sábado, 29 de setembro de 2012

Cinzas de Abril.

.
.




Manuel Moya, Las Cenizas de Abril, ed. original, 2011


Manuel Moya, Cinzas de Abril, trad. port., 2012



Contracapa


Michel Maiofiss, Casal no Boulevard Saint Michel em Maio de 1968



O Professor Henrique Cayatte deixou aqui um comentário ao meu «post» (ou «posta») intitulado «Paris é Lisboa», de 14 de Maio de 2012. No seu comentário, diz que gostaria de ter a minha resposta e dispõe-se, facto que saúdo, a dialogar comigo «nos limites da serenidade e da urbanidade».
         Assim:

Exmo. Senhor

Professor Henrique Cayatte



1 – Agradeço, antes de mais, o seu comentário e, tratando-se Vª Exª de um dos principais ilustradores e designers gráficos portugueses, agradeço igualmente a disponibilidade manifestada para debater publicamente o seu trabalho, facto que, pela sua raridade no contexto nacional, não posso deixar de saudar com grande apreço.


2 – Sublinho, por outro lado, que nunca esteve em causa a minha admiração pelo conjunto da sua obra, ponto que, aliás, deixo muito claro na entrevista ao «Expresso», onde digo: «não quero crer que tenha sido o próprio Cayatte» que tenha adoptado o procedimento que critico. De igual modo, no texto publicado neste blogue, deixei a referência: «Henrique Cayatte, cujos muitos talentos, sublinhe-se, ninguém questiona». Afirmo, aliás, que o Atelier Henrique Cayatte faz «a diferença» (ainda que não por esta obra em concreto). 


3 – O meu texto não tem, pois, o propósito de caluniar a pessoa ou o atelier de Henrique Cayatte nem o conjunto da sua obra, pelo que, se porventura se sentiu ofendido, apresento-lhe desde já as minhas desculpas.


4 – A crítica que fiz centra-se no facto de o livro em causa – intitulado, não por acaso, «Cinzas de Abril» – versar o 25 de Abril de 1974 e os seus antecedentes próximos, tal como, de resto, é assinalado na contracapa e na sinopse da edição portuguesa (aqui), bem como na sinopse da edição castelhana (aqui). A acção decorre após o 25 de Abril e no período final do marcelismo, como resulta, por ex., das páginas 23, 58, 79, 97, 128, 139, 171 e 209. Ora, Marcelo Caetano ascendeu à presidência do Conselho em 27 de Setembro de 1968. E só na década de setenta as personagens do livro – o narrador, Sophia e Fernando – se cruzam em Paris. Nenhum momento da acção decorre durante o Maio de 1968 ou reflecte, directa ou indirectamente, esse acontecimento histórico.     


5 – Concedi a Vª Exª o benefício da dúvida, afirmando não acreditar ser da sua autoria pessoal a capa do livro «Cinzas de Abril». Pelo contrário, Vª Exª não me concede qualquer benefício, afirmando que eu não li o livro  cuja capa critico («se tivesse lido o livro») e dizendo, no que concordo, que se exige «rigor»: a mim, como jurista e historiador, «e, afinal, a todos».  


6 – Sucede, porém, que li atentamente esta obra. E certamente Vª Exª também o terá feito, para a elaboração da respectiva capa, já que o rigor, como bem diz, é um imperativo que a todos obriga. Da leitura que fez, verificou, por certo, que o livro não constitui propriamente um modelo de rigor, do rigor que se exige a todos. Poderia dar-lhe muitos exemplos, que naturalmente Vª Exª também terá detectado. Assim, na pág. 67, os pais de Sophia decidem enviá-la, no Verão de 1967, de Luanda para Lisboa, internando-a num colégio religioso; mas, na pág. 184, é Sophia quem, no Verão de 1968, decide ir de Luanda para Lisboa continuar os estudos, contrariando a vontade dos pais. Na pág. 184, Sophia vem para Lisboa aos 18 anos; na pág. 312, vem para Lisboa com 17 anos de idade. Trata-se de um livro em que o narrador pergunta num hotel por uma mala deixada por uma «rapariga», uma «rapariga portuguesa» (p. 14), quando essa «rapariga», di-lo o próprio narrador, estava coberta de cãs brancas e era uma «mulher de sessenta anos» (p. 309). Na mesma página (p. 295) consegue-se a proeza de escrever que o narrador e Sophia se encontraram no enterro da mãe desta, em finais de 1985, e, pela última vez, vinte anos depois… em Março de 1996. Creio que concordará comigo que de 1985 a 1996 não decorrem vinte anos. Poderia dar-lhe muitos outros exemplos, muitos mais exemplos, mas obviamente já os conhece, visto ter lido o livro para a elaboração da respectiva capa.       


