quarta-feira, 16 de maio de 2012

O espírito do lugar: a Ponte das Quatro Esfinges.


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Ponte Egípcia. Fotografia de João Medina



O canal Fontanka desagua na margem esquerda do rio Neva em cujo estuário foi edificada São Petersburgo, atravessando toda a parte central da cidade, sendo um dos 93 canais e rios da antiga capital russa desde 1712 a 1922. Foi nessa zona no coração da cidade erguida por Pedro, o Grande, em 1703, que se edificaram as antigas residências apalaçadas da nobreza russa e da família do czar, com o palácio de Pedro, o Grande situado no jardim de verão da Fontanka, que em meados do séc. XVIII constituía a fronteira sul da cidade dos canais. Foi em 1719 que esse canal recebeu o seu nome actual, uma vez que a sua água era fornecida pelas fontes do Jardim de Verão. Entre os palácios nobres mais célebres deste bairro estão o Palácio de Verão do czar e o Palácio Anichkov. Entre 1780 e 1790, Andrei Kvasov dirigiu os trabalhos dum grande embarcadouro de granito, o que ajudaria a fixar o curso do canal. Entre as muitas relíquias arquitectónicas das margens do Fontanka contam-se ainda os palácios Sheremetev, Belozersky, Shuvalov e ainda a igreja de Santo Panteleimon. Algumas das habitações onde tinham residido (ou apenas frequentado) alguns dos mais célebres escritores russos dos sécs. XIX e XX transformar-se-iam mais tarde em museus, de que destacamos os de Puchkine, Turguenev e Anna Akhmatova.
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Esfinges em frente ao Cais da Academia das Artes, 1835
As duas estátuas de Amenhotep III foram trazidas do Egipto em 1832
Um exemplo da "egiptomania" oitocentista em São Petersburgo
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O "revivalismo egípcio" em São Petersburgo, 1909

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O canal Fontanka é atravessado hoje por 15 pontes, sendo a mais famosa a ponte Anichvo, pela qual passa a famosa Perpectiva Nevski (avenida de Alexandre Nevski). A Ponte Egípcia foi a primeira ponte metálica do canal, nela passando a rua. Ao ser reerguida em 1955, as quatro estátuas de Pavel Petrovich Sokolov (1764-1835) seriam repostas nos seus cais primitivos, ao lado dos obeliscos cobertos de hieróglifos. O mesmo escultor de estilo decorativo classicista fez os dois grifos de asas doiradas, na ponte da Banca sobre o canal Griboiedov, que servem de suporte aos cabos que seguram a obra construída por Tretter. A profusão de canais, a presença constante da água na vida e no dédalo da cidade, as construções intermináveis de verdadeiras avalanches de fachadas de palácios que correm pelos cais em direcção a um mar que fica sempre além, dão a esta cidade uma estrutura própria, ao mesmo tempo móvel e sólida, palpitante e solene, que o classicismo barroco e alguma fantasia dos sécs. XVIII e XIX reforçam e ampliam, mas em nada se assemelhando ao caso de Veneza, na medida em que a cidade dos Doges é uma construção aquática, um mar onde vogam pequenas ilhas de granito e telha, enquanto  esta urbe russa, onde a pedra, o cimento, a madeira e o vidro alternam a todo o momento com a mobilidade mesma do elemento líquido, é, afinal, graças à abundância dos seus canais e redes de pontes, uma parte central da sua estrutura urbana, sendo os seus inúmeros rios o andante alegre e majestoso desta sinfonia incomparável de beleza, elegância e força.




