segunda-feira, 19 de março de 2012

As couves.

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Sempre fui um rapaz da cidade. Durante quase vinte anos, o meu contacto com o mundo campestre limitou-se aos trinta dias do mês de Agosto que passava com os meus avós no Ribatejo, numa velha casa rural que o meu avô abandonara nos idos anos quarenta para ir conduzir eléctricos para Lisboa. Nesses dias tinha muitos amigos: corria os campos e enchia-me de carrapatos; desaparecia horas a fio para grande angústia da minha avó; suspeitava dos pinhais como de florestas-virgens; tomava banhos de jacuzzi nos tanques da fonte; roubava pêssegos, maçãs e pêras; atafulhava-me de figos até à cólica; temia todos os cães e fugia deles; fazia quilómetros de bicicleta, ficava cheio de dores no rabo e amaldiçoava o selim; ia às festas das aldeias vizinhas entregar-me ao disco-jokey local e regressava a casa depois das duas da manhã, pé ante pé, para não acordar o meu avô. Eram dias enormes, frenéticos, de plena liberdade. Mas deve ter havido um ano, não me lembro qual, em que os dias se passaram mais devagar, em que deixou de me apetecer andar três horas a pé para ir ouvir música pimba, e em que as raparigas da aldeia me começaram a parecer um bocado saloias. A partir de então, arranjei novos destinos para os meus Agostos.
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Passaram-se anos.
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O que dantes era uma viagem imensa e cheia de referências quentes e pueris – a fábrica abandonada, a quinta dos veados, o homem das cabaças –, faz-se agora em 45 frígidos minutos de auto-estrada. Nos últimos tempos tenho regressado amiúde. Fecho-me na antiga casa rural, que entretanto modernizei, e lá permaneço higienizado entre a minha biblioteca, os meus Cds e os meus livros de cozinha que falam de outros mundos onde a gastronomia vai além das couves, da chouriça e do tinto. Às vezes à noite dou um passeio pela aldeia, espreito para dentro do café mas a atmosfera de tabaco, o cheiro a bagaço e os rostos ruborizados dos homens curvados em volta de uma mesa de dominó fazem-me recuar. Cruzo-me com um rosto familiar a quem sorrio sem saber quem é. Prossigo no silêncio das ruas feias: sem passeios, montes de entulho espalhados aqui e ali, casas em reboco cujos donos não fazem qualquer tenção de um dia vir a pintar, alguns jardins com bambis e pombas de loiça… de repente uma iluminação: era o Luís. Aquele homem gordo e boçal por quem acabei de passar era o Luís que tantas tardes suou comigo a desbastar canaviais. Fico abalado com o confronto entre a imagem que a minha memória guardava e aquela que os meus olhos retiveram. E danado por não o ter reconhecido no momento em que nos cruzámos e de ter respondido ao seu cumprimento com um aéreo esgar. Volto para casa tomado de um triste desconsolo, mas aliviado por saber que domingo à noite estarei de regresso ao meu apartamento em Lisboa.

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Sempre que para aqui venho, saio por volta das 9h para ir ao pão. Já nem sequer há padaria na aldeia – nem mercearia, nem talho, nem peixaria… só o café –, pelo que para comprar pão tem de se entrar pelo quintal afunilado da casa de uma senhora, a Artelina, onde todas as manhãs uma carrinha deixa algumas bolas, carcaças e pães de quilo. Há um ritual do pão, no qual eu nunca consegui ser fluente: consiste em tocar umas quantas vezes o sino, chamar «Oh Artelina!» bem alto e depois simplesmente abrir o portão e ir entrando. As minhas dificuldades com esta praxe começam logo no facto de me faltarem agudos nas cordas vocais para conseguir sacar um «Órtelinaaa» que seja audível do outro lado do jardim. O segundo embaraço prende-se com o meu pejo em entrar na propriedade alheia sem um sinal inequívoco de assentimento por parte do dono. E depois há os cães. Por isso, opto sempre por ir à hora mais concorrida e permanecer perto do portão até chegar alguém que execute o ritual do pão por mim.
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Certa manhã, numa destas minhas esperas tácticas detive-me a contemplar as sete ou oito fileiras de magníficas e pujantes couves que havia no jardim. Verdadeiramente impressionante: folhas com perímetro de meio metro, veios opalinos e lustrosos, um verde seco e opaco mas reluzente à incidência do sol matinal. Lindas, pensei. Embevecido pelas couves, não dei pelo aproximar de duas mulheres que me despertaram com o seu chamamento da dona da casa. Tal como eu nos meus pensamentos, também elas em conversa uma com a outra louvavam as couves da Artelina. Ao chegarmos os três ao barracão do pão foi imediato: desatámos todos a gabar as couves à dona e ela a ficar encabulada e orgulhosa. São tantas, e tão grandes. E quase não tiveram chuva, coitadas. No outro dia até parou aqui um senhor de Albergaria que as invejou. Tem sido uma barrigada de caldo verde. Que maravilha.
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Deixei as senhoras aviarem-se primeiro e fui o último a sair do barracão, despedindo-me da Artelina com um aceno ao qual ela respondeu com um sorriso que me pareceu mais counivente. No percurso de regresso voltei a parar diante dos vegetais. Impressionante, de facto. Definitivamente, aquilo não era uma simples horta, havia ali grandeza de selva.
D'Arc

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