7 – No seu comentário, diz que o Maio de 68 é uma «referência importante» deste livro («Se tivesse lido o livro, veria que Paris e o Maio de 68 são aí referência importante…»). Ninguém discorda que o Maio de 1968 foi uma referência importante do 25 de Abril. O autor do livro vai mais longe ainda, dizendo que o 25 de Abril «tem aquela força dos movimentos estudantis e é uma consequência do Maio de 68» (cf. «Revolução na caneta e Portugal no ADN», in jornal «i», de 26-III-2012, aqui). No entanto, certamente por ignorância minha, não encontro no livro de Manuel Moya nada que permita afirmar que o Maio de 1968 é uma «referência importante» deste livro «Cinzas de Abril».


8 – Nesse sentido, e para que possamos prosseguir o nosso diálogo sobre este seu trabalho, solicito-lhe que me indique a página do livro em causa onde exista uma referência, explícita ou implícita, ao Maio de 68. Ou, se preferir, que transcreva aqui o trecho desta obra onde se note uma evocação, uma alusão ou sequer um vestígio do Maio de 68. Em suma, que permita fundamentar a sua afirmação que o Maio de 68 é uma «referência importante» deste livro.  
Sendo esse o acontecimento histórico retratado na capa, dizendo Vª Exª que o mesmo é uma «referência importante» no livro que ilustrou, peço-lhe que me informe, bem como aos leitores deste blogue, onde se encontra presente o Maio de 68 na obra literária que honrou com uma capa da sua autoria.


Cordialmente, manifestando novamente a minha admiração por Vª Exª,   

                   António Araújo

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

A América de Onésimo.

. . . -
.
.
.
Fotografia de Onésimo Teotónio de Almeida, Brown, EUA

Sentença exemplar.

..
.

.
.




Via Expresso, ficámos a saber que António Araújo coleciona sentenças antigas. Inspirados pelo nosso editor, buscámos decisões exemplares. Eis uma que descobrimos com prazer:

Em Millwood, Nova Iorque, nos idos de 1920 e qualquer coisa, o antigo juiz de paz (Justice of the Peace) Ogden S. Bradley apresentou queixa de Grace Williams, de 18 anos, acusando-a de conduta desordeira por, todos os dias, ao passar junto da sua casa, cantar "Everybody´s Doin´t It Now" enquanto dançava o lascivo "Turkey Trot", quando passava junto à sua casa. O tranquilo juiz de paz e a sua mulher pensavam que a canção e a dança eram altamente impróprias e sentiam-se profundamente incomodados ao ouvirem e verem a arguida nesses propósitos.

O advogado de Grace Williams, Stuart Baker, pediu um julgamento com júri. Na audiência, a arguida declarou que, com efeito, cantava a canção porque gostava muito dela e que dançava porque, quando se sentia possuída pelo ritmo, não conseguia evitar os passos e os trejeitos do "Turkey Trot".

Nessa ocasião, o advogado da arguida ofereceu-se para cantar a canção. O procurador contestou, argumentando que tal procedimento transformaria o julgamento numa farsa. O juiz Chadeayne afastou a objecção com o argumento de que se tratava de um meio de prova importante para apreciar se efectivamente teria havido conduta desordeira.

Stuart Baker fez, então, ouvir a sua bela voz de barítono. Quando chegou ao refrão "Everybody´s doin´it, doin´it, doin´t", todos os assistentes se lhe juntaram, com algum entusiasmo. No final, os jurados reclamaram "bis". Autorizado pelo juiz Chadeayne, o advogado voltou a entoar a canção, agora com maior intensidade e emoção. Enquanto cantava, ofereceu aos membros do júri uma versão moderada dos trejeitos do "Turkey Trot". Os jurados permitiram-se avaliar a interpretação, aplaudindo vigorosamente, autorizados pelo sorriso complacente mas discreto do juiz Chadeayne.