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Há dez anos atrás, na minha primeira visita à Rússia, fiquei num hotel a dois passos do canal Fontanka, pelo que atravessava constantemente a Ponte Egípcia que o cruzava, habituando-me a fotografá-la dos mais diversos ângulos, fascinado por aqueles deusas de corpo de leão e asas de pássaro, o que me aprecia uma metáfora adequada para uma cidade tão  extraordinária e complexa como esta, sem dúvida uma das mais prodigiosas no mundo que tive ocasião de percorrer, a ponto de a incluir no enredo dum romance meu, Náufragos do Mar da Palha, de modo a poder evocar ali a urbe do Cavaleiro de Bronze esculpido por Falconet, esse diamantino Pedro que, increpado por um pobre homem que perdera a sua namorada por causa das inundações periódicas desta cidade sobre um estuário, o que o levara à loucura de amaldiçoar a estátua do czar responsável por essa ideia tão iluminista como catastrófica, e que no famoso poema de Puchkine, incitara o estatuficado monarca a carregar a galope, no seu cavalo metálico, para castigar o protesto do amargurado súbdito recalcitrante, o que não impedia que os habitantes de São Petersburgo criassem o hábito de irem saudar a estátua de Pedro quando se casavam, ritual reverencial que é ainda mantido hoje. No mesmo livro, ocupei-me duma gravura romântica francesa, que entretanto comprei, a belíssima coluna rosada evocativa do grande czar Alexandre I, reformador e adversário de Napoleão, em cuja impressionante praça do Palácio se fizera o cenário de uma das mais belas cenas do filme Russia House (1990), na qual Karl Maria Brandauer rodopiava em volta da coluna de granito rosado, perseguido por Sean Connery, o mesmo que passava por Lisboa, cidade o que o filme de Schepisi também evocava.

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Pedro, o Grande, por Étienne Maurice Falconet (1782)

Pintura de Vasily Surikov (1848-1916)


O transporte da «Pedra do Trovão», base da estátua de Falconet.
Com 1.250 toneladas, é considerada a maior pedra alguma vez  transportada pelo Homem (ver aqui)


Inauguração da estátua, 1770




Em suma, desde logo fiquei encantado com aquela ponte metálica, a Ponte Egípcia, com as suas quatro Esfinges e quatro obeliscos em cada canto, esculturas de Pavel Sokolov, ali colocadas nos anos 20 do séc. XIX. A ponte, uma das primeiras a ser construída em ferro, havia de se desmoronar no ano da primeira revolução russa, em 1905, só sendo reerguida meio século depois, em 1955, já depois da morte de Estaline.

O colapso da Ponte Egípcia, em 1905
A Ponte Egípcia, na sua configuração actual, datada de 1955


Em primeiro plano, uma das esfinges de Pavel Sokolov (1764-1835)

A Ponte dos Leões, estátuas de Pavel Sokolov


Na Ponte da Banca, os grifos de asas douradas, também de Pavel Sokolov


A presença daquelas quatro icónicas mulheres enigmáticas de corpo, cauda e garras de leoa, esculpidas em materiais negros e doirados, não deixa de ser um elemento curioso na Rússia pós-soviética, precisamente na medida em que os monumentos erguidos para recordar as vítimas do estalinismo têm sempre uma esfinge como emblema desse pungente dever de memória. A verdade é que, mesmo sem associarmos estas enigmáticas deusas leoas do Egipto – representantes do deus-falcão Hórus – e monstros devoradores da Grécia à memória dos genocídios políticos e étnicos perpetrados pelo monstruoso carrasco russo, elas me fascinaram nas muitas vezes que atravessei o canal Fontanka para ir visitar o resto desta cidade que ficou a dever a sua glória de museu vivo devido ao facto de Lenine, em 1922, ter transferido para Moscovo a capital da Rússia soviética, o que salvou São Petersburgo da solene e horrorosa arquitectura que vigorou durante os anos do comunismo estalinista.
Para além das quatro enigmáticas esculturas esfíngicas aos cantos da ponte sobre o Fontanka, os cais deste canal foram local de habitação ou visita de algumas das figuras mais célebres da literatura russa. Também em várias obras literárias o canal Fontanka e o coração da cidade surge nas páginas do conto O Retrato de Gogol. Dostoievski, em Pobre Gente, também situa ali a acção das personagens. Foi também na parte pobre do canal Fontanka que viveu Anna Akhmatova, desde 1921 a 1923, no nº 34, numa dependência do antigo palácio Cheremetiev, um prédio que fora outrora a lavandaria imperial e onde se acha hoje o museu dedicado à autora de Poema sem Heróis e Requiem, aquela que Andrei Jdanov, o inquisidor da cultura definira como “senhorazinha histérica”, execração que havia de valer a expulsão da poetisa da União dos Escritores Soviéticos em 1946, ficando definitivamente catalogada como “inimiga do povo”, ou seja, como pária, sendo os s eus volumes de poemas entregues ao fogo, situação de  exílio na sua própria pátria, o que só se havia de modificar com o efémero período de “degelo” da Krutchev. No nº 34 do cais Fontanka viveu, de 1926 a 1952, Akhmatova, sendo ali que hoje está o Museu Akhmatova. Atacada pela falta de entusiasmo pelos ideais revolucionários, a famosa poetisa amaldiçoada pelo regime habitava num apartamento minúsculo, no meio de grande pobreza, ironicamente designado como “palácio Fontanka”, apesar da ajuda que lhe concedeu entretanto Anatoli Lunatcharski, comissário do povo para a cultura entre 1917 e 1929.
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Nathan Altman, Retrato de Anna Akhmatova, 1914

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No século anterior, outra grande figura literária marcara passagem no bairro da Fontanka, o romancista Ivan Turguenev, frequentando uma casa que ficava perto da ponte Obukhov. Também Puchkine, o autor do famoso poema O Cavaleiro de Bronze, emblema literário sobre o fundador da cidade do Neva, era um dos visitantes desta zona, já que frequentara as reuniões duma sociedade de literatos sediada num edifício construído nos finais do séc. XVIII, com colunas clássicas na fachada. Essa sociedade era conhecida como Arzamas. Neste mesmo edifício se reuniram os conspiradores dezembristas, entre 1819 e 1824.

Uma derradeira morada sampetersburguesa, ao mesmo tempo literária e metafísica: o local, próximo do canal Fontanka, onde Dostoeivski situou, no seu Crime e Castigo (1866),  o duplo assassinato ideológico cometido pelo estudante Rodion Raskolnokov, a morte da velha usurária Aliona Ivanovna e da sua irmã Lizaveta Ivanovna, numa casa junto do canal Griboiedov (antigo canal Catarina), um  dos canais mais poéticos da cidade, no qual o próprio romancista gostava de passear e onde situaria várias cenas dos seus romances.  Raskolnikov saiu da sua mansarda, no nº 19 da rua Graidanskaia, donde podia avistar o canal Griboiedov, tomou a rua  Prievalski, passou o canal e enveredou pela rua Sadovaia, seguindo ao longo do jardim do palácio Yussupov no canal Moika  – um dos membros desta aristocrática família o príncipe Yuri Yussupov, havia de matar Rasputin, em 1916, lançando-o depois, com  ajuda dos seus cúmplices, para o canal –, entrando depois num bairro popular onde morava a usurária que ele planeara matar, tomando a actual rua Rimski-Korsakov, e chegando ao canal Catarina, para alcançar um prédio que dava sobre três ruas, subindo então à sobreloja onde morava a velha Ivanovna. Ele entrara pela rua traseira do prédio e, uma vez consumado o duplo crime, saiu pela rua que dava para o canal, depois de descer os catorze degraus que o separavam do rés-do-chão. Quem se der ao cuidado de subir esta fantasmagórica escadaria verá o local onde Dostoieveski situou o caminho para o dramático crime cometido por mera convicção ideológica, para provar friamente que há espíritos superiores que estão acima do Direito e das Leis, como Napoleão, que podem matar os seres inferiores. Ou, como diria o inspector Porfirio Petrovitch, ao tentar interpretar as ideias do estudante suspeito: há “pessoas extraordinárias que têm o direito de matar as outras”, ou seja, há quem tenha “direito ao crime”.
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Trad. portuguesa de Cabral do Nascimento

Crime e Castigo, desenho a carvão



Os que admiram Raskolnikov, assegura Domique Fernandez – num volumezinho admirável e sumptuosamente ilustrado com vistas da cidade de Pedro, intitulado La Magie blanche de Saint-Petersbourg (2001) – vão até aquele prédio, no nº 104 do Canal Griboiedov, onde o romancista imaginou o crime metafísico e deixam nas paredes mensagens como: “Rodia, eu compreendo-te!” ou “Rodia, não terás esquecido o machado?” ou ainda “Rodia, sabes tu onde habita uma velha mulher?”…Não, não fui visitar este recanto sombrio que a imaginação do atormentado Dostoievski concebeu como cenário dum feito atroz e metáfora do destino de uma juventude russa, céptica e niilista do séc. XIX – assim como Os Demónios seria o retrato profético dum grupo terrorista que sonhava apoderar-se da Rússia para ali estabelecer uma ditadura implacável e endemoninhada, obra escrita a partir dos apontamentos do processo de Netchaiev, a que o romancista assistira atentamente. Não irei ver aquele prédio que, criado com letras, persiste também agarrado à pedra e à madeira dum edifício real, nesta mágica cidade do Neva, a das noites brancas que serviram também para título dum romance do mesmo romancista: “o sangue, não quero vê-lo”, como gritaria o poeta andaluz… Prefiro, antes, imaginar o canal Fontanka, guardado por estas quatro esfinges oitocentistas, garantia de um mistério que nenhum Édipo será capaz de solucionar. Mesmo nesta sublime cidade de decifradores de enigmas e de poetas rebeldes.




Bibliografia essencial:

– Lorraine de Meaux, Saint-Pétersbourg. Histoire Promenades, Antologie et Dictionnaire, Paris, Robert  Laffont, col. Bouquins 2003 (obra indispensável, com um excelente dicionário de figuras da cultura e da política, monumentos e lugares desta cidade, e mapas: o texto final é de Joseph Brodski, intitulado “Les statues de Lénine et de Pierre le Grand”, de 1969, pp. 772-3).

– Anna Benn e Rosamund Bartlett, Literary Russia. A guide, Londres, Papemac, 1997 (guia dos locais literários da Rússia, com mapas; Fontanka: pp. 198-210).

– Alexandre Puchkin, “Le cavalier d’airain” (poema), Poésies, trad. e apresent. de Louis Martinez, Paris, Gallimard, col. Poésie/Gallimard, 1997, pp. 177-97.

– Fiódor Dostoievski, Crime e Castigo, trad. por Nina Gurrra e Filipe Guerra, Lisboa, Público, Colecção Mil Folhas, 2003 (a primeira trad. portug. deste livro de Dostoievski feita directamente do russo).

– Andrei Biély, Petersbourg, Lausanne, Éditions l’Âge d’Homme,  2010 (romance; a estátua de Pedro o Grande: pp. 80-1).

 – Vladimir Belerowitch, Le grand Siècle russe d’Alexandre Ier à Nicolas II, Paris, Gallimard, col. Découvertes,  2005, ilustr.

– Joseph Brodsky, Less than One, Nova Iorque, Farrar, Strauss, Grioux, 1986 (ensaios, maxime: pp. 69-94 e pp.34-52, sobre Pedro, o Grande, construtor de São Petersburgo e Anna Akhmatova).

Nikolai Gogol, “O Retrato” (conto), in Contos de são Petersburgo, trad. do russo por Nina filipe e Filipe Guerra, Lisboa, Biblioteca Editores Independentes, 2007 (pp. 125-8, referência à bairro de Kolpmna, mais tarde designado por Fontanka).

– Solomon Volkov, The Magical Circus. A history of Russian culture from Tolstoy to Solzhenitsyn, Nova iorque, Alfred Knopf, 2008, ilustra. (especial atenção dada a Anna Akhmatova).

 – Dominique Fernandez, La Magie blanche de Saint Pétersbourg, Paris, Gallimard, Col. Découvertes, 2003, ilustr.

 Kathleen  E. Smith, Remembering Stalin’s Victims, Ithaca (Nova Iorque) e Londres, Cornell University Press, 2009.


João Medina
                                                                                                      

                      


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