domingo, 10 de junho de 2012

Napalm.

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Manuel Botelho, série "Marcha Lenta", 2009-2010


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1. Os documentos que se publicam foram localizados no Arquivo da Defesa Nacional, em Paço de Arcos, onde se encontram sob a cota Cx. 1011, 1011/12 [actualmente F3/15/Cx 32.35], tendo sido desclassificados, a pedido dos autores desta nota, por despacho de 17 de Setembro de 2008.

Este conjunto documental é integrado por:
 

(a) – um documento dactilografado, classificado «Muito Secreto», sem data, encontrando-se no final a indicação do seu autor como sendo o tenente-coronel José Luís Ferreira da Cunha, do Gabinete do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. O documento não se encontra assinado, compondo-se de nove páginas numeradas, cada uma das quais com a indicação «Gabinete», no canto superior esquerdo. No final do documento consta a indicação dactilografada «SGDN, 9MAI73», o que permite identificar a sua origem ou um dos seus destinatários (o Secretariado-Geral da Defesa Nacional) e a data aproximada da sua elaboração e/ou distribuição (9 de Maio de 1973).  




        
(b) – um documento em papel timbrado do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné (Quartel-General – Repartição de Operações), classificado «Secreto», datado de Bissau, 27 de Maio de 1974, encontrando-se assinado pelo Comandante-Chefe, brigadeiro Carlos Alberto Idães Soares Fabião. Trata-se de um ofício dactilografado, de uma página, dirigido ao Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas. Possui um carimbo a óleo que certifica a sua recepção no Gabinete do Estado-Maior General das Forças Armadas, em 6 de Junho de 1974, com as indicações «Pº 2034, Nº 3107». Nesse documento, à margem, encontra-se exarado um despacho manuscrito, do seguinte teor: ««Urgente. Ao CEMFA para proceder de acordo com o nº 3. Lisboa 15-6-74. ass). Francisco da Costa Gomes».  

(c) – um documento com a indicação «Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné – Quartel General – 3ª Repartição», que corresponde ao certificado de transferência nº 626/74. Composto por uma página, encontra-se datado de 28 de Maio de 1974 e possui uma assinatura ilegível.
 




(d) – um documento de uma página, datado de 19 de Junho de 1974, não assinado, classificado «Secreto», do Chefe do Gabinete do Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, tenente-coronel José Luís Ferreira da Cunha, destinado ao Chefe do Gabinete do Chefe do Estado-Maior da Força Aérea, tendo como «Assunto: - Bombas NAPALM» e como referência «Nota nº 10.078/C, de 27MAI74, do ComChefe  Guiné». 



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Manuel Botelho, série "Ração de Combate", 2007-2008



         2. Feita a sua descrição externa, poder-se-á dizer, numa análise interna deste acervo documental, que o mesmo é composto essencialmente por:
 
(a) – um documento, anterior ao 25 de Abril de 1974, muito provavelmente de início de Maio de 1973, que justifica a posse e utilização de “napalm” e outras armas incendiárias pelas Forças Armadas portuguesas nos três teatros de operações (Angola, Guiné e Moçambique) da guerra que Portugal travou  nas suas províncias ultramarinas, entre 1961 e 1974.

        
(b) – um ofício, de 27 de Maio de 1974, do Comandante-Chefe das Forças Armadas portuguesas na Guiné, brigadeiro Carlos Fabião, solicitando instruções quanto ao destino a dar às bombas “napalm” existentes naquele território, quantificadas em 1.170 bombas NAP de 350 litros e 790 bombas NAP de 100 litros. Nesse ofício, sugere-se a sua transferência para a Ilha do Sal, em Cabo Verde, salvaguardando-se, todavia, uma «dotação de emergência», que permaneceria na Guiné. Esta sugestão é feita após ter sido estabelecido um contacto com o Estado-Maior da Força Aérea. O despacho manuscrito, de 15 de Junho de 1974, permite inferir que tal sugestão foi acolhida, ainda que não exista, no presente acervo documental, qualquer prova que certifique que a transferência das bombas “napalm” existentes na Guiné, ou uma parte delas, foi efectivamente realizada para Cabo Verde.

         São estes os documentos que, de um ponto de vista histórico, nos parecem revestir-se de algum interesse, justificando a presente publicação.   


Manuel Botelho, série "Ração de Combate", 2007-2008


3. Apesar de ainda ser controversa, a presença de bombas incendiárias  nos territórios portugueses em África é relativamente conhecida, não tendo, porém, sido divulgados, ao que sabemos, elementos comprovativos da sua utilização em combate por parte das Forças Armadas portuguesas. Se exceptuarmos alguma literatura memorialística, na bibliografia de natureza histórica sobre a guerra colonial o uso de “napalm” não é referenciado de forma aprofundada, nem existem estudos especificamente dedicados a este tema. Uma das primeiras referências afirma ter sido o “napalm” «utilizado contra objectivos militares bem definidos, tais como posições de artilharia antiaérea (AAA) ou veículos», acrescentando que o “napalm” era carregado «em depósitos de origem americana de 750lbs. (340 Kgs) ou portuguesa de 660 lbs. (300 kgs) sendo o pó (combustível) fornecido por Israel» ([1]). Por outro lado, é reconhecido o uso de bombas de 50 kg e de 60 litros de “napalm”  em certas operações de destruição de meios anti-aéreos do PAIGC (por exemplo, nas operações com o nome de código «Resgate» e «Estoque») ([2]).    

         Ainda que releve do domínio do caricatural ou do anedótico, merece ser transcrita uma notícia publicada no Jornal de Notícias, de 15-XI-2004:


«Quem circula na estrada que liga a localidade de Santa Comba a Vila Nova de Foz Côa é surpreendido com um invulgar aparato bélico: uma vinha vedada por cerca de vinte bombas de napalm... desactivadas, claro.