Em cinco minutos chegou-se à deliberação que absolveu por unanimidade a arguida. E o ragtime lá continuou a corromper a juventude e a alegrar os corações. Não há registo de uma eventual mudança de residência do sensível juiz de paz e da esposa, nem da sua eventual conversão às delícias de "Everybody´s Doin´It Now".

 

José Luís Moura Jacinto

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Continue o presente.

.
.
.
.




Augusto Brázio, série «Natureza», aqui


.
.
.
O futuro contém a nossa morte e, depois dela, o infinito de nadas, chato como o ferro do cosmos, que antecedeu os nossos nascimentos.
A felicidade, se calhar, é desejar que as coisas não piorem muito, de dia para dia, para não se notarem tanto.
O presenteaquilo que ainda se tem, a começar por estar vivo e lembrarmo-nos de termos estado pior — é a felicidade maior, somada às memórias de felicidades que continuam vivas e que nos fazem sorrir, pertencer e desejar bem aos outros que ainda não as tiveram. Se não nos lembrarmos de termos estado pior ou não tivermos a esperança de ficarmos melhor, já não conta como felicidade; já não conta como presente. Não é só dizer “eu ainda consigo”: é preciso também haver a consciência de ter prazer, não em conseguir, mas nas coisas que se fazem.
Todos sabemos o que nos espera. Interessa apenas decidir não tanto o que fazer enquanto esperamos como descobrir as formas que ainda nos restam de nos distrairmos. A distracção é a forma mais exaltante da vida. Quem se pode distrair — amando, lendo, pintando, trabalhando, coleccionando, politicando — não pode ser inteiramente triste, não por não estar apenas simplesmente não-morto e vivo, mas por ter encontrado a maneira de fazer pouco do presente, em atenção ao passado ou ao futuro lembrado ou desejado, como momento e movimento em direcção a eles.
Restam as consolações.
Quando é ser momento ou movimento a única coisa, para se ser feliz, que se quer.




 Miguel Esteves Cardoso, Público, de 25/09/2012


Onomástica eleitoral.

- . . .
-
.
.






























domingo, 23 de setembro de 2012

Humor Português.


.
.
.

N.B. O texto que se segue destina-se a figurar na segunda edição do livro Portuguesismo(s), de João Medina, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006, 543 p, ilustr..



Almanach do Pausinho do Matrimonio




1. O humor licencioso em Portugal


Uma das poucas tentativas feitas no sentido de estudar o humor português - ou riso, como lhe prefere chamar José Leite de Vasconcelos, no vol. IV da sua Etnografia portuguesa [1], i.e., essa “franca tendência portuguesa para zombar de quanto se lhe apresenta fora dos limites da moralidade e da continência” (p. 525),  troçando da Igreja e das altas figuras nacionais (p.528), muitas vezes em anedotas fáceis (pp. 529-535), fazendo-o de diversos modos e recorrendo à “licenciosidade da linguagem”(pp. 533-534), tanto em sentido  pejorativo como licencioso, não hesitando o nosso povo em sujar as paredes com palavras e frases inconvenientes que a “gente bruta” ali inscreve (p. 534) – deveu-se a este filólogo, arqueólogo e etnólogo. Infelizmente, o arguto folclorista não se atreveu a ir mais longe, no sentido de tipificar as formas e tendências específicas do humorismo português, nomeadamente no domínio sexual ou pornográfico, onde abundaram algumas paródias no séc. XIX, como o recentemente republicado O Pausinho do Matrimónio. Almanaque perpétuo [2], livro que se supõe escrito (ou adaptado do francês) por Guerra Junqueiro. Neste domínio da licenciosidade e da literatura erótica e clandestina lusa, faltam os estudos eruditos de antropólogos culturais ou historiadores interessados nessas formas licenciosas de exprimir a nossa sensibilidade. As próprias edições ou reedições nesse domínio marginal, transgressor às normas ortodoxas de civilidade e decoro, são raras, talvez por uma natural e persistente censura repressiva dos poderes, mesmo nos períodos em que vigorava uma relativa liberdade de imprensa, ou de modo ainda mais subterrâneo no período do omnipotente e paranóide Lápis Azul da Ditadura salazarista e da sua continuação com o marcelismo.



