domingo, 18 de março de 2012

Fátima Technicolor.


.
.




No contexto da Guerra Fria, o culto de Fátima teve uma importância que já justificou a atenção de alguns historiadores. José Barreto dedicou-lhe várias passagens do seu livro Religião e Sociedade. Dois Ensaios (Lisboa, 2002).
....É também nesse contexto que, entre outras leituras possíveis, devemos compreender – tout comprendre c'est tout pardonner – o filme The Miracle of Our Lady of Fatima, realizado por John Brahm para a Warner Brothers em 1952. Estreou nos Estados Unidos em Agosto desse ano e, entre nós, explodiu nos écrans  com o título O Milagre de Fátima, homónimo de uma outra película, essa portuguesa e da autoria de Fernandes Thomaz, que foi exibida pela primeira vez no Teatro da Trindade, corria o atribulado ano de 1926. A Enciclopédia de Fátima, curiosamente, não a refere (porventura, por se tratar de um documentário), mas cita outra, realizada pelo italiano Rino Lupo em 1928: Fátima Milagrosa, primeiro filme em que Manoel de Oliveira surge como actor, contracenando com Beatriz Costa. O filme é mudo, mas a sinopse da Wikipedia dá uma ajuda. Eis o enredo: «Maria Helena, ficando sem dinheiro com a morte do pai, o Conde de Unhais, vai servir para Lisboa para casa do Conde de Tovar, sem lhe revelar a sua origem. Preocupada com a paralisia da filha do velho mordomo José, vai pedir um milagre à Nossa Senhora de Lourdes, na Penha de Guimarães. Como não surtisse efeito, Maria Helena decide então ir a Fátima». E pronto, Maria Helena, assim está feita a coisa. Fátima Milagrosa.
.
.
Cinema Éden, Lisboa. Em cartaz, Fátima, Terra de Fé, de Jorge Brum do Canto (1943)  
.
Regressemos à visão yankee dos milagres de 1917. A narrativa é conhecida e o argumento de The Miracle of Our Lady of Fatima não foge à história oficial das aparições da Virgem. Nascido em Hamburgo em 1893, e falecido em 1982, o realizador, John Brahm, ficou para a História como director de vários episódios da primeira série de Twilight Zone, com destaque para o célebre Time Enough at Last. Na filmografia de Brahm deparamos ainda com uma obra com o preocupante título The Undying Monster (1942). Dois anos depois de se dedicar aos milagres de Fátima – mais precisamente, em 1954 –, Brahm dirigiu a película de terror em 3-D The Mad Magician, com o sempre terrífico Vincent Price e a mais apagadota Mary Murphy.  
Em The Miracle of Our Lady of Fatima, no papel de Lúcia, apresentada como «Lúcia Abóbora dos Santos» (sic), surge Susan Whitney. Francisco Marto é encarnado por Samy Ogg. E quem é Samy Ogg? Perguntais bem. Num fórum norte-americano de genealogia, Katthy Boland, uma leitora cusca, deixou o seguinte comentário: «Does anyone have any info on what happened to the child actor Sammy Ogg? He was active in the 50's and possibly early 60's. Have always wondered what happened to him. Thanks. Kb». Também nós, Kb, também nós, Katthy Boland, nos perguntamos, intrigados, o que terá sucedido ao pequenino actor Sammy Ogg. Há quem diga que se tornou um pastor cristão, tendo ingressado no LIFE Bible College, em San Dimas, Califórnia. Afirma-se que o Reverendo Ogg casou, tem dois filhos e vários netos. Mas, como a fonte dessa informação é o The Original Mickey Mouse Club Show, permitimo-nos manter a inquietante dúvida sobre o seu paradeiro.  
E de Jacinta, quem faz  o papel da infortunada Jacinta? Sherry Jackson. Sherry Jackson teve, na sétima arte e fora dela, uma trajectória curiosa. Nascida em Wendell, Idaho, em 1942, fez de vidente de Fátima aos dez anos de idade. Mais tarde, encarnaria o papel de alcoólica na série televisiva Mr. Novak. Passou meteoricamente pela saga estelar Star Trek e, numa outra série televisiva, Peter Gunn,  Blake Edwards, eterno lúbrico, apresentá-la-ia em cenas de nudez, que não seriam exibidas nos Estados Unidos mas apenas na versão internacional da série. O número de Agosto de 1967 da revista Playboy publicaria essas cenas, com o título «Make Room For Sherry». Por coincidência, ou não, foi precisamente nessa altura que Sherry Jackson iniciaria uma relação sentimental com o homem de negócios e criador de cavalos Fletcher R. Jones, que morreu num desastre de avião em 1972. Passaram vinte anos sobre a estreia de The Miracle of Our Lady of Fatima. Aquela que, dois decénios antes, interpretara na tela o papel de Jacinta Marto intentou uma acção exigindo um milhão de dólares, já que, segundo os seus advogados, Fletcher prometera em vida dar-lhe anualmente 25.000 dólares até que Sherry Jackson morresse. A actriz perdeu a acção judicial. Mas quem quiser comprar um postal de Sherry Jackson, pela módica quantia de 5 dólares, pode fazê-lo na página oficial da actriz na Internet.  Uma amostra do catálogo:
.
.
Sherry Jackson, no papel de administradora não-executiva da EDP.
Em segundo plano, António Mexia.


