita como «homicídio», sendo a vítima, claro está, «homossexual» (pág. 133).
Para que a narrativa mantenha o ritmo policiário, São José Almeida salta do caso da morte de Carlos Burnay para nos introduzir logo de seguida na história de uma outra misteriosa morte, ocorrida para as bandas de Sintra, na década de quarenta. Aqui, as coisas fiam mais fino. É que aqui, diz-nos a jornalista-autora, «à época, o caso foi abafado, mas na sociedade portuguesa correu a versão que atribuía a acção criminosa a um grupo de mulheres, que mantinham relações e encontros lésbicos e onde se destacava o nome da filha do então Presidente da República» (pág. 133). A seguir, na pág. 134, sabe-se lá por que bulas, São José Almeida avança a galope para o assassinato do padre Alberto Neto, em 1987, como se isto de homossexualidade e de homicídio andassem de mãos dadas, seja em ditadura, seja em democracia.
Bem, regressemos ao assassinato na Serra de Sintra, «ainda hoje envolto em absoluto mistério» (pág. 134), à semelhança do famoso escrito de Eça e Ramalho. Uma das versões que circulou na altura apontou para o envolvimento de um grupo de lésbicas que se reunia numa casa chamada «Chalet das Cotovias» (et pour cause). Do grupo lésbico faziam parte a já citada Fernanda de Castro e, atençãozinha!, «uma filha do Presidente Carmona». A fonte de São José Almeida é a jornalista Isabel Braga, «que se tem dedicado a investigar o caso».
Eis, portanto, que num caso de homicídio na Serra de Sintra nos surge inopinadamente a filha do Venerando Chefe do Estado, o General António Óscar de Fragoso Carmona (1869-1951). A filha de Óscar Carmona. Nem mais, nem menos. Toma lá, que é para ver como elas mordem e no melhor pano cai a nódoa, etc. e tal. O que falta dizer é que, além de um filho varão, Óscar Carmona tinha duas filhas, a Cesaltina Amélia e a Maria Inês. Conviria especificar qual era a suposta lésbica-assassina, já que ambas casaram e tiveram descendência. Cesaltina Amélia teve quatro filhos e Maria Inês casou três vezes, tendo três filhos dos dois primeiros casamentos. Ora, os descendentes têm o direito de saber se era a sua avó (ou, ao invés, a sua tia-avó) que alimentava devaneios sáficos e pertencia a um círculo tenebroso de senhoras que, apanhadas em flagrante delito, despacharam por atropelamento «um homem» na Serra de Sintra, mais precisamente na sinuosa estrada que vai de Sintra para Mem Martins. A leviandade é tanta que a autora nem se preocupou em saber o nome da vítima (por ex., consultando os jornais da época ou os arquivos policiais). E isso era importante. Porquê? Porque a historieta que nos conta diz que a vítima (descrita com «o homem») seguira a irmã até ao chalet sintrense e, deparando-se com uma «situação inusitada» (sic), teria ameaçado contar à família. Um queixinhas desmancha-prazeres, portanto. Vai daí, as danadas das cotovias metem-se atrás dele e passam-no a ferro com uma viatura automóvel. Que «situação inusitada» terá visto «o homem» é algo que não nos é concedido saber. Temos pena.     
Mas, calma, também não convém dar muita importância ao atropelamento do «homem», pois tudo, afinal, pode não passar de um boato. É que Isabel Braga, que «se tem dedicado a investigar o caso» e serve de fonte à nossa repórter, «esclarece que, das investigações que fez, não encontrou provas desta versão» (pág. 134). Então, para quê falar dela, para mais sem especificar qual era a filha de Carmona de quem se dizia na época ser lésbica? Alusões a lesbianismo com base em boataria e estórias alcoviteiras do Portugal salazarista é outra cedência da autora à homofobia mais primária e sórdida. Como se disse, este é um livro homofóbico, pelo que nada disto nos deve espantar.
Conscienciosa e profissional como é, a investigadora São José Almeida, porém, não se fica por aqui. Mergulha mais fundo nas fontes. E, então, toca de ouvir um juiz do Supremo Tribunal de Justiça. O caso, de facto, não é para menos. Filha de Presidente da República só com juiz do Supremo Tribunal. Escutemos então a esclarecedora opinio iuris do Senhor Conselheiro Bernardo Fisher Guimarães de Sá Nogueira, que nos diz «saber da existência de um processo que “envolvia gente grande e uma filha do Presidente Carmona”». No entanto, refere o Meritíssimo, o caso «foi abafado» (pág. 134). Senhor espectador, não saia do seu lugar. Vamos abrir um parêntesis para retratar num breve esquisso a profundidade historiográfica do Ilmº Senhor Juiz Conselheiro Bernardo Fisher de Sá Nogueira. Aqui há um par de anos (mais precisamente, em 1995), deu à estampa o Senhor Conselheiro Sá Nogueira uma obra de investigação histórica sobre os presidentes do Supremo Tribunal de Justiça. O título era frugal e austero, como convém a uma circunspecta publicação judiciária: Da «Casa d’El-Rei» ao Supremo Tribunal de Justiça. Contributos para a sua História. Numa página, uma nótula biográfica de meia-dúzia de linhas; na outra, a imagem solene do magistrado biografado, pintada a óleo e emoldurada a ouro. A páginas 98 deparamos na fronte respeitável do Senhor Conselheiro-Presidente José Joaquim Coimbra, bacharel em Direito e irmão de Leonardo Coimbra. E que nos diz Sá Nogueira deste eminente jurisconsulto? «É da sua autoria uma célebre sentença sobre “ventosidades expelidas pelo ânus”». Isto. É isto que, segundo o Conselheiro Sá Nogueira, mais releva na carreira do Conselheiro José Coimbra. Nem sequer se explicita, num livro dedicado a biografar os presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, as datas em que José Coimbra exerceu aquelas funções. Imagine-se o que terão sentido os descendentes do ilustre biografado quando leram, em página impressa, que o ponto mais relevante da trajectória pública do avôzinho foi ter redigido uma sentença sobre flatulência.
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Conselheiro José Joaquim Coimbra

