domingo, 29 de abril de 2012

À segunda-feira, na Nikolaikirche.

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Nikolaikirche, 9 de Outubro de 1989




A RDA não dispunha de instituições independentes que agrupassem os opositores. No entanto, o Estado socialista não se atreveu a perseguir as confissões religiosas e garantiu-lhes um surpreendente grau de autonomia. Uma das razões reside no facto de um número significativo de igrejas protestantes manter, desde sempre, uma posição de lealdade em relação ao poder instituído. Essa lealdade, no essencial, prevalecera  durante o período nazi. Aliás, os Deutsche Christen (cristãos alemães), os apoiantes protestantes dos nazis, eram particularmente numerosos no que depois seria a RDA.

A ocupação soviética (1945-49) não provocou nenhuma fractura séria com as igrejas protestantes. As forças ocupantes permitiram às igrejas protestantes manter as suas actividades sem problemas. De início, para dar a ideia de pluralismo, até foi permitida a criação da União Democrática Cristã, que pretendia ser um partido político destinado a acolher todos os cristãos e a defender os seus interesses dentro da sociedade socialista em construção. O seu primeiro líder, Otto Nuschke, era uma personalidade muito respeitada e credível. Depois associar-se-ia, é certo, à sorte do regime. Por ocasião dos motins de 1953, até foi raptado e trazido para Berlim Ocidental, onde quase o lincharam.

Depois de 1949, tudo se fez para convencer os crentes de que viviam numa democracia popular que garantia protecção e preservava os privilégios das igrejas. Na RDA os domingos e as festas religiosas eram dias de descanso. As instalações escolares podiam ser usadas para a educação religiosa das crianças. As propriedades das igrejas não foram nacionalizadas. Os hospitais, lares e jardins-de-infância das igrejas mantiveram-se em funcionamento. Os cuidados aos idosos, aos doentes mentais e aos deficientes prestados por instituições religiosas eram subsidiados pelo Estado.

Em 6 de Março de 1978, a Federação das Igrejas Protestantes aproximou-se do Governo, pretendendo que fossem fixados legalmente os termos da coexistência com o Estado socialista. As duas delegações, lideradas pelo bispo Schönherr e pelo próprio Erich Honnecker, encontraram-se então. Foi um fiasco. Nunca mais houve reuniões semelhantes e nada dali resultou. O Governo não queria ir mais além.


O encontro, em 1978, do bispo Schönherr e de Erich Honnecker


Entretanto, as diversas igrejas tinham acolhido diversos grupos que ambicionavam mudanças. Em 1979, as Blues-messen (literalmente, “missa com blues”) começaram na Samariterkirche, em Berlim. As cerimónias incluíam música, poesia e discussões apropriadas para os jovens. Note-se que as igrejas tinham começado a ajudar os jovens envolvidos na pequena criminalidade ou vítimas de alcoolismo e de outras drogas. Contudo, aqui o Estado já não subsidiava actividades de que beneficiavam elementos considerados anti-sociais, os quais, por definição, não podiam existir oficialmente numa sociedade socialista.

Em 1980, as igrejas começaram a organizar as chamadas “semanas pela paz”. O Governo entreviu logo o carácter subversivo da iniciativa. Previa-se que a semana pela paz de 1980 terminasse às 13.00 horas do dia 19 de Novembro, ocasião em que repicariam os sinos de todas as igrejas da RDA. Para surpresa dos presentes, exactamente àquela hora soaram as sirenes de todos os quartéis de bombeiros do país. O Governo, de surpresa, marcara para aquela mesma hora um exercício nacional de defesa antiaérea. 
Mas nada impediu que as “semanas pela paz” e numerosas outras iniciativas atraíssem os alemães de leste, sobretudo os jovens. Uma vez que não se podiam expressar à luz do dia opiniões políticas contrárias ao regime, os jovens concentravam-se em questões mais imediatas, como a protecção do ambiente, os direitos do homem ou a libertação da mulher. Apesar de algumas dificuldades na relação com as autoridades religiosas, na prática as actividades desses grupos desenvolveram-se à sombra da protecção das igrejas. Na verdade, o regime não tinha suficiente legitimidade para recorrer à força contra as igrejas.
Até que, com a degradação final do regime, a tentação de recorrer à força foi mais forte. Como não podia deixar de ser, o processo que conduziria ao colapso final do regime teve início num ato das forças de segurança contra uma igreja protestante. Em 25 de Novembro de 1987, a Stasi e a polícia entraram na Igreja de Sião de Berlim Leste, fizeram uma busca, apreenderam jornais não autorizados e detiveram algumas pessoas. Doravante, a Igreja estaria claramente na oposição. A RDA, a fábrica do socialismo, não conseguira, nem sequer verdadeiramente tentara, controlar o espírito religioso dos seus cidadãos.
O ano final, 1989, foi marcado pelas iniciativas religiosas. O massacre de 4 de Junho, em Beijing, na Praça de Tianamen, foi louvado pelas autoridades alemãs democratas. Pois muitas igrejas da RDA permitiram-se realizar cerimónias religiosas. Os sinos repicaram pelas vítimas. As manifestações pela paz foram crescendo ao longo do ano.
No dia 7 de Outubro, quadragésimo aniversário da RDA, aos dignitários estrangeiros foi dado ver o poderio de uma Alemanha de pés de barro. Em Berlim, no dia 8, a polícia usou de violência. Na segunda-feira, dia 9, haveria mais uma manifestação pela paz. Desde Setembro de 1982 que o pastor da Nikolaikirche de Leipzig, Christian Führer, organizava todas as segundas-feiras orações pela paz. A partir de Maio de 1989, as orações terminavam e de seguida, fora da igreja, realizava-se uma manifestação. De início, eram à volta de mil manifestantes. Em 25 Setembro eram 8 mil. Em 2 de Outubro, 20 mil. Esperava-se a maior manifestação de sempre para o dia 9 de Outubro.

Christian Führer, dirigindo-se aos presentes na Nikolaikirche, 1989





Nesse dia, os boatos circulavam em Leipzig. Os hospitais teriam reservado alas inteiras para acolher os feridos. Os serviços teriam acumulado reservas de sangue para transfusões. As autoridades teriam concentrado as suas forças nos arredores da cidade. Um artigo no jornal de Leipzig avisava que a manifestação seria controlada “pelos meios que fossem necessários”.
Apesar de tudo, nas imediações da Nikolaikirche concentraram-se 70 mil pessoas. Nunca se vira nada assim na RDA, desde o levantamento dos operários em 1953. No interior da igreja, 2 mil pessoas participavam na cerimónia. O pastor Führer calcula que mil fossem membros do Partido Socialista Unificado e da milícia operária (Kampfgruppen der Arbeitklasse), convocados para reforçar as forças da Stasi. Um membro do comité central do partido recordou depois: “Tínhamos tudo planeado. Estávamos preparados para tudo.”
A tensão dentro da igreja repleta atingia os limites do suportável. No exterior, já se ouviam os slogans: “Wir sind das volk!” e “Stasi raus!”. Quando as preces terminassem e as pessoas saíssem, seria dado o sinal para o início da manifestação. E para o banho de sangue...


José Luís Moura Jacinto

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