.
Sherry Jackson, no âmbito da preparação técnica do Programa da troika.

.
Agora, encarnando Vítor Gaspar


.
Sob o efeito de drogas lícitas, Sherry Jackson num biopic de Isabel Moreira

.
.
De novo, com António Mexia
.
Gunn, a visão mística de Blake Edwards
.
.
Com isto quase nos distraíamos do nosso tema. Vamos lá regressar a The Miracle of Our Lady of Fatima. No filme, brilha Hugo da Silva, um sabidão de bigodes longos que, apesar de agnóstico e bon vivant, surge como protector dos três pastorinhos castos e indefesos. A personagem imaginária de Hugo da Silva, que constitui um dos poucos desvios do argumento à história oficial das aparições, foi encarnada por Gilbert Roland (1905-1994).
.
.
Gilbert Roland (1905-1994)
.

Com o nome de baptismo Luis Antonio Dámaso de Alonso, nascido na pacata Ciudad Juárez (Chihuahua, México), o futuro Roland/Hugo da Silva quis na juventude ser toureiro, seguindo as pisadas do pai. Faria carreira em papéis de latin lover e é na figura de galã rústico que nos surge em The Miracle of Our Lady of Fatima. No final, mesmo nos derradeiros minutos da fita, converte-se à fé cristã, o que é atestado pela circunstância singela de, ao presenciar o Milagre do Sol, tirar o chapéu da cabeça e murmurar, arrebatado: «Only the fool sayeth there is no God».
.
Hugo da Silva. Provavelmente, já convertido a Adam Smith.
-
Arturo dos Santos, a testemunha-chave do processo Casa Pia
.
,.
No papel do tenebroso administrador do concelho, Arturo dos Santos, a plateia enfrenta Frank Silvera (1914-1970), actor de origem jamaicana que por várias vezes Hollywood convocou para encarnar personagens latinas. Passou por mexicano em muitos filmes e séries. Citem-se, a título de exemplo, One-Eyed Jacks (1961), The Appaloosa (1966) ou o másculo Hombre (1967). No ano em que estreou The Miracle of Our Lady of Fatima, e de novo na pele de um mexicano, contracenou com Marlon Brando em Viva Zapata! (1952), de Elia Kazan. Em 1962, novamente ao lado de Marlon Brando em Mutiny on the Bounty, Frank Silvera apareceu de tez acobreada, como um sadio nativo da... Polinésia.
.
,

.
Tomara que amanhã chovesse!
.
A famosa cena após o furto do bacalhau no LIDL


.

 .
The Miracle of Our Lady of Fatima é uma longa-metragem extraordinária por várias razões. Apontamos uma, a principal: à excepção do padre, todas as personagens masculinas usam bigode. Já agora, refira-se que o padre, Father Ferreira, é encarnado pelo actor Richard Hale, que dez anos mais tarde viria a contracenar com Gregory Peck em To Kill a Mockingbird, filme que, convenhamos, fica a léguas de distância do maravilhoso livro de Harper Lee, que já evocámos neste belíssimo blogue.
.


.
.
Em The Miracle… o grande milagre é o technicolor. Os tons feéricos deslumbram o olhar de crentes e não-crentes e encantam os espectadores, transportando-os a uma terra onde pastorinhos felizes tocam flauta para ovelhas bem nutridas, que saltitam em prados verdejantes com moinhos de papelão ao fundo. O Portugal da Primeira República (1910-1926) adquire, com o patrocínio da Warner Bros., as cores risonhas de uma paisagem solarenga do Mezzogiorno, onde todos viviam habitualmente, antecipando os folguedos inocentes do salazarismo. O proletariado rural, alegre por natureza, dança tarantelas ao som de harmónicas e concertinas. As casas são limpas e asseadas. Espaçosas, até. As forças da ordem, vá-se lá saber porquê, são virilmente corporizadas por agentes de chapéus emplumados, em tudo semelhantes a carabinieri. Os cenários são luxuriantes. Todo o imaginário hollywoodesco é transferido para a pedregosa região de Leiria: a prisão, onde os videntes são traiçoeiramente enjaulados, é igualzinha às masmorras de um qualquer pastelão bíblico. O austero gabinete do Ministro, com o chão de mármore e pesadão mobiliário num estilo que oscila entre o plateresco e o salmantino, é uma recriação perfeita do ambiente de um filme de capa e espada. A todo o momento, o espectador aguarda a entrada em cena de um espadachim metrossexual e de uma aia indiscreta. Fica-se com a sensação, possivelmente injusta, que nem argumentista nem aderecista nem criatura alguma da equipa percebeu que existe uma ligeira diferença entre a Castilla-la-Mancha do século XVII, os intemporais arredores de Nápoles e Portugal, nesga de terra debruada de mar, como o caracterizou o argumentista coimbrão Michael Tørga.
..
.


.
.
.
Sem dúvida, sobre Fátima e seus milagres já se produziu muito pior em celulóide. Ao nível do abaixo de cão, teremos sempre La Señora de Fatima, de Rafael Gil (1913-1986), realizador e guionista espanhol que perpetrou nada menos do que 68 filmes, alguns dos quais com títulos esclarecedores, como Chantaje a un torero (1963), Un adulterio decente (1969), Sangre en el ruedo (1969) ou El hombre que se quiso matar (1970). De La Señora de Fátima até a comedida Enciclopédia de Fátima diz: «com uma realização frouxa e actores que não estiveram à altura das circunstâncias, ficou como um relato linear e pouco vivo dos acontecimentos de 1917 e dos anos que se sucederam». Na versão original, o filme tinha 98 minutos. Hoje apenas resta uma versão truncada, com 81 minutos. Sintomaticamente, até à data ninguém se queixou do extravio dos 17 minutos de La Señora de Fatima.  
.   
La Señora de Fatima, de Rafael Gil (1951)

Sobre The Miracle…, a Enciclopédia de Fátima mostra-se condescendente, caridosa até: «Como seria de esperar de uma produção com origem em Hollywood, são muitas as liberdades narrativas, não havendo um respeito estrito pelos factos, mas antes a intenção de encontrar a adesão de uma vasta camada do público». O filme tem, de facto, inúmeras «liberdades narrativas». A dado trecho, alguém exclama: «Let’s go to the Cova!!». E, num tropel, lá vai tudo a correr para a Cova. Let’s go to the Cova.
.
.



A edição em DVD (2006)

Tendo alcançado projecção mundial, The Miracle of Fatima foi responsável pela divulgação do culto fatimista em tempos de Guerra Fria e anticomunismo militante. O filme foi nomeado para um Óscar, pela sua música, da autoria de Max Steiner. Acreditar que estamos perante um filme é uma questão de fé. Acompanhar o enredo exige uma paciência evangélica. Conseguir vê-lo sem rir constitui um milagre. Do princípio ao fim, The Miracle... reclama misericórdia. Não deixeis de o ver, irmãos. Vinde, vinde, let’s go to the Cova. Desde 4 de Abril de 2006, The Miracle of Fatima  encontra-se disponível em DVD. E, para os crentes mais afoitos, em download pirata.


 António Araújo


Sem comentários:

Enviar um comentário