quarta-feira, 16 de maio de 2012

Mistérios relevantes.

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Alain Keler, Lisboa, 1975

Alfredo Cunha, Lisboa, 1975




A fotografia de Alfredo Cunha


A imagem de Alain Keler, usada sem citação do autor pela Oficina do Livro

A imagem de Alain Keler, «tratada» pela editora Planeta




Os caixotes empilhados junto ao Padrão dos Descobrimentos são uma das imagens mais marcantes do pós-25 de Abril, representando as sequelas da descolonização e o regresso de milhares de retornados a Portugal. Até pelo «jogo» que suscita com a simbologia imperial que o Padrão pretende evocar, trata-se de uma imagem poderosíssima, quer do ponto de vista iconográfico, quer do ponto de vista histórico.

         Existem, pelo menos, duas fotografias conhecidas deste cenário pós-imperial. Uma, de Alain Keler. Outra, de Alfredo Cunha, que pode ser vista em todo o seu esplendor no livro Naquele Tempo, 1970-1995. Fotografias de Alfredo Cunha, Lisboa, 1995, pág. 109 (já antes, com o nº 116, no livro Disparos, Lisboa, 1977, s/pág., em edição promovida por João Medina, na saudosa Terra Livre).   

         A fotografia de Alfredo Cunha foi utilizada na edição do livro Descolonização Portuguesa. O Regresso das Caravelas, de João Paulo Guerra, das Publicações Dom Quixote, em 1996. Na ficha técnica, indica-se «Fotografia de Alfredo Cunha». Tudo bem, portanto.

         Mas repare-se como na edição da mesma obra, agora pela Oficina do Livro, em 2009, há uma subtil diferença. A imagem que aparece na capa já não é a de Alfredo Cunha mas a de Alain Keler. Que diz a ficha técnica? «Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro». Referência ao autor da fotografia? Nenhuma. Terá a Oficina do Livro utilizado sem autorização a fotografia de Alain Keler? O seu nome não é sequer citado.
         Agora, no recente livro de Sarah Adamopoulos, Voltar. Memória do Colonialismo e da Descolonização (Planeta, Abril de 2012), é utilizada de novo a imagem de Alain Keler. E surge a indicação devida: «Design da capa: ArdCor», «Imagem: © Alain Keler/Sygma/Corbis». A fotografia foi adquirida num banco de imagens, a Corbis, o que não suscita problema, ponto que já discutimos aqui. Simplesmente, a ArdCor decidiu… dar cor. Hard-core. Onde antes era tudo a preto e branco, surge agora um céu pintado... É legítimo manipular assim uma imagem, adulterando o original? Mais: quando se compram os direitos de uso de uma fotografia, é lícito, até do ponto de vista jurídico, fazer isto? É uma dúvida que coloco. O fotógrafo Alain Keler teve a sua imagem utilizada sem autorização – pelo menos, sem referência à respectiva autoria – por parte da Oficina do Livro. E, agora, pela Planeta, vê-a colorida e objecto de um substancial «tratamento» gráfico. Não quero crer que o fotógrafo tenha autorizado isto. Como não quero crer que João Paulo Guerra se haja apercebido de que a Oficina do Livro usou, sem citar o autor, a imagem de Alain Keler. Como não quero crer que Sarah Adamopoulos, autora criteriosa, cujos livros se pautam sempre por grande apuro gráfico, haja acompanhado a Planeta e a ArdCor neste processo de manipulação/adulteração. A mesma imagem, ainda que sob dois olhares diferentes (o de Alfredo Cunha e o de Alain Keler), surge em três livros saídos em poucos anos. Isto demonstra a falta de imaginação, de trabalho e de originalidade de muitos dos nossos gráficos e o lamentável desinvestimento das editoras numa arte nobre, que tão desprezada tem sido entre nós. Porquê?
........Mistérios relevantes.


António Araújo

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