O Bispo de Beja, reed. de &Etc.



A interrogação sobre esta carência de atrevimentos no domínio nacional dos devotos do Eros mais ousado serviria, talvez, para nos explicar a timidez da nossa licenciosidade, mais apta a exprimir-se em anedotário desbragado ou nos tais graffiti da “gente bruta” de que falava Leite de Vasconcelos. Os arrojos nos domínios da sátira e da pornografia culta – aquela que suscitou o atrevidíssimo poema O Bispo de Beja, em vésperas da proclamação da República em Portugal [3] – mereciam um capítulo próprio que, obviamente, não compete sequer ser intentado aqui.


2.O parodismo lusitano


Há ainda que assinalar como uma domínio específico do humor luso a nossa tendência para parodiar obras de sucesso ou até obras-primas da cúspide da nossa literatura, como, por exemplo, Os Lusíadas, até à medíocre adocicada peça de Júlio Dantas (Lagos,1876-1962) A Ceia dos Cardeias. A palavra paródia vem de para+ode, significando uma ode que perverte o sentido de outra. [4] Um esforçado estudioso desse abundante caudal literário foi Henrique de Campos Pereira Lima, [5] autor dum elucidativo e significativo catálogo/antologia intitulado As Paródias na Literatura portuguesa (Lisboa, Solução Editora, 1930), no qual encontramos verdadeiras jóias do género em causa, entre os quais destacaremos avulsamente títulos como As Republicaníadas (Lisboa, 1913) de António Correia Pinto de Almeida (que usou o pseudónimo de Marco António, livrinho ornado com admiráveis vinhetas de Almada Negreiros), uma variante anti-republicana d’Os Lusíadas (o nosso poema maior é neste estudo de Ferreira Lima objecto de extenso rol e comentários, pp. 29-84-29), Entre as paródias ao poema épico de Camões figura  uma versão em língua francesa, de autoria de Robert Mesnier, editada no Porto em 1883) e ainda a famosa obra Os Lusíadas no séc.XIX, publicada em 1865, de Francisco Augusto de Almeida, jornalista e escritor, 1836-1918).
Júlio Dantas, caricatura de Arnaldo Ressano, 1935

O sestro paródico dos nossos literatos deu origem às mais diversas diversas paródias a Garrett (ao seu poma Camões, Folhas caídas, etc.), Tomás Ribeiro (poemas Delfina, A Judia, e D. Jaime), Guerra Junqueiro (A Velhice do Padre Eterno, A Morte de D. João), Bocage, Soares de Passos, António Nobre, H. Lopes de Mendonça, Pinheiro  Chagas,  Afonso Lopes Vieira, Júlio Dantas e tantos outros autores clássicos e modernos, Uma variante parodista tratava de actualizar a troça de figuras políticas mediante a partir de títulos de obras tão famosas como Jesus Cristo nunca existiu de Emilio Bossi, objecto dum dos expoentes deste género perpetrado por Crispim (i.e., Eugénio Severim de Azevedo), autor d’O Dr.Bernardino Machado nunca existiu, sem dúvida um dos exemplos mais atrevidos desta curiosa e tão portuguesa subliteratura baseada na paródia dum original que teve a simpatia do público. [6] Outro exemplo de obra da grande literatura paródica no nosso pequeno Portugal é O Negro de Alcântara – versão cómica do Otelo de Shakespeare, escrita pelo talentoso e infelizmente esquecido romancista Tomás de Melo (1836-1905) sobre qual publicámos um estudo prefacial à reedição da sua Boémia Antiga, de 1873). [7]