Conta o dono dos "brinquedos" bélicos que terão sido usados nos bombardeamentos com napalm na guerra nas antigas colónias portuguesas (Guiné, Angola e Moçambique). Agora, são uma atracção turística em Santa Comba, mas, dizem as pessoas da terra, também metem muito respeito a quem passa.

Cada engenho, outrora mortífero, pesa várias centenas de quilos. Foram adquiridos pelo proprietário da vinha, José Augusto Cardoso (conhecido, na região, como Zé da Várzea), em 1988, na antiga fábrica de material de guerra de Braço de Prata, em Lisboa.

Se os engenhos falassem teriam, de certo, muitas histórias para contar. Mas pelo caminho até às vinhas de Santa Comba, recorda o antigo ferroviário, houve muitas "estórias", algumas hilariantes.

Primeiro, foi o transporte: "Tive de as trazer de camião, de Lisboa até casa" e, além do espanto pelo aparato que tal carga ia causando estrada fora, o pior foi quando se cruzou com uma brigada policial. "A GNR mandou-me parar, pois os agentes também ficaram surpreendidos por trazer aqueles engenhos bélicos em cima do camião".

Depois de explicar que não era terrorista e que ali levava, apenas, a "vedação" para a sua vinha, e comprovando tudo com a documentação da compra, conseguiram, dono e carga, chegar seguros à propriedade. O sucesso na terra foi tal que a própria GNR de Vila Nova de Foz Côa pediu para as deixar colocar em frente do antigo quartel, onde estiveram até há bem pouco tempo.

A ideia de comprar as bombas teve como objectivo, segundo o dono, fazer perdurar, num lugar longínquo, o testemunho militar daqueles que combateram nas guerras coloniais, bem como todos os que sofreram com elas (…)» ([3]).



Doutro teor é, naturalmente, o depoimento prestado por Francisco da Costa Gomes à historiadora Manuela Cruzeiro, confirmando que o napalm foi utilizado «de certeza» em Moçambique. Quanto à Guiné, disse desconhecer a sua utilização nesse teatro de operações e, relativamente a Angola, reconheceu a presença de bombas no território, quando aí exercia funções de chefia militar, mas logo advertiu que sempre se opôs ao seu uso: «todos os métodos que pudessem prejudicar as populações, como, por exemplo, a utilização de produtos químicos ou de bombas napalm, iam contra os meus princípios» ([4]). «Nunca utilizei napalm. Isso foi uma das coisas que aprendi em Moçambique» ([5]). É ainda mais explícito numa outra entrevista, em que afirma nunca ter usado armas químicas no seu tempo de comandante-chefe em Angola, reconhecendo que havia napalm e desfolhantes no território, que tais desfolhantes foram usados «só no Leste», havendo a «ideia, pelo menos no meu tempo, que esses desfolhantes não matavam pessoas»; e que quando «soube que havia armas biológicas em Angola, imediatamente as mandei destruir, enterrar, nunca foram usadas»; também perguntado sobre a região onde teriam sido enterradas, Costa Gomes diz que terá sido «muito perto com certeza de Luanda, porque elas estavam armazenadas, sobretudo, na Base Aérea nº 6, que era a base de Luanda» ([6]). 
Quando foi publicado aquele primeiro depoimento memorialístico, a mera revelação, por Costa Gomes, da  existência de bombas “napalm” foi amplamente noticiada na imprensa. A questão nunca foi pacífica: num debate televisivo sobre a guerra colonial, transmitido pela estação «SIC», os generais Ricardo Durão e Duarte Silva e o ex-«comando» Francisco van Uden negaram veementemente que as nossas tropas algum dia hajam utilizado “napalm” em terras de África. Em 2001, em declarações ao Diário de Notícias, o escritor António Lobo Antunes diria: «Há pouco tempo houve desmentidos, por parte de altas instâncias militares portuguesas, sobre a utilização de napalm durante a guerra colonial. São mentirosos porque eu vi o napalm, o napalm estava onde eu estava, eu vi-o. Vi bombardear com napalm e vítimas do seu uso, testemunho isto em qualquer tribunal. Ninguém foi condenado por isso, absolutamente ninguém» ([7])


Manuel Botelho, série "Ração de Combate", 2007-2008

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         4. Os documentos aqui publicados em anexo permitem afirmar, com um elevado grau de fiabilidade, que, pelo menos até meados de 1973, as Forças Armadas portuguesas utilizaram “napalm” e outras bombas incendiárias nos três teatros de operações em África. Ainda que não se encontre assinada, a informação do tenente-coronel Ferreira da Cunha possui um grau de autenticidade e verosimilhança bastante elevado, que dificilmente pode ser posto em causa. Assim – e independentemente de quaisquer apreciações sobre a legitimidade do uso deste armamento e sobre a dimensão de tal uso –, pode concluir-se que as Forças Armadas portuguesas utilizaram “napalm” e outras bombas incendiárias em Angola, em Moçambique e na Guiné.

         A informação de meados de 1973 tece, ao início, um conjunto de considerações genéricas sobre a crueldade da guerra e dos meios bélicos, com alusões, numa típica fraseologia castrense, ao «fenómeno guerra» e ao poder do fogo («o fogo está inscrito na memória da espécie humana como algo de terrível e indomável»). Mas o que importa reter é a tentativa de justificação da posse e utilização de armas incendiárias, consideradas naquele documento como um dos únicos recursos de que as Forças Armadas portuguesas dispunham para, no limite do possível, tentar contrabalançar o desequilíbrio de forças decorrente da natureza «subversiva» da guerra travada em África.          