         Fechemos este parêntesis sobre o rigor historiográfico do Conselheiro Sá Nogueira e regressemos, regressemos sempre, ao livro de São José Almeida. Estamos agora no capítulo 7, entrando de chofre no famoso caso da morte de Carlos Burnay. Página 135. A historiadora Almeida cita o auto de ocorrência da Polícia Judiciária. Em nota, escrupulosa, adverte: «Este documento foi cedido à autora por uma fonte na condição de a sua proveniência ser mantida sob anonimato» (pág. 143, nota 3). Bombástico. Digno de um thriller nórdico. Mas, convenhamos, much ado about nothing. É que o processo da morte de Carlos Burnay Nogueira Soares está no arquivo da Polícia Judiciária e é acessível a qualquer pobre de Cristo, crente ou não crente. O autor destas linhas já o consultou, já o fotocopiou, e até, se quiserem, pode publicá-lo neste blogue um dia destes. Para quê tanto mistério perante uma coisa tão pública? Aqui, neste livro alcoviteiro de São José Almeida, é tudo anónimo e envolto em névoa, do reino do diz-que-disse e do consta-que-era. O facto de São José Almeida apresentar com aura de grande mistério documentação que está aí para todos, livremente consultável, à mão de semear, é prova de que não fez o trabalho de casa. Ou, antes, que este trabalho devia ter ficado em casa. No armário, trancado a sete chaves. Outro exemplo de incúria: viu o processo da morte de Carlos Burnay no Arquivo Salazar, na Torre do Tombo. Cita a cota e tudo, viva o luxo: «Processo AOS/CO/JU-1B, pasta 18». Mas, na Torre do Tombo, no mesmíssimo Arquivo Salazar, ele há também o processo da correspondência particular da mãe de Carlos Burnay para o Presidente do Conselho. É procurar nas pastas «CP» (= Correspondência Particular). São várias cartas. Passaram ao lado da nossa investigadora? Pelos vistos, sim.      
         Como o Capítulo 7 trata de sexualidade & sangue, a autora não achou melhor do que pular directamente da morte do jovem Carlos Burnay, ocorrida em 1952, para a morte do padre Alberto Neto, ocorrida em 1987. Assim de rajada vai logo adiantando que o padre Alberto era «homossexual» (pág. 141) e que foi assassinado por um desconhecido, num «crime homossexual» (pág. 141). Qual a fonte para dizer isto? Fernando Dacosta, claro. O incontornável Fernando Dacosta. O Dacosta que foi entrevistar as enfermeiras do Lar onde morreu Dona Maria, a governanta de Salazar. Aquelas profissionais de saúde contaram-lhe, certamente em surdina: «quando, pouco antes de morrer, a algaliámos, na sequência de exames ginecológicos, ela sofria de infecção urinária crónica, comprovámos que estava completamente virgem. Virgem como veio ao mundo» (Nascido no Estado Novo. Narrativa, 2ª ed., Lisboa, 2001, pág. 47). Que as senhoras enfermeiras – nunca identificadas, claro – se prestem a esta devassa da vida privada e a uma grosseira violação dos seus deveres deontológicos é uma coisa grave. Agora que o jornalista-escritor Dacosta ponha a render estas coisas no comércio livreiro, sob a forma de texto impresso subintitulado «Narrativa» (?), diz-nos muito dos tempos que correm.   
Imagine-se que, daqui a uns anos, algum Dacosta qualquer se punha a entrevistar os médicos ou as enfermeiras, por exemplo, da Engenheira Maria de Lourdes Pintasilgo ou – porque não? – de São José Almeida. Ou, já agora, da mãe do famoso prosador Dacosta ou dos pais da premiada jornalista Almeida. Depois, publicava o que Dacosta publicou sobre as partes íntimas da Senhora Dona Maria de Jesus Caetano Freire. O que aconteceria? Caía o Carmo e a Trindade. Como se tratava da governanta de Salazar, nada aconteceu, ninguém se escandalizou, o livro vendeu às centenas, aos milhares, pois é disto que o meu povo gosta. Porque se permitem Fernando Dacosta e São José Almeida fazer destas coisas? Porque muitas pessoas acham que, lá no fundo, no fundo, a Dona Maria de Jesus, por ter servido as sopas ao doutor Salazar, não tem os mesmos direitos dos outros mortais, é uma vida sem valor vital. Untermensch.
         Tudo isto não seria grave se se tratasse de uma obra de ficção, como sucedeu com a adaptação teatral de «A Filha Rebelde». Mas não é este o caso, de modo algum. Aqui, pretende-se vender os factos como «reais» - pois só assim, entre outras coisas, terão valor acrescido no mercado livreiro e junto da crítica sempre amiga e laudatória. Ora, desconhecerão o senhor Dacosta e a senhora Almeida, autoproclamados «liberais» e «tolerantes», o direito fundamental à reserva da vida privada inscrito no nº 1 do artigo 26º da Constituição? Ignoram que o artigo 185º do Código Penal pune a ofensa à memória de pessoa falecida se esta tiver morrido há menos de 50 anos? Não sabem que os mortos também têm dignidade? Sem entrar em detalhes, estas pessoas morreram há pouco, muitas delas legaram descendência. Isto não é o mesmo que aventar a hipótese de D. Sebastião andar embrulhado com o seu escudeiro favorito ou falar dos segredos de alcova dos nossos monarcas absolutos e suas cortesãs. Para percebermos o alcance da questão basta atentar no «Livro de Estilo» do jornal Público, por sinal o posto de trabalho de São José Almeida. A páginas tantas, diz o «Livro de Estilo» que representa uma violação da privacidade «a divulgação de factos da vida pessoal e afectiva, hábitos sexuais ou da esfera privada (se tem muitas/os namoradas/os, é alcoólico/a, consome drogas, etc.). Está em causa o direito à reserva da intimidade e da vida privada. O direito à privacidade sobreleva o direito e o dever de informar — salvo nos casos socialmente relevantes (trabalho infantil, crianças maltratadas, etc.) ou lesivos do interesse público e, ainda, de figuras públicas com comportamento contrário ao seu discurso público».
         Mas pensemos noutra situação, a do Arquivo da PIDE. Está acessível ao público mas os documentos, antes de poderem ser consultados, são objecto de «expurgo» pelos técnicos da Torre do Tombo. Naturalmente, as referências a comportamentos sexuais ou doenças são eliminadas da documentação facultada aos investigadores. Alguma vez passaria pela cabeça de alguém de bom senso fornecer informações sobre a vida sexual alheia? Mais: Dacosta revela, sem qualquer pudor, que a governanta Maria, além de padecer de virgindade completa, sofria de uma «infecção urinária crónica» e que nos derradeiros dias da sua vida estava algaliada. Não terá a defunta senhora direito à privacidade? Por ter servido o tirano Salazar, como empregada doméstica e influente governanta, merece esta punição post mortem, sem julgamento e sem garantias de defesa? Dacosta avança, aliás, uma informação de relevo: morreu Dona Maria «completamente virgem». Nestas coisas, convém ser rigoroso, não vá alguém ainda pôr-se a pensar, e a escrever por aí, que a senhora governanta se entregou nas mãos de Deus parcialmente virgem. Obrigado, Fernando. Rigor é rigor.
         Prosseguindo a sua cruzada de levantamento dos homossexuais nos «anos de chumbo da ditadura» (pág. 29), São José Almeida volta-se, no Capítulo 8, para outra vetusta instituição nacional, o Partido Comunista Português. E lá vai de despejar do armário Júlio Fogaça, Fernanda Tomás e Julieta Gandra. A propósito destes casos, São José Almeida refere que a PIDE nunca utilizou a homossexualidade dos detidos para fins políticos. Corroboram esta afirmação Irene Pimentel e José Pacheco Pereira.  Afinal, o Estado Novo não era homofóbico? Ruben de Carvalho avança uma explicação rebuscada: «a PIDE não refere a homossexualidade nos castigos» porque «há pudor em relação à homossexualidade» (pág. 147). Era, pois, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado uma organização muito poderosa, mas algo pudica nos seus procedimentos. Lá para torturar os presos não havia nenhum rebuço; mas, em tropeçando num gay, alto e pára o baile, que isso beliscava o pudor casto dos senhores agentes e inspectores.        
Sendo, pois, uma realidade interdita e não-dita na sociedade portuguesa da altura, até por parte da tenebrosa polícia política, terá sido a homossexualidade mais perseguida pelo Estado Novo do que por outros regimes, incluindo democracias do pós-guerra? Lembremo-nos do que sucedeu ao grande, ao genial cientista Alan Turing, alvo de um processo-crime por delito de homossexualismo, na Inglaterra dos anos cinquenta (mais precisamente, em 1952), que acabou por aceitar ser tratado com hormonas femininas e se sujeitou à castração química. Turing é uma das poucas pessoas a que, a título individual, poderemos atribuir a vitória dos Aliados na Segunda Guerra. E se hoje temos computadores, a Turing o devemos, em boa medida. É arrepiante a descrição, feita por Andrew Hodges no livro Alan Turing: the Enigma (Londres, 1992), do que passou o cientista nesses anos. Devastado, Alan Turing suicidar-se-ia em 1954.
Enquanto isso, no soalheiro e tolerante Portugal salazarento, a polícia política, armada em mariquinhas pé-de-salsa, nem ousava falar de homossexualidade e nem sequer a usava como arma de arremesso político. Por outro lado, entre as elites políticas e artísticas era um fartar vilanagem de folguedos e brincadeirinha. O Subsecretário da Presidência do Conselho, Paulo Rodrigues, que despachava diariamente com Salazar, era conhecido em toute Lisbonne pelas suas relações homossexuais, segundo diz São José Almeida, baseando-se, claro, no omnisciente Dacosta (pág. 126).  
Convertido Portugal numa alegre Sodoma e Gomorra, ainda havemos de descobrir que, afinal, o fascismo nunca existiu. Já Eduardo Lourenço o intuíra, em volume saído em 1976. A hipótese aventada por esse ensaísta tem sido objecto de ampla confirmação pela historiografia mais recente. De facto, graças a um conjunto de obras de grande profundidade científica e não menor êxito comercial, o Estado Novo começa a tornar-se um regime interessante e animado. Onde todos julgávamos que reinava a cinzenta pacatez dos bons costumes, imperavam afinal a lubricidade sodomita e outros vícios carnais da mais variada índole. Recuperemos a inesquecível frase de Dacosta: «Salazar sempre viveu rodeado de gays». Em calhando, um dia descobre-se que mandou hastear uma bandeira arco-íris na Residência de São Bento. Como terá reagido a esta pouca-vergonha do patrão a dedicada governanta Maria de Jesus, morta como ao mundo veio?
É uma perspectiva inesperada que se abre, nova luz que se acende sobre um tenebroso passado. À semelhança do que ocorreu no «Chalet das Cotovias», a História Contemporânea atravessa em nossos dias uma «situação inusitada». António de Oliveira Salazar (1889-1970), eleito em concurso televisivo o maior português de sempre, merece agora a atenção refrescada e colorida de uma nouvelle vague historiográfica. Percorrendo os tops das livrarias, ficamos a saber, estarrecidos, que o doutor Oliveira Salazar, além de professor de finanças e presidente do Conselho, era pedreiro-livre, como assevera o juiz José Costa Pimenta no formidável Salazar, o Maçon, obra com o modesto subtítulo: «O maior segredo da vida de Salazar. Um documento histórico único». Não, não estamos a brincar: foi editado pela Bertrand em 2009. É, de facto, «um documento histórico único». O autor também.
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Salazar, o Maçon, de Costa Pimenta.

Pela coleante pluma da jornalista Felícia Cabrita ficámos igualmente a saber, ao ano de 2006, que o doutor Salazar «percebeu que a virtude não dava rendimento e entregou-se a todo o tipo de transportes» (Os Amores de Salazar, pág. 189). Não é cabalmente esclarecido pela jornalista Cabrita a que tipo de transportes se entregara o Presidente do Conselho, até porque reza a História que de avião só viajou uma vez – e não gostou. Mas Felícia Cabrita, bem o sabemos, nunca desarma: «Oliveira Salazar […] conheceu e estancou as febres da carne com o requinte de um Casanova» (pág. 190). A obra de Cabrita é abrilhantada por um prefácio maroto do Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral, que, sobre a vida sexual do «ditador», produziu cristalina tese: «há amor livre, não há promiscuidade (salvo, porventura, uma excepção)» (pág. 18). Temos, pois, Oliveira Salazar nas vestes de um endiabrado precursor do «amor livre», comparado com o qual os hippies dos anos 60 não passaram de uns betinhos seráficos e monogâmicos. Contudo, alerta Freitas, não havia «promiscuidade» no comportamento salazariano. «Salvo, porventura, uma excepção». Assim não, Professor. Assim, é fazer troça dos leitores. Evidentemente, era essa excepçãozinha «promíscua» que, como é óbvio, a malta aqui da plateia gostava de conhecer e esmiuçar. Em próxima edição da obra de Cabrita, vamos lá aprofundar este detalhe da promiscuidade do ditador Salazar, está bem? Obrigadinho.     


Os Amores de Salazar, de F. Cabrita.
 22.000 exs. vendidos em 6 semanas.


Em 2008, António Trabulo ofereceu-nos, a troco de 19,99 euros a unidade, o Diário de Salazar, sob a centenária chancela da Parceria A. M. Pereira (e, claro, prefácio de Fernando Dacosta), enquanto no mesmo ano Rui Araújo rematou à baliza com O Diário Secreto que Salazar Não Leu (subtítulo: «Revelações e Factos Inéditos», da Oficina do Livro). Esta gente é dada a baralhar as coisas. No ano da Graça de 2008, um citoyen pacato e ordeiro, chefe de família com os impostos em dia, pôde comprar, acabadinho de sair, o Diário de Salazar e, também ainda quentinho, O Diário Secreto que Salazar não Leu. Então o Salazar escreveu um diário que não leu? Ou não leu porque era secreto? Isto é mesmo gosto de complicar. O que se passa é só, e em boa verdade, que Salazar nunca escreveu diário algum. A obra de António Trabulo é uma «colagem» de trechos das «agendas» de Salazar, misturadas por prosas do próprio Trabulo, do que resulta, no final, um atribulado e trabuliano remix de verdade e ficção. O comprador, incauto, leva contentinho para casa o Diário de Salazar e, em chegando ao lar, toca de apanhar no lombo da esposa por ter sido burlado («a minha mãezinha sempre me avisou que tu eras um patego, Toino Emílio!! Toma lá, alperce!»). Em verdade, em verdade vos digo, irmãos: muita violência doméstica já gerou este Diário de António Salazar, digo, de António Trabulo.   

O Diário de Salazar, de A. Trabulo.
 
Mas, senhor ouvinte, diga-nos lá, o que é que vende quase tanto como Salazar? Se respondeu «Sexo», acertou, é seu o microondas que temos para lhe oferecer. E pois está claro que se no mesmo livrito pudermos servir os dois pratinhos, sexo e salazarismo, aí o departamento de marketing da editora agradece sempre. Já temos então connosco Amor e Sexo no Tempo de Salazar, de Isabel Freire, na Esfera dos Livros, vindo a lume em Novembro de 2010. Trata-se de obra que aqui abordaremos noutra ocasião, pelo respeito que a autora nos merece. Antes disto, Isabel Freire (n. Évora, 1971), que fez formação profissional em Jornalismo no CENJOR (1999), havia publicado, também na Esfera dos Livros, o frescalhote Fantasias Eróticas. Segredos das Mulheres Portuguesas. Só de ler a nota de apresentação um homem fica logo a salivar de lambarice: «Com coragem e sem vergonha, as mulheres portuguesas despem-se de preconceitos e revelam aqui as suas fantasias sexuais. Fantasias Eróticas é uma colecção de auto-retratos sexuais surpreendente e emocionante». A seguir ao Fantasias Eróticas, emergiu, então, Amor e Sexo no Tempo de Salazar. Aguardamos com expectativa o próximo trabalho desta jornalista free-lancer, licenciada em Filosofia pela Universidade Nova, avenue de Berne 


Amor e Sexo no Tempo de Salazar, de Isabel Freire.


  Regressemos agora a São José Almeida que, com esta obra, prestou em 232 páginas um péssimo serviço à luta contra os preconceitos e a discriminação da homossexualidade. O livro foi galardoado em 2010 com o «Prémio Média», atribuído pela Rede Ex-aequo – Associação de Jovens Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros e Simpatizantes. Não se percebe porquê. Além deste prémio, São José Almeida já tinha averbado um par de galardões da ILGA, o primeiro em 2006 e outro em 2009. Também a Comissão Europeia a distinguiu, nos idos de 2009 – e agora queixem-se que a Srª Merkl tem mau feitio.


Distinguida pela Comissão Europeia,
a reportagem por onde tudo começou.

O livro é um completo logro, a começar pelo título. «Homossexuais no Estado Novo»? Mas como, se a autora apenas se concentra em meia-dúzia de figuras públicas, gente graúda, produzindo um Almanach Gotha da homossexualidade estadonovista que deixa na penumbra a ralé, a gente vulgar, aqueles que verdadeiramente sofreram e pagaram, no corpo e no espírito, pela sua orientação homossexual? Neste Who’s Who da homossexualidade dos «anos de chumbo», apenas uma vez, a pp. 166-167, a autora refere o caso de um homem do povo, o cozinheiro Josué Joaquim Ferreira, perseguido durante dez anos devido ao facto de ser homossexual e a quem um juiz chamou, em audiência de tribunal, «um verme de lama», rematando: «homens como você são parasitas da sociedade». Simplesmente, neste caso São José Almeida mais não fez do que transcrever uma reportagem sobre o caso, publicada na revista Visão, em 15 de Abril de 2004.
Ora, para compreender, na sua exacta dimensão, o que significou a indiscutível estigmatização da homossexualidade no Estado Novo (e, já agora, na Primeira República) era precisamente sobre estes casos, de cidadãos vulgares e comuns, que a autora deveria ter debruçado a sua atenção, ao invés de enveredar pelo pacóvio voyeurismo da vida picante dos nomes «da alta». Como deveria ter feito? Recomendaríamos os métodos naturais: folhear os repertórios de jurisprudência, localizar e consultar processos judiciais ou inquéritos criminais, entrevistar réus nesses processos, percorrer com detença os arquivos das polícias, dos governos civis, do Ministério do Interior. Deveria ainda ter analisado os registos do Instituto de Medicina Legal, das faculdades de Medicina, dos hospitais, sobretudo dos psiquiátricos, para indagar até que ponto a ciência médica colaborou com a homofobia então reinante (a autora conversou com o psiquiatra Afonso de Albuquerque, o que é manifestamente pouco). Em querendo ser investigadora, São José Almeida devia fazer o que, por exemplo, fez a historiadora Rita Lino Garnel sobre as vítimas de violência na Primeira República ou a antropóloga Cristiana Bastos sobre a sífilis no Hospital do Desterro (para não falar de estudos anteriores, como o de Susana Pereira Bastos sobre os vadios no Estado Novo). Só que isso… dá trabalho. Sai sempre mais fácil dar uma telefonadela a meia-dúzia de amigos, uns que deram a cara (António Fernando Cascais, Tito Lívio, Eduardo Pitta, António Serzedelo, Guilherme de Melo, Carlos Castro), outros que permaneceram anónimos. E nem se diga que este é um trabalho «jornalístico», e que não, não vale a pena confundi-lo com um livro académico. Alto lá aí: então o rótulo  «jornalístico» é um passaporte para proferir os maiores dislates?  Um press card para resvalar no facilitismo? Não tem este livro a pretensão – falhada, é certo – de reconstruir factos? As exigências de rigor são exactamente as mesmas em qualquer investigação, jornalística ou histórica. Além de que, ponto decisivo, a autora indiscutivelmente alimentou o intento de escrever um livro de História, não uma reportagem jornalística. E, mesmo que tivesse tomado esta última opção, não é assim, não é manifestamente assim, que se desvendam os dramas que os homossexuais viveram no Estado Novo. É que, com esta ligeireza, acabamos, no final, por ficar com uma visão rósea e edulcorada da repressão da homossexualidade no Estado Novo. Por que não trabalhou a autora? Bastava-lhe procurar, por exemplo, o processo que deu lugar ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça publicado no Boletim do Ministério da Justiça, nº 70, Novembro de 1957, pp. 312ss. Aí temos um caso em que a justiça castigou os «vícios contra a Natureza». Já que o descreve en passant (pp. 55-56), poderia igualmente ter investigado a fundo o trágico caso de Valentim Barros, internado no Hospital Miguel Bombarda:

«Valentim Barros foi outro doente do Pavilhão de Segurança cuja vida trágica seria divulgada para lá dos muros do hospital, na sequência de um artigo-entrevista de Luís d’Oliveira Nunes, publicado em 1968 no Diário de Lisboa. O artigo constitui uma abrangente súmula biográfica sobre Valentim, um lendário residente homossexual do Pavilhão. Filho de um professor universitário, sai de casa aos 16 anos e torna-se bailarino profissional, actua em vários países, mas sobretudo na Alemanha nazi, pontualmente em Berlim, depois no Teatro da Ópera de Estugarda, sendo mesmo condecorado por Goering. Em 1938, aos 22 anos, é internado pela primeira vez, comportando-se como mulher ou julgando ser Nijinsky, e episodicamente violento, dizia-se. Ficaria no hospital por mais de 40 anos, e até falecer, em 1986, a maior parte do tempo no Pavilhão de Segurança. Habitava uma cela-quarto transformada num diminuto espaço identitário, com o seu rádio, pássaros, imagens de santas e decorações, onde fazia renda e tricot, bordava, confeccionava bonecas com olhos de corista, para vender, e pintava paisagens, bem como cenários de cores vivas e subtis para as festas do hospital.»
(cf. Vítor Albuquerque Freire, Panóptico, vanguardista e ignorado – O Pavilhão de Segurança do Hospital Miguel Bombarda, Lisboa, 2009, pág. 71).


Pintura de Valentim Barros. Hospital Miguel Bombarda.

         No seu militantismo cego, acaba a autora por resvalar na mais caceteira homofobia, reforçando estereótipos muito corriqueiros, desde as pensões aos meninos, passando pelos urinóis. Em muitas das situações que descreve, a ocultação da sexualidade (homo-, hetero-, bi- ou o que for) poderá ter correspondido a uma opção individual. Tanto assim é que, nuns casos, havia quem assumisse e noutros quem escondesse a sua orientação sexual. Ora, num sentido ou no outro, essa opção assumir/ocultar inscreve-se no espaço da liberdade das pessoas. Mais: no espaço da liberdade sexual das pessoas. Antes, ou em simultâneo, de haver liberdade para ser straight ou gay existe a liberdade de o querer assumir ou não publicamente. Dizer de alguém, contra sua vontade, que é «homossexual» representa uma atitude tão homofóbica quanto tratá-lo por «maricas» ou um epíteto congénere. É isso que São José Almeida, coitadita, não alcança. Ou, melhor, alcança para quem lhe interessa, ou seja, para os seus entrevistados que só falaram sob «absoluto anonimato» (pág. 23). Para os outros, os «fascistas», toca de lhes chamar larilas e pederastas, que bem merecem. A autora escreveu um livro chamado «Homossexuais no Estado Novo», ou seja, uma obra que faz a ponte entre duas realidades: a condição homossexual e o regime de Salazar. Querendo denunciar a hipocrisia deste último, acabou por ofender a homossexualidade de muitos – no fundo, de todos aqueles a que, sem bases sólidas, classificou como homossexuais. Note-se um facto curioso: as suas «fontes» que deram a cara são, quase todas, homossexuais assumidos ou, pelo menos, conhecidos como tal. Na esmagadora maioria, pessoas que têm um envolvimento activo nos movimentos LGBT. Não ocorreu à autora que, se calhar, deveria cotejar esses depoimentos com outros, alheios à militância gay? Não lhe ocorreu que, porventura, haverá alguma parcialidade nos depoimentos das pessoas que ouviu? Nada disso atormentou o seu escrúpulo ou incomodou a sua ética. Estamos conversados.   
         Acusar o Ministro Gustavo Cordeiro Ramos de gostar de «meninos», ainda vá, concedemos por uns minutos. Cordeiro Ramos foi figura de proa da Mocidade e acalentou o movimento escutista, além de ser Ministro da Instrução e Presidente do Instituto de Alta Cultura. Foi alvo, aliás, de uma acusação de plágio no seu doutoramento, questão muito mal resolvida (isso, sim, merecia um belo estudo). Admite-se, pois, com muita condescendência, uma indagação séria, mas serena, sobre uma eventual duplicidade entre o seu discurso público e as suas práticas privadas. Agora o actor José de Castro, que nunca se destacou como salazarista ou pregador dos bons costumes, para quê? A filha de Augusto de Castro, para quê? A filha de Carmona, qual delas e para quê? Amélia Rey Colaço, com que fundamento? Em suma, à tirania da ocultação hipócrita do Estado Novo respondeu a autora com a tirania da des-ocultação forçada de muita gente que merecia, ao menos, ser respeitada nas opções que tomou; seja nas suas opções sexuais, seja nas suas opções de expor, ou não, a sexualidade que possuía. Amália Rodrigues, «quanto muito era bissexual»? Mas em que momento da sua vida falou Amália da sua sexualidade – e nestes termos? O livro é construído, em larga medida, com base em «testemunhos», os quais, por sua vez, remetem para relatos calhandreiros e muita comadrice. Sem se aperceber, São José Almeida transformou-se numa daquelas velhas azedas de província, da província salazarista, que desfiavam tristes horas a espiolhar, atrás das cortinas, a vida dos jovens casalinhos das aldeias. Até no método a autora se aproxima dos tempos e dos modos do Estado Novo, que oprimia e constrangia através de boatos, calúnias e denúncias anónimas. 
As primeiras palavras da obra são humildes, titubeantes: «Este é um livro inacabado, um princípio de trabalho…» (pág. 21). Esperemos que, quando termine este seu work in progress, São José Almeida tenha mais cuidado nos acabamentos, maior rigor nas fontes que usa e, sobretudo, mais pudor e vergonha na devassa da vida alheia. Mas não, este não é um livro inacabado. É antes um livro fascista. Isso mesmo: um livro fascista.

António Araújo


16 comentários:

  1. Será que São José Lapa, ao referir-se a "homosexualidade", não estaria a querer dizer "maçonaria"? Não terá ela confundido as coisas?
    Já agora, um descendente de Camões revelou-me que o Príncipe dos Poetas portugueses era homossexual e o próprio confirmou-me isso mesmo numa sessão espírita - ou terá sido num sonho? - enfim, o que interessa é que Camões era panasca, perdão homófilo, e o resto são tretas. O Prof. José Hermano Saraiva já poderia ter dedicado alguns dos seus programas à homossexualidade das grandes figuras da História - um manancial ainda por explorar e que pode dar muitos prémios, pois os júris estão ávidos de premiar esta coscuvilhice histórica, perdão, investigação científica de primeira água. E, se recorrer à Maia ou a outros adivinhos e afins, poderá recolher testemunhos em directo.

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  2. Vim aqui via Cachimbo de Magritte.
    Absolutamente inacreditável.
    Espero que algum dos descendentes tenha a coragem de pôr esta "jornalista" em tribunal.
    Muito obrigado pela sua brilhante análise.

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  3. Desde que Lobo Antunes publicou cartas de amor dos pais, dificilmente se poderá fazer pior sobre a privacidade.

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    1. vai aí uma grande confusão Oscar Maximo,o escritor Lobo Antunes nunca publicou cartas de amor dos pais. ora vá lá informar se bem e pode ser que descubra que quem escreveu as cartas foi o próprio Lobo Antunes e quem as publicou foram as filhas. e já agora é um extraordinário relato sobre o cenário da guerra colonial que ele viveu em angola.

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  4. A sua brilhante critica demonstra à saciedade o caracter da autora. Pensar que gente deste calibre e com esta ética, escreve de forma proeminente num jornal de grande divulgação é simplesmente aterrador.
    Estamos a falar de um acto criminoso. É disso que o Código Civil se ocupa. E o Procurador da Republica tão atento que proclama estar na salvaguarda do bom nome das pessoas, que faz neste caso? Ou trata-se de mais um elemento da "famiglia" maçónica, e portanto inimputavel?

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  5. Muito obrigado por este artigo. Espero bem que a atitude nojenta de São José Almeida não fique sem consequências.

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  6. Obrigada, António Araújo, pelo seu magnífico texto! Um abraço reconhecido da Rita

    DIREITO DE RESPOSTA
    TEXTO PARA O JORNAL SOL
    a quem exigi publicação na mesma página e com o mesmo relevo, assim como na secção gay da Time Out, pelas mesmas razões)

    A Família de António Ferro, Fernanda de Castro e António Quadros considera inaceitável, se não mesmo delirante, o último parágrafo de um artigo publicado nesta mesma página, no dia 00/00/00, assinado pela jornalista Inês Bernardo e intitulado «Os gays de Salazar», em torno da obra «Homossexuais do Estado Novo», da autoria de São José Almeida.

    Para que se entenda bem a perplexidade e a hilaridade que causou junto de amigos, família, estudiosos, biógrafos, intelectualidade em geral e, seguramente, leitores assíduos do Vosso jornal, transcreve-se integralmente o fraseado em causa:

    São José Almeida confirma, pela primeira vez, a homo ou bissexualidade de personalidades como Eugénio de Andrade, Natália Correia, Maluda, ou até de gente do regime como António Ferro ou Leitão de Barros.

    Aos induzidos em equívoco, deixa-se a clarificação:

    Primeiro: António Ferro não era bissexual nem homossexual. Mas ainda que o fosse, incomodaria sempre vê-lo classificado desta forma taxativa, num terreno que, pela sua ambiguidade, se situa do lado oposto ao da demonstração científica.

    Segundo: nenhum dos testemunhos recolhidos pela autora do livro em causa o sugere sequer.

    Terceiro: as referências ao nome de António Ferro e ao de sua Mulher, Fernanda de Castro, só surgem, no contexto da referida obra, como ressalva de um casal de vanguarda e com liberdade de espírito suficiente para acolher, nas suas relações artísticas ou conviviais, pessoas cuja orientação sexual era totalmente irrelevante.

    Quarto: o problema não é António Ferro ser homossexual, é não ser – disse com graça, uma bisneta.

    Resumindo: aos olhos da descendência, é inadmissível que se inventarie, entre a homossexualidade pública, confessa, provável ou plausível, a de alguém sobre quem nunca recaiu a mais leve suspeição. E mesmo em relação aos outros nomes citados, já agora, por se tratarem de artistas amigos da família, gostaríamos de deixar a ideia de que, por muito que as probabilidades apontem num ou noutro sentido, incomoda ver pessoas que já morreram, ou seja, que não podem já sustentar, negar ou permitir-se ao recato das suas opções mais íntimas, listadas de forma dicotómica e fora do contexto da investigação em causa.

    Por nós é tudo, OBRIGADA.
    Rita Ferro
    (neta de António Ferro)

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  7. Acrescento que o desmentido saiu em ambas as publicações, logo a seguir à publicação da obra. RF

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  8. Penso que Lobo Antunes não publicou cartas de amor dos seus pais. As duas filhas do casal Lobo Antunes é que decidiram partilhar as memórias do amor dos seus pais o que é uma coisa totalmente diferente e não deixa de ser retrato de um tempo e de um amor em concreto. O próprio Lobo Antunes nem estava de acordo com a publicação. Quem não quer ser "voyeur" basta abster-se de ler e não estão em causa outras pessoas que não a familia em causa que sancionou.

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  9. Gostei de ter tomado agora conhecimento desta desmontagem do trabalho de uma minha antiga colega, pois que na altura também não achei nada bem as loas que se estavam a cantar a semelhante obra, uma vez que discordava do tom geral dela. Claro, pretendeu-se fazer sensacionalismo com um tema que, a ser tratado, o deveria ter sido com muito mais isenção; com outra profundidade. Muitos dos exemplos referidos demonstram precisamente o contrário do que aquilo que à primeira vista se parecia querer denunciar: que os homosexuais eram muito perseguidos durante o Estado Novo. No meu entender, não o eram; até porque na Televisão, por exemplo, existiam rúbricas de grande êxito a cargo de figuras públicas geralmente conotadas com a homosexualidade.

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  10. Que grande armário de livros o Sr António Araújo parece ter com tanta verborreia, mas não deixa de ser um grande esforço, pena que ninguem me devolva o tempo que perdi a ler isto.

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  11. O Turing era pederasta e andava ao engate de rapazinhos na rua. Foi por esse motivo e nunca por ser homossexual, já que em Inglaterra ninguém era perseguido legalmente em função da homossexualidade

    Ele foi denunciado por um desses lupen de rua.

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  13. No tempo de Alan Turing, a homossexualidade era crime no Reino Unido: http://www.legislation.gov.uk/ukpga/1967/60

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    1. Usando o seu link e citando-o:
      "Premises resorted to for homosexual practices: Premises shall be treated for purposes of sections 33 to 35 of the Act of 1956 as a brothel if people resort to it for the purpose of lewd homosexual practices in circumstances in which resort hereto for lewd heterosexual practices would have led to its being treated as a brothel for the purposes of those sections."

      Enfim. Em 1956 ser homossexual não foi crime mas, andar em bordeis com práticas homo lascivas já seria crime; tal como algumas práticas hetero o foram e são.

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  14. Uma das lésbicas do grupo do crime de Sintra, vivia aos anos de 1946/7 eu na cave do 23 da Rua Ferreira Lapa frequentemente visitada por uma das filhas do Presidente Carmona.

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