Entre os autores mais insistentemente parodiados encontrava-se Dantas e uma das obras mais vitimadas pelo género em causa, A Ceia dos Cardeais, [8] cuja longa lista foi estudada por Campos Ferreira Lima, num total de 49 títulos (op.cit., p. 53),[9] o que parece comprovar que a bête noire dos modernistas e do seu estentório arauto Almada Negreiros tinha a vocação inata de ser alvo de doestos e chacotas literárias, tanto por causa desta peça de 1902 – reeditada meia centena de vezes –, vítima de troças durante quase três décadas, já que entre essa quase meia centena de paródias se encontram títulos  como A Ceia dos Pardais (1902) até A Ceia dos Leões do Águia. Paródia à Ceia dos Cardeais (1930), tanto em Portugal como no Brasil, passando por outras versões tão agressivas e divertidas como A Ceia dos Asilados, O Jantar dos Quintanistas, A Ceia das Cortesãs, A Ceia dos Amarais, A Ceia das Faculdades, A Ceia dos Pobres, os dois títulos iguais A Ceia dos Generais, a do brasileiro Octávio Rangel, em 1917,  e de António Pereira de Carvalho (1918), A Ceia dos “Radicais”, A Ceia dos Diplomatas, A Ceia dos Toureiros (1925),  A Merenda das Freiras (1914), , A Ceia das Sogras, A Ceia dos Majores (1924), A Ceia dos Taratas (1929), A Ceia dos Sacristães (1902), A Ceia dos Juízes (1927), Conversa dos Chacais (1917), etc. Como se vê, houve entre nós uma verdadeira mania de parodiar a medíocre peça do jovem Dantas – tinha então 26 anos –, ao qual estava destinado um desacato literário ainda maior, o que lhe faria Almada, no seu famoso Manifesto anti-Dantas (1915), agora contra uma peça sobre Mariana Alcoforado – a freira amorosa de Beja, que inspirara génios literários como Rilke –, a peça Soror Mariana, estreada em 21-X-1915 no Teatro Ginásio, em Lisboa, e logo editada em livro. [10]


4. Da zombaria transcendente: de Almada Negreiros a Lobo Antunes


No campo da literatura satírica mais frontalmente transgressora ou devastadora,  há que lembrar, como espécie de exemplo supremo, este famoso Manifesto anti-Dantas (1915) [11] de Almada Negreiros, momento imprecatoriamente majestoso, paroxismo o nosso pendor sarcástico vociferante da geração modernista que no Dr. Dantas achava o – “adesivo” da República e, mais tarde, do “Estado Novo” salazarista –, alvo predilecto das troças e escárnios dos escritores e artistas do modernismo, apupos concentrados no ícone do establishment literário, académico, médico, diplomata, figura acaciana, papo-seco e membro de todas as confrarias corporativas. A trovejante zombaria de Almada contra o Dr. Dantas – ao mesmo tempo paródia e paráfrase – constituía-se como uma espécie de manguito sublime, já que o pintor e escritor garantia mesmo ter “tais munições de manguitos que levariam séculos a gastar” [12], neste caso transcendendo o pobre literato e médico que lhe dera ocasião para semelhante desacato homérico, bem como todos o seus clones nas letras e nas artes lusas da altura, antes tomando o autor d’A Ceia dos Cardeais, o janota, o académico, o jornalista, o diplomata, o político  e escritor Júlio Dantas, [13] como emblema máximo de todas as inúmeras manhas, estratégias promocionais da mediocridade literária e da esperteza saloia do nosso acanhado e labrego mundo artístico, impressionante catálogo dos mil e três artistas e escritores pífios dum meio tão pobre como o nosso da altura – ou do actual, se nos dermos à tarefa de olhar em volta –, e que o implacável Almada assim demolia nesta peça que pode servir como exemplo mais perfeito da referida tendência lusa para o escárnio maledicente. [14]






