domingo, 18 de dezembro de 2011

Passear.

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Costa da Caparica. Fotografia de Luísa Costa Gomes. 

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Isto são mais uns anos e acabo a babar-me sobre as memórias de minha infância. Já tenho de fazer um esforço para que ela não me apareça toda irisada d´oiro sobre azul e a cheirar exclusivamente a pinheiros bravos. Mas tenho - e isto é objectivo - de lamentar os meninos de hoje, os urbanos e os provincianos que não podem, por razões civilizacionais, andar tão à solta por montes e vales como eu andei. Que não podem escoucear com os amigos ao ar livre sem horário e sem propósito, explorar os bosques, subir às árvores, caçar as cobras e fazer toda a casta de asneiras inocentes, sem a vigilância de um programador. Ou não fazer nada, nada senão brincar. Afligem-me estes meninos cheios de afazeres, que correm da natação para o ballet, e dali para o karaté, a capoeira, a culinária, a pecuária e tantas tantas coisas extra e cuja vida é um acumular de obrigações curriculares a horas certas. Os adultos, portentos de engenho e imaginação, procuram ansiosamente maneiras de manterem as crianças ocupadas e naturalmente, acabam por encontrá-las. Ou seja, aquilo que devia ser uma bela solução - o tempo livre - transforma-se num problema. Que farão estes meninos quando ninguém lhes organizar as horas do dia, lhes disser o que fazer com a preciosa tarde livre?
Os cínicos dirão: o mesmo que os outros todos, crianças, adultos e anciãos - sentam-se a ver televisão para sempre. E é bem verdade. Porque o tempo livre não só tem de ser engenhosamente preenchido, como tem de ser preenchido em ambientes controlados, isto é, fundamentalmente dentro de casa, ou de outras casas, como ginásios ou piscinas cobertas, centros comerciais e de diversão telhada. Porque o ambiente exterior inspira cuidados, e temores, ressuma perigos, desde a péssima qualidade do ar à ameaça multifacetada que a espécie humana representa para si própria quando na posse de automóveis e outras armas mortíferas. A rua, que devia ser o lugar da liberdade, passou a estar carregada destes perigos, quer fantasiados, quer reais, com a dificuldade acrescida de ser cada vez mais improvável conseguir distinguir com rectidão a fantasia da realidade.
         Um dia destes, quando um amigo me disse que tinha «ido a uma livraria», não percebi logo o que queria dizer. “Fui à livraria tal procurar não sei o quê e a menina disse-me (...)”. Menina, pensei? Mas qual menina? Na internet não há meninas a atender, são meninas de carregar no botão. Depois é que me ocorreu que ele estava a dizer que tinha de facto ido, de ir com pernas, a uma livraria de carne e osso, com pessoas a atender e livros nas estantes. Achei extraordinário achar extraordinário. De facto, para um número crescente de pessoas, (obviamente este “número crescente” é especulativamente crescente), “ir” significa ir mandar vir pela internet.  Sair de casa é que nunca.
E pergunta-se: mas se é tudo tão simples, se tudo na vida quotidiana tende a ser ou foi já simplificado e empacotado, das compras no supermercado ao pagamento das contas, para onde é que foi o tempo? Que é dele? Que é do tempo livre? Este é um dos grandes mistérios da cismática. Estamos a investigar o desaparecimento do tempo livre. Em minha remota adolescência, entre o final de um ano lectivo e o começo de outro, principalmente naquela transição do final do secundário para a universidade, era bem possível chegar a ter cinco meses de férias. É impossível descrever a importância pedagógica desta catrefada de meses de férias. Aprendia-se a viver, aprendia-se a ler, aprendia-se a organizar o tempo, aprendia-se a ter o tempo completamente livre. Olhava-se para o horizonte, de mão em pála sobre a fronte, e viam-se dias livres, quentes dias livres até ao infinito. É uma aprendizagem que implica esforço e disciplina. Lembro-me de passar muitas tardes sentada numa esplanada a praticar a difícil - e hoje tão menosprezada - arte do ócio. A olhar para o ar, enquanto o trabalho de maturação se ia fazendo de motu proprio. Deixar trabalhar o tempo. E enquanto ele trabalhava, nós passeávamos, sem hora certa - e, sobretudo, sem temor.

Luísa Costa Gomes

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