Não por acaso, este documento tem a classificação «Muito Secreto». Aí se descreve, de forma muito precisa, o uso de “napalm” e bombas incendiárias, indo-se ao ponto de quantificar o mesmo nos teatros de operações da Guiné e de Moçambique. Quanto a Angola, começa por se afirmar que a utilização do “napalm” se encontrava «interdita», para se dizer depois que a mesma era feita «muito limitadamente», «excepcionalmente, em situações de emergência». A Guiné era o território onde mais se recorria a este tipo de armamento. O consumo médio mensal era de 42 bombas incendiárias de 300 kg, de 72 bombas incendiárias de 80 kg e de 273 granadas incendiárias M/64. Em Moçambique verificava-se uma utilização «muito parcimoniosa», tendo-se registado um consumo médio mensal, de 1968 até finais de Fevereiro de 1973, de 14 bombas incendiárias de 300 Kg, de 47 bombas incendiárias de 80 kg e de 29 granadas incendiárias M/64. A comparação com as estatísticas relativas à Guiné revela uma discrepância muito significativa, bastando recordar: na Guiné, 42 bombas incendiárias de 14kg; em Moçambique, 14 bombas desse volume.

        

Manuel Botelho, série "Ração de Combate", 2007-2008

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         5. Nesta brevíssima nota, não cabe avaliar da dimensão do recurso a este tipo de armas, nem sequer indagar quando teve início. Sabe-se, porém, que, quanto à Guiné, o “napalm” foi utilizado desde 1965, nomeadamente na «Operação Resgate», realizada na península do Cantanhês, no sul do território ([8]), e tudo indicia que as bombas incendiárias foram usadas até ao 25 de Abril de 1974. É curioso notar, por outro lado, que o brigadeiro Carlos Fabião, em 27 de Maio de 1974, ainda sugeria que se mantivesse na Guiné uma «dotação de emergência» desse armamento. Como é curioso notar que a personalidade que, em meados de 1973, descreve e justifica o uso das armas incendiárias, o tenente-coronel José Luís Ferreira da Cunha, é a mesma que, após a revolução de 25 de Abril, participa no processo de transferência das bombas para Portugal, via Cabo Verde.

         Interessa assinalar um outro ponto. Apesar de aludir, algo criticamente, à «hipersensibilidade» existente quanto às armas incendiárias, o tenente-coronel Ferreira da Cunha tem a consciência clara da delicadeza da utilização das mesmas. Uma consciência que, de resto, era partilhada pelas generalidade das Forças Armadas. É certo que aquele oficial escrevia que «utilizar napalm ou uma arma nuclear táctica sobre um posto militar parece mais tolerável do que apunhalar ou fuzilar homens, mulheres ou crianças não empenhadas na luta, ou de colocar uma bomba, uma armadilha ou qualquer arma capaz  de criar vítimas indiscriminadas». Mas não é menos certo que Ferreira da Cunha reconhece que, até por questões de propaganda e de imagem, haveria que recorrer a este tipo de armamento com o «maior sigilo possível». Além de sigilosa, adianta, a utilização destas bombas era «criteriosa e limitada».

De facto, o uso de “napalm” envolvia diversos problemas. Desenvolvido em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial, por uma equipa de químicos da Universidade de Harvard, dirigida por Louis Frieser, o “napalm” corresponde a um conjunto de líquidos inflamáveis à base de gasolina gelificada, ou, melhor dizendo, é o agente espessante de tais líquidos, que, quando misturado com gasolina, a transforma num gel pegajoso e incendiário. O seu nome – Napalm – deriva do acrónimo da designação dos seus componentes originais, sais de alumínio co-precipitados dos ácidos nafténico e palmítico; estes sais eram adicionados a substâncias inflamáveis para serem gelificadas. Do ponto de vista bélico, o “napalm” aumenta de forma significativa a eficiência dos líquidos inflamáveis. 

Sobretudo a partir da guerra do Vietname, os seus efeitos sobre os seres humanos foram ilustrados em imagens crudelíssimas, divulgadas por todo o mundo.  Recorde-se a célebre fotografia de uma rapariga sul-vietnamita de nove anos, gravemente queimada pelo “napalm”, a fugir, horrorizada e nua, dos bombardeamentos da aviação norte-americana, que foi publicada em 1972 e logo se tornou uma das mais famosas imagens do século XX e um dos ícones mais expressivos dos dramas da guerra no Vietname, alimentando o imaginário pacifista à escala planetária ([9]). No Ultramar português não foram captadas imagens desse teor, pelo menos de acordo com a informação actualmente disponível ([10]). Várias hipóteses se podem avançar: a muito menor presença de jornalistas nos diferentes teatros de operações; a actividade da Censura; e, a mais plausível, o facto de a utilização de “napalm” e de bombas incendiárias não ter adquirido, de forma alguma, a expressão que teve nos conflitos da Argélia, da Coreia ou do Vietname.

No direito internacional, incluindo o direito humanitário, não podia, então, falar-se rigorosamente de interdição das armas bacteriológicas (ou biológicas) e, muito menos, das armas químicas. Por isso, em Agosto de 1968, a delegação britânica à Conferência de Genebra apresentou um documento de trabalho considerando não satisfatório o Protocolo vigente (de 1925), sobretudo porque: (a) vários Estados não eram aderentes (antes de mais, os Estados Unidos e o Japão); (b) alguns Estados aderentes reservavam-se o direito de utilizar armas interditas, em certas condições; (c) discutia-se a natureza convencional ou consuetudinária de várias normas do Protocolo; (d) a terminologia do Protocolo estava ultrapassada e era equívoca. Propunha-se, então, separar as duas categorias de armas e aprovar uma nova convenção, completando (mas não substituindo) o Protocolo vigente. No entanto, perante as críticas à proposta britânica, o Comité de Genebra optou por solicitar a intervenção da Assembleia Geral e do Secretário-Geral da ONU, que começaram por designar um grupo de especialistas com o fim de estudar os efeitos da eventual utilização de armas químicas e bacteriológicas. Na introdução ao relatório posteriormente elaborado, o Secretário-Geral U Thant incitava os membros da ONU a afirmarem «claramente que a proibição enunciada no Protocolo de Genebra se aplica ao uso na guerra de todos os agentes químicos bacteriológicos e biológicos (incluindo o gás lacrimogéneo e outros gases irritantes), actualmente existentes ou susceptíveis de utilização no futuro» ([11]).

A Assembleia Geral da ONU acabou por aprovar, em 16 de Dezembro de 1969, a resolução 2603 (XXIV), a qual, em substância, constatava que a regra do Protocolo de Genebra era uma norma consuetudinária, convidava todos os Estados a conformar-se estritamente aos princípios e objectivos do Protocolo de Genebra e, em especial, como conclusão da sua Parte A, declarava contrário ao direito internacional o uso quer de todo o agente químico de guerra (substâncias químicas, estejam em estado gasoso, líquido ou sólido), em razão dos seus efeitos tóxicos directos sobre o homem, animais ou plantas, quer de qualquer agente biológico de guerra (organismo vivos, seja qual for a sua natureza, e produtos infecciosos derivados) com a intenção de provocar doença ou morte de pessoas, animais ou plantas e cujos efeitos dependem da sua propensão a multiplicar-se na pessoa, no animal ou na planta atacados ([12]).




Manuel Botelho, série "Ração de Combate", 2007-2008


6. Em Agosto de 1968, Amílcar Cabral enviara uma petição à Comissão de Descolonização da ONU assinalando que as forças portuguesas bombardeavam intensamente o território da Guiné-Bissau com “napalm” e fósforo branco e que se preparavam para recorrer a produtos químicos desfolhantes e a gases tóxicos contra as populações locais. Na sequência desta petição, foi, em nome do «grupo afro-asiático», apresentado um novo projecto de resolução, cujo texto condenava Portugal  e solicitava a elaboração de um relatório (aliás, nunca concluído) sobre a utilização de armas de destruição maciça e outros aspectos da guerra colonial, sobretudo na Guiné portuguesa. Por fim, pedia-se aos Estados para, por todos os meios, impedirem o eventual emprego de armas de destruição em massa nessa guerra colonial. Após breve discussão, a Comissão apreciou o projecto de resolução a 23 de Setembro de 1968. O parágrafo principal – que condenava Portugal – foi objecto de votação separada e aprovado por dezoito votos contra quatro (Austrália, Estados Unidos, Itália e Reino Unido) e uma abstenção (Finlândia). Mas o conjunto do projecto não teve oposição e foi aprovado por dezanove votos e quatro abstenções, tendo a resolução sido logo transmitida ao Conselho de Segurança, à Comissão de Direitos do Homem e aos diferentes Estados ([13]).

No ano seguinte, Amílcar Cabral  voltou a denunciar o uso de “napalm” pelas forças militares portuguesas na Guiné perante uma comissão de especialistas da Comissão de Direitos do Homem da ONU, reunida na Guiné-Conakry. Na sua intervenção oral, Cabral denunciou tais bombardeamentos,  que comprovou quer com o testemunho das reportagens de jornalistas que tinham visitado as “regiões libertadas” (entre eles, o ensaísta e historiador britânico Basil Davidson), quer com a presença de «um dos compatriotas queimados pelo napalm. E se, por exemplo, os [membros da Comissão] pudessem deslocar-se a Boké [que se situa na zona fronteiriça da República da Guiné-Conakry] veriam outras pessoas vítimas dos resultados dos bombardeamentos com napalm» ([14]).

A partir da XXV sessão, a Assembleia Geral da ONU começou a mostrar-se «profundamente preocupada com o uso de substâncias químicas» e a condenar o «bombardeamento cego da população civil e a destruição impiedosa e maciça de aldeias e bens a que se dedicam as forças militares portuguesas em Angola, em Moçambique e na Guiné (Bissau)». Consequentemente, quer na resolução 2707 (XXV), aprovada em 14 de Dezembro de 1970, quer na resolução 2795 (XXVI), aprovada em 10 de Dezembro de 1971, pedia ao Governo português para não usar «meios de guerra químicos e biológicos contrários às regras geralmente reconhecidas pelo direito internacional, enunciadas no Protocolo referente à proibição de uso na guerra de gases asfixiantes, tóxicos ou similares e de meios bacteriológicos, assinado em Genebra a 17 de Junho de 1925, e na resolução 2603 (XXIV) da Assembleia Geral, datada de 16 de Dezembro de 1969». A Assembleia Geral manteve posteriormente esta orientação (em especial, a propósito da visita da Missão Especial às regiões libertadas da Guiné), mas a resolução 3113 (XXVIII), de 12 de Dezembro de 1973, já não abrangia a Guiné-Bissau, por esta ser agora considerada um Estado independente.  Também o Conselho de Segurança, reunido em África, através da Resolução 312 (1972), de 4 de Fevereiro, aprovada por nove votos e seis abstenções, se mostrou «profundamente preocupado pelos relatórios que referiam o emprego de substâncias químicas por parte de Portugal nas suas guerras coloniais contra os povos de Angola, de Moçambique e da Guiné (Bissau)».         
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Manuel Botelho, série "Madrinha de Guerra", 2010

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         7. Esta nota não tem por objectivo analisar exaustivamente o uso de bombas incendiárias nas guerras coloniais e as suas implicações políticas, militares ou diplomáticas. Dir-se-á, em todo o caso, que era altamente improvável que tal facto fosse desconhecido dos mais principais responsáveis políticos e militares, sobretudo de Francisco da Costa Gomes ou de António de Spínola, ambos com altas responsabilidades militares antes do 25 de Abril: o primeiro, estivera em Moçambique e em Angola, de 1965 a 1972, e de 1972 a 1974 exerceu funções como Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas; o segundo, foi Governador e Comandante-Chefe das Forças Armadas da Guiné (de Maio de 1968 a Agosto de 1973) e Vice-Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas (de Janeiro a Março de 1974). Costa Gomes, como se disse, testemunhou que teve conhecimento da presença de “napalm”. Mas, estranhamente, afirmou não saber se este foi usado na Guiné («na Guiné, não sei»); ora, foi Costa Gomes que, na qualidade de Chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, que reassume em 30 de Abril de 1974, despacha favoravelmente, e com carácter de urgência, a proposta de Fabião para retirada das bombas da Guiné: 1.170 bombas de 350 litros e 790 de 100 litros. É singular, por isso, que, anos depois, Costa Gomes haja afirmado nada saber quanto ao uso de “napalm” na Guiné. Quanto a António de Spínola, apesar de nunca se ter pronunciado expressamente sobre o tema, podem citar-se alguns testemunhos inequívocos constantes de um livro sobre a guerra na Guiné publicado em 1973 na África do Sul. Por um lado, o seu autor viu bombas de “napalm”, «armazenadas no aeroporto de Bissalanca com as indicações de código MI/65 and RPX, as quais não correspondem a marcas da NATO ou dos Estados Unidos. Estas bombas altamente inflamáveis podem ter dezenas de proveniências (…), ainda que alguns dados sugiram que Portugal se encontra a produzir as suas próprias bombas» ([15]). Em segundo lugar, porque Spínola havia reconhecido, numa entrevista concedida a Peter Hannes Lehman, da revista alemã Stern, que as armas químicas eram usadas «para limpar o mato de ambos os lados das estradas, para evitar emboscadas. Ninguém podia ou iria indicar qual o seu país de origem» ([16]).


Manuel Botelho, série "Ração de Combate", 2007-2008



8. Não é de excluir que a informação de Ferreira da Cunha tivesse um objectivo: justificar, perante o poder político, a continuação do recurso àquele tipo de armamento. Na verdade, tratando-se de um documento interno, classificado de «muito secreto», porque motivo teria Ferreira da Cunha a necessidade de defender de forma tão empenhada a utilização de bombas incendiárias? Para quê uma retórica tão inflamada? De facto, a sua informação, mais do que um relatório objectivo e imparcial, constitui uma autêntica alegação de defesa do uso do “napalm”. Isto permite supor, ainda que se trate de uma mera hipótese, que, a dada altura, sensivelmente em meados de 1973, pode ter sido questionada a utilização de bombas incendiárias. Nos meios políticos ou nos meios militares. Mais provavelmente, nos meios políticos. E, avançando ainda mais no campo das hipóteses, nos meios governativos – talvez pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros ou até pelo próprio Presidente do Conselho ([17]).

        Abandonando o movediço campo das hipóteses, um ponto merece realce: até ao 25 de Abril de 1974, uma quantidade apreciável de bombas incendiárias permaneceu em África – ou, pelo menos, na Guiné. Se continuaram a ser utilizadas após a informação de Ferreira da Cunha, de meados de 1973, é algo que não sabemos. Mas os documentos que agora se publicam revelam que a incómoda e desconfortável presença do “napalm” em África se prolongou, pelo menos, até Maio de 1974. Quanto ao seu paradeiro actual, os dados são escassos. Mas o facto de, nos nossos dias, vinte bombas incendiárias servirem de vedação a uma vinha no Douro é algo que não pode deixar de surpreender, pelo que nos revela dos insondáveis caminhos da História e dos homens que a habitam.

        


        


 António Araújo      António Duarte Silva



Nota: o presente texto, redigido em Outubro de 2008, foi publicado originalmente na revista RI – Relações Internacionais, nº 22, Junho de 2009, pp. 121-139. A versão agora publicada foi objecto de alterações pontuais, pelo que se irá divulgar brevemente mais documentação sobre o uso de «napalm» na guerra de África.







[1] Cfr. LOPES, Mário Canongia – A história do F-84 na Força Aérea Portuguesa. Mais Alto. Revista da Força Aérea. Suplemento. Ano XXVI. 258. Março-Abril de 1989, p. 12. Cfr. tb. GUERRA, João Paulo Memória das Guerras Coloniais. Porto: Afrontamento, 1994, p. 392.   
 
[2]  Cfr. FRAGA, Luís Alves – A Força Aérea na Guerra em África – Angola, Guiné e Moçambique (1961-1974). Lisboa: Prefácio, 2004,  pp. 109-111.
 
[3] Cfr. Jornal de Notícias, de 15-XI-2004.
 
[4] Cfr. CRUZEIRO, Maria Manuela – Costa Gomes, o Último Marechal. Lisboa:  Editorial Notícias, 1998, p. 138. Para uma síntese das diversas declarações de Costa Gomes, cfr. RODRIGUES, Luís Nuno – Marechal Costa Gomes. No centro da tempestade. Biografia. Lisboa: A Esfera dos Livros, 2008, pp. 87-88. MATEUS, Dalila Cabrita – A PIDE/DGS na Guerra Colonial, 1961-1974. Lisboa: Terramar, 2004, p. 101.  
 
[5] Cfr. o depoimento de Costa Gomes in ANTUNES, José FreireA Guerra de África (1961-1974). Vol. I. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995, pp. 118-119, onde acrescenta: «eu achei que o napalm não tinha absolutamente nenhuma utilização prática para a guerra que fazíamos e mandei embora o napalm, embora se pensasse que utilizava napalm».
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[6] Apud SANTOS, Hélder e MAFUTA, Drumont (orgs.) – Angola: Depoimentos para a História Recente, 1.º Vol. Luanda: Ed. dos Autores, 1999, pp. 289-291. É interessante verificar que, relativamente ao uso de desfolhantes, Costa Gomes diga que «foram usados desfolhantes só no Leste [de Angola]» (p. 291), enquanto Soares Carneiro, na mesma obra, afirme peremptória e rispidamente ao entrevistador: «o senhor está a pretender que eu caia na asneira e na inverdade, na falsidade de dizer que se fizeram bombardeamentos com desfolhantes. Eu disse já que não se fizeram bombardeamentos com desfolhantes no Leste» (p. 231). Noutra ocasião, Costa Gomes é ainda mais afirmativo: «Claro que foi utilizado! No Leste de Angola eu próprio usei desfolhantes!»: cfr. DUARTE, António de Sousa  Acerto de Contas. Lisboa: Âncora Editora, 2012, p. 86. 
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[7] Cfr. Diário de Notícias, de 8-XII-2001.
   
[8] Esta operação está minuciosamente descrita pelo então Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné, ABECASIS, José Krus – Bordo de Ataque. Vol. II. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, pp. 487ss.
 
[9] Como afirmou o último director da Associated Press em Saigão, «esta fotografia capta não apenas o mal desta guerra, mas o mal de todas as guerras (...). Na expressão da rapariga estava medo e horror, que era o que todos sentimos relativamente à guerra. A fotografia mostrava os efeitos da guerra, e quão errada e destrutiva ela era. As pessoas olhavam-na e diziam “Esta guerra tem de acabar”»:  cfr. CHONG, Denise - The Girl in the Picture. The story of Kim Phuc, the photograph, and the Vietnam War. Londres: Scribner, 2001, p. IX. Cfr. ainda BROTHERS, Caroline – War and Photography. A cultural history. Londres: Routledge, 1997, pp. 178ss, e a breve alusão no notável ensaio de BURKE, Peter - Eyewitnessing. The uses of images as historical evidence. Londres: Reaktion Books, 2007, pp. 150-151. Pouco depois, descobrir-se-ia a identidade da rapariga: Kim Phuc, que seria usada como arma de propaganda pelo regime vietnamita, sendo mais tarde enviada para estudar em Cuba, na universidade. Por ironia, aos vinte e nove anos Kim Phuc fugiria para o Ocidente.
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[10] De facto, não existem registos fotográficos significativos, ao que sabemos, dos efeitos do “napalm” nas populações africanas. Há, ainda assim, uma imagem do fotógrafo húngaro Bara István, que acompanhou as forças do PAIGC em 1969/70 e se encontra disponível in www.blogueforanada, aqui, acompanhada de um poema de Salancur, de 1974: «Napalm / que pões branca / a negra pele / quem te inventou? / que queimas árvores centenárias / que fazes em sal / a terra arável / quem te soltou? / tu… / de quem nasce / a luz cega / e o som que ensurdece / e causas dor / sem saber a quem / se ao homem que guerreia / se à criança que brinca / ou à mulher que semeia / quem te apaga a luz? / e não te deixe voar / quem te vai silenciar?». Publicamo-la aqui também:



Fotografia de Bara István, de alegada vítima de napalm na Guiné, aqui 

 
[11] Cfr. FISCHER, Georges Chronique du contrôle des armements. Annuaire Français de Droit International. Ano XV, 1969, pp. 127ss.
 
[12]  Note-se que a Convenção sobre a interdição e a eliminação das armas químicas só veio a ser aprovada em Paris, a 13 de Janeiro de 1993.
 
[13] Cfr. BARBIER, Maurice   Le Comité de Décolonisation des Nations Unies. Paris : LGDJ, 1974, p. 378.
 
[14] Cfr. CABRAL, Amílcar Les crimes des colonialistes portugais face à la Déclaration Universelle des Droits de l’Homme. s.l.: PAIGC, mimeog., s.d.,  p.  12.
 
[15] Cfr. VENTER, Al J. Portugal’s Guerrilla War – The Campaign for Africa. Cidade do Cabo: John Malherbe Pty Ltd, 1973, p. 177. Trata-se de um jornalista sul-africano, com extensa bibliografia publicada, especialista de questões  militares e política  de desenvolvimento em África, sobretudo das guerras coloniais portuguesas e do Biafra.  Em apêndice a essa obra, é reproduzida uma entrevista com o general Spínola, dividida em duas partes: entrevista oral, no Palácio do Governo (em que o intérprete foi Otelo Saraiva de Carvalho) e respostas escritas a perguntas prévias (ver nota seguinte).
 
[16] Idem, in loc. cit. As entrevistas concedidas, respectivamente à revista Stern, em 25 de Março de 1971, e a Al Venter, em 31 de Março de 1971, estão transcritas in SPÍNOLA, António de Linha de Acção. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1971, pp. 361-367 e pp. 371-376, mas estes textos foram “seleccionados”, e são muito curtos e “anódinos”.
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[17] De acordo com a obra de GOMES, Carlos Matos e AFONSO, Aniceto – Os Anos da Guerra Colonial. Vol. 14. Lisboa: Quidnovi, 2009, p. 40 e pp. 47-48, o documento de 9-V-1973 destinava-se a apoiar a posição portuguesa na discussão dos protocolos adicionais à Convenção de Genebra.






DOCUMENTO Nº 1






Primeira e última página do relatório de Ferreira da Cunha 



Assunto: UTILIZAÇÃO DO NAPALM E OUTRAS ARMAS INCENDIÁRIAS



1.     ENQUADRAMENTO DO ASSUNTO



a.     O fenómeno guerra é em si mesmo um fenómeno cruel que exige uma infinidade de actividades, muitas das quais são acções violentas que se saldam em mortos e feridos.

É pois necessário um raciocínio frio e um grande esforço de abstracção para atribuir “graus de crueldade” às armas utilizadas e será sempre discutível um critério para a sua “graduação”.



b.     O fogo está inscrito na memória da espécie humana como algo terrível e indomável, constitui um arquétipo a que o homem é particularmente sensível. Por isso tem-se explorado essa hipersensibilidade numa campanha muito insistente e concertada que visa a proibição do uso do Napalm (sobretudo este).

c.      Quais são as potências mais interessadas nesta campanha?



Procuremos a resposta a esta questão:



(1) Recordemos que a estratégia indirecta com que se vai agredindo e submetendo o ocidente tem como vector principal no aspecto militar a guerra subversiva.



(2) Consideremos que em guerra subversiva o inimigo subversivo actua com os seguintes elementos essenciais:

- forças apeadas;

- armamento ligeiro, minas e armadilhas;

- exploração do “terror” sobre populações (que lhe passam a garantir apoio    logístico e de informações, apoio que passam a negar ás forças da ordem);

- guerra psicológica (desde os mais baixos escalões ao nível político da opinião pública mundial).



(3) Consideremos os elementos essenciais relativos a F. Armadas tipo ocidental:

- utilizam a F. Aérea e a marinha além das tropas apeadas;

- podem movimentar armamento pesado (pouco eficaz nesta guerra), mas só muito limitadamente podem utilizar as minas e armadilhas;

- por razões morais negam se a si mesmas a utilização do terrorismo;

- a guerra psicológica, (nos seus aspectos mais amplos, a nível nacional e internacional) no ocidente não é conduzida pelas F. Armadas.

(4) Se compararmos (2) com (3) verificamos que o “inimigo subversivo” tem as seguintes vantagens:

      - utilização eficaz das minas e armadilhas, dada a grande sujeição das forças e sociedades ocidentais às linhas de comunicações terrestres;

      - utilização do “terror sobre populações” que fornece o elemento essencial da vitória em guerra subversiva: informações totais e oportunas;

      - e que forças tipo ocidental tem as vantagens limitadas a:

      - grande liberdade de acção dos meios aéreos e navais embora estes sejam de baixo rendimento custo/eficácia nesta guerra; são, no entanto, importantes quando usados maciçamente (bombas pesadas de aviação, napalm e meios incendiários, bombardeamentos navais e minagem de portos).

(5) É evidente que os inimigos do Ocidente têm toda a vantagem em estigmatizar o uso dos bombardeamentos navais e aéreos (explosivos e incendiários) bem como as minagens de portos, e em deixar cair ao esquecimento a utilização de minas e armadilhas terrestres as sabotagens e o terror sobre populações.

(6) Não é difícil concluir-se que a proibição ou estigmatização do napalm e outros  meios incendiários é importante na luta contra o Ocidente.

(7) Para quem, ingenuamente, tenha dúvidas da conclusão (6) a origem dos membros do “EXPERT GROUP” parece esclarecedora: Nigéria, Roménia, Checoslováquia, Suécia, Rússia, peru e México.



2.     FALSOS CRITÉRIOS



Na campanha da ONU contra os meios incendiários tem-se utilizado dois argumentos basilares:

- são maciços (“fizeram mais vitimas na II Grande Guerra que os meios atómicos”);

- são cruéis (exploração referida do arquétipo “fogo” presente em muitas espécies animais, incluindo o homem).



Convém considerar que:



(1) Na II G. Guerra só se utilizaram duas bombas atómicas (“minúsculas” nos padrões atuais) e durante anos se utilizaram biliões de quilos de materiais incendiários.

(2) Nos T.O. de guerra subversiva há muito mais vitimas civis provocadas por:

- minas e armadilhas

- sabotagens e outras acções de terror sobre populações, do que por napalm e outros meios incendiários.




3.     CONCLUSÕES



Convém ter bem presente neste tipo de problemas que:

- guerra, todas as armas são para matar e ferir e, em relação às vitimas pouco interessa discutir o nível de crueldade da arma que as atingiu;



- na impossibilidade de proibir toda a guerra e toda a violência o critério deve visar essencialmente disciplinar o uso das armas de todos os tipos.



Em resumo parece, que se deveria proibir a utilização na guerra de todo e qualquer tipo de arma:



         - quando se destina a criar vitimas e terror sobre populações civis;


         - quando dessa utilização resultem, duma só acção, vítimas em número maciço;


         - quando a sua utilização se faça em conduções que envolvem o conhecimento prévio de que as vítimas não estão a intervir directamente no conflito (mulheres, crianças e civis não empenhados);


         - quando não se possam prever os tipos de vítimas que irão causar correndo-se com isso o risco de que sejam pessoas não empenhadas na luta (caso de minas em estradas em áreas com populações).


Nota: Uma disciplina tendente a evitar a “crueldade desnecessária”.



Em resumo:

As convenções sobre o fenómeno cruel devem constituir uma disciplina tendente a evitar toda a “crueldade excessiva e desnecessária”.

Isto consegue-se não a proibição de certos tipos de arma, mas com proibição de certas utilizações para as armas.

Utilizar napalm ou uma arma nuclear táctica sobre um posto militar parece mais tolerável do que apunhalar ou fuzilar homens, mulheres ou crianças não empenhadas na luta, ou de colocar uma bomba, uma armadilha ou qualquer arma capaz de criar vitimas indiscriminadas.



1.  FACTOS CONCRETOS SOBRE A UTILIZAÇÃO DOS INCENDIÁRIOS NOS T.O. ULTRAMARINOS



a)     Os Comandos Chefes e comandos de Regiões Aéreas do Ultramar reduzem-se mínimo as operações “napalm” e rodeiam nas do maior sigilo possível (como há muitos executantes intervenientes tal sigilo não se pode garantir a 100%).

b)    Para os fins que houver por convenientes indicam-se elementos de utilização os quais bem demonstraram a sua criteriosa e limitada utilização:



(1) ANGOLA

Utilização interdita do NAPALM, na medida em que é muito pouco eficaz em relação aos objectivos existentes neste Teatro de Operações.

Excepcionalmente, em situações de intervenção de emergência associada a carência de “tectos” (que torna proibitivo o uso de outros tipos de bombas) o NAPALM é utilizado muito limitadamente, após estudo e referenciação de objectivos nitidamente militares.



(2) GUINÉ

É neste Teatro de operações que, tacticamente, mais se carece da utilização de meios incendiários.

Há ordens rigorosas para redução ao mínimo da sua utilização e em todos os casos de evitar que elementos da população sejam afectados pelo seu emprego.

O consumo médio mensal verificado é o seguinte:

Bombas incendiárias 300Kgs     42

Bombas incendiárias 80Kgs       72

Granadas incendiárias M/642     73



Nota: A imperiosa carência táctica justifica os eventuais inconvenientes de ordem política os quais sempre existiram visto que a sua utilização não limitaria as acusações sistemáticas da propaganda inimiga.



(3) MOÇAMBIQUE

Utilização muito parcimoniosa em condições ao T.O. Angola.

Depois de 1968 até final de Fevereiro de 1973 o consumo médio mensal verificado é o seguinte:

Bombas incendiárias 300Kgs               14

Bombas incendiárias 80Kgs                  47

Granadas incendiárias M/64                  29



                      



Do Gabinete CEMGFA

José Luís Ferreira da Cunha

Ten-Cor. CEM




DOCUMENTO Nº 2



Ofício secreto de Carlos Fabião, com despacho de Costa Gomes


COMANDO-CHEFE DAS FORÇAS ARMADAS

GUINÉ



QUARTEL GENERAL



Repartição de Operações



AO

GENERAL CHEFE DO ESTADO-MAIOR GENERAL DAS FORÇAS ARMADAS



Nº 10.078/C PARA CONHECIMENTO

Pº CZACVG



ASSUNTO: BOMBAS NAPALM



1.  Existem no TO.

- 1170 bombas NAP de 350 litros

- 790                        de 100 litros



2.  Dado que, pelo seu volume, não é possível subtraí-las das vistas a possíveis observadores, e ainda porque a utilização de Napalm tem sido motivo de acérrimas críticas feitas pelo In, na sua campanha diplomática e psicológica, torna-se necessário retirá-las do TO.



3.  De contacto havido entre a ZACVG e o Estado-Maior da Força Aérea foi estabelecido, com o que este Comando concorda, que as bombas em referência fossem transportadas para a Ilha do sal, de onde lhes seria dado posterior destino, salvaguardando, no entanto, uma dotação de emergência, a manter no TO.



4.  Solicita-se a V. Exa. uma decisão sobre o assunto.





Bissau, 27 de Maio de 1974





                                                                  O COMANDANTE-CHEFE

                                      CARLOS ALBERTO IDÃES SOARES FABIÃO

                                                                        BRIGADEIRO






DOCUMENTO Nº 3



Certificado de transferência de bombas napalm



COMANDO-CHEFE DAS FORÇAS ARMADAS DA GUINÉ



QUARTEL-GENERAL




3ª REPARTIÇÃO

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CERTIFICADO DE TRANSFERÊNCIA Nº 626/74



DE: CHEFE DA 3ª REPARTIÇÃO /QG/CCFAG





DATA:28Mai74



PARA: GENERAL CHEFE DO ESTADO MAIOR GENERAL DAS FORÇAS ARMADAS





Nº de exemplares



Nº de exemplares



BOMBAS DE NAPALM

NOTA Nº 10.078



  -



1



-



O PRESENTE DOCUMENTO QUANDO DESTACADO NÃO TEM CLA. DE SEGURANÇA



Declaro que transferi o material mencionado



Assinatura   ______________________________

(ilegível)



Manuel Francisco Nicolau

1º Sargento de Infantaria

Chefe da Secção Expediente-Arq.





Declaro que transferi o material mencionado



Assinatura   ______________________________





Nome, posto e cargo



legíveis



  




DOCUMENTO Nº 4







Lisboa, 19 de Junho de 1974



Nota nº 199/GB

Proc. 2034



Para:

Chefe do Gab/CEMF Aérea



Assunto: Bombas NAPALM



Refª: Nota nº 10.078/C, de 27; AI74, do ComChefe Guiné





Junto envio a V. Exa. fotocópia do documento de referência para cumprimento do despacho de Sua Excelência o General-Chefe do EMGFA nele exarado.







                                                                  O Chefe do Gabinete do CEMGFA



                                                                         José Luís Ferreira da Cunha

                                                                               Ten.-Cor do CEM





        

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