Almada Negreiros, caricatura de Arnaldo Ressano, 1935

.
.
.
Este exemplo típico do sarcasmo paródico nacional – a tendência para reduzir o humor à simples forma da agressão sarcástica, a tal “corda de bronze”, em vez do distanciamento da ironia ou “corda de prata”, ou ainda de outras formas de gracejar como a paródia (ainda que esta também tenha tido entre nós talentosos seus seguidores, conforme no-lo mostrou o já citado e extenso catálogo de Campos Ferreira Lima), muitas vezes cruzada com o sarcasmo – não teve ainda quem o estudasse a fundo, como ele decerto merece, tanto mais que, na imprensa satírica lusa, tão fértil no nosso país desde o século XIX, com o interregno da Ditadura salazarista e a sua férrea Censura prévia, comprova a facilidade com que este pendor lusitano se exerce como nossa única grande forma de crítica de costumes políticos e outros. Por outro lado, o predomínio exagerado desta forma excessiva de humor pode levantar a dúvida quanto à qualidade dos portugueses no tocante a formas superiores de exame, humorístico da vida e da sociedade, que não deixam, contudo, de exibir alguns exemplos extraordinários como no caso dos romances de Eça de Queiroz. Em termos de paródia, parece que entre nós só gente como Crispim medrava, enquanto lá fora, pela Europa culta, os verdadeiros talentos irreverentes e rebeldes como Rabelais ou Alfred Jarry e erguiam o parodismo trocista às dimensões de uma arte superior, muitas vezes transcendendo as figuras e os opúsculos que eles queriam vilipendiar, ainda que, nos dois exemplos franceses acabados de citar, essa troça do mundo e dos seus escritores pedantes e sacripantas não tivesse sido diretamente utilizada. O que queremos afirmar é que, por exemplo, um Joyce – sobretudo com a sua paráfrase desenfreada construída a partir do imortal poema homérico no seu Ulisses de 1922 – ou um Queneau (v.g., Zazie no Metro, 1959), em muito do que escreveram, exerciam uma carga paródica ou zombeteira que excede tudo o que de rasteiro ou mesquinho entre nós se empregou a troçar dos nossos Dantas. Mas se este é ainda hoje recordado, decerto esse facto se deve em larga medida a ter ficado de algum modo negativamente imortalizado como insecto metido no âmbar perdurável da sua mofa.

António Lobo Antunes, desenho de António, no Metropolitano de Lisboa

5. O humor dos nossos dias


Na literatura actual, o exemplo mais evidente de superior capacidade barroca de escárnio é o de António Lobo Antunes, de que o romance devastador As Naus (1988) é um exemplo poderoso, funcionando aqui como uma verdadeiro versão portuguesa das Tentações de Santo Antão de Bosch, que tomasse como tema a gesta dos descobrimentos, os seus homens, políticos e heróis, desde Camões e Garcia de Orta a Vieira, sem esquecer o “pedaço de asno” (Sérgio dixit) que iria morrer em Alcácer Quibir, deitando a  perder tanta glória e tanto sonho vão. [15] O nosso maior romancista actual logrou, assim, nesta paródia monumental, narrar um dies irae surrealista do Fim da Pátria, naufragada após a revolução do 25 de Abril, descrevendo uma dança da morte onde o Groucho Marx da Sopa de Pato e o H.C.Potter do Hellzapoppin combinavam os seus talentos burlescos e os seus escárnios excessivos para fazerem a crónica do desmoronamento dum país e de toda a sua História, não poupando ninguém nem coisa alguma. De facto, raramente, como neste delirante e soberbo texto literário, se terá ido tão longe na demolição sem complexos dos fundamentos mesmos da nossa vida e história colectivas, sem poupar qualquer dos mais excelsos emblemas culturais da nossa comunidade de memória chamada Cultura Portuguesa. Nos outros países mais abertos a estes exercícios de autoflagelamento hipercrítico, como na Inglaterra, na França ou na Grã-Bretanha, estas formas de potlach destruidor exercida no domínio cultural, pratica-se, como o faziam os índios do Canadá, como dádivas orgiásticas ou generoso desbarato de bens.   

De qualquer modo, também aqui a historicidade destes fenómenos força-nos a matizar estas alegações, uma vez que, de há uns dez anos para cá, se têm registado diversas experiências felizes de humor em programas televisivos e em suplementos jornalísticos, de que lembraremos sobretudo o “Contra Informação” (RTP, Antena 1) diário, o “Gato Fedorento”(Sic Radical) [16] e o “Inimigo público” (suplemento do jornal Público). [17]

Gato Fedorento



A)   O Gato Fedorento


O Gato Fedorento era inicialmente constituído por Ricardo Araújo Pereira e José Diogo Quintela, Começara por ser um blogue, iniciado a 23-IV-2003. Araújo Pereira, que seria sempre a alma do grupo, e Diogo Quintela foram convidado pela SIC Radical para fazerem sketches humorísticos, numa série intitulada “Perfeito anormal”, cujo sucesso os levaria a fazerem um programa independente, agora com a colaboração de Miguel Góis e Zé Tiago Dores, que completaram o quarteto. No Natal de 2004 lançavam um DVD em torno da “série Fonseca”, com assinalado êxito nesse mercado. O nome do programa era o de uma música “Smelly Cat” da série americana “Friends”.O grupo realizou também alguns espectáculos ao vivo no Teatro Tivoli, em Lisboa, e no Coliseu, no Porto. A 3-V-3005 iniciou-se a segunda série do Gato Fedorento, agora na RTP, subintitulado “Diz que é uma espécie de magazine”, realizado muito ao jeito dos programas humorísticos americanos em torno duma mesa ou com os intérpretes sentados num sofá, tendo em volta uma pequena plateia que reage aos seus gracejos.

Em 2008, o Gato Fedorento voltaria à SIC, e no ano seguinte o programa comenta (“esmiuça”) as eleições. Em 2011 o quarteto cessa de produzir programas e passa a ser uma espécie de grupo exclusivamente dedicado ao marketing da Meo, deixando de actuar como programa nos moldes humorísticos inovadores iniciados em 2004. De modo que se pode dizer que o Gato Fedorento cessou de existir como quarteto de humor e se dedicou ao mundo da publicidade, o que não deixa de ser um índice de sucesso mas, ao mesmo tempo, uma prova de fracasso nos sues propósitos iniciais. Um dos seus mentores e sua figura mais carismática, Ricardo Araújo Pereira, faria entretanto carreira como colunista da revista Visão, publicando livros com as suas crónicas e temas de futebol, uma das suas paixões.

O grupo constituiu sem dúvida uma novidade no nosso tipo de humor, sobretudo na TV, onde a irreverência, inteligência e cultura do Gato Fedorento rompeu com o tipo tradicional de paródia lusa, abdicando do uso de palavrões e de temas mais vulgares, antes recorrendo a instrumentos culturais, como a literatura – v.g., Ricardo, travestido de mulher-a-dias, fala de Flaubert como se se tratasse dum tema do seu dia-a-dia –, a partir duma base cultural e de conhecimentos que alguns dos seus membros adquiriram na passagem pela universidade. O quarteto serviu-se de tudo para ridicularizar defeitos étnicos, formas de falar pretensiosas, figuras políticas grotescas tratadas com desenvoltura descomplexada, chegando a criar um pequeno mundo autárquico, situado em Vila Nova da Rabona, perto de S. Jorge da Morrunhanha, cujo autarca era o inqualificável Ezequiel Valdas. Um dos sketches do Gato punha Hitler em disputa com um funcionário da EMEL, encarregado de multar automóveis mal estacionados, vencendo este na categoria de “O Homem mais odioso do mundo”. Infelizmente esse veio romanesco ou sociológico não chegou a ser desenvolvido pela sátira do Gato Fedorento. Ficaram, sim, algumas frases-feitas e expressões típicas como “Ah e tal”, “Falam, falam e não dizem nada”, etc.

O Gato Fedorento introduziu toda uma nova maneira de olhar o mundo português, exprimindo-o numa linguagem desinibida e divertida, sem respeitar convenções, hábitos mentais ou valores estabelecidos pela tradição ou pela congénita preguiça intelectual lusa, dispensando o recurso pobre de dizer palavrões [18] para activar o riso fácil. A sensibilidade ao próprio ridículo de quem suscita o riso foi sublinhada por Araújo Pereira quando disse: “Sempre que estou a interpretar o papel dum tipo parvo é, acima de tudo, a minha parvoíce que está ali e o personagem ficará tanto melhor quanto mais parvo eu for. É por isso que muitas vezes fica bom, porque eu sou realmente parvo.” (revista Xis cit.). Esta concepção da auto-ironia como expurgo da parvoíce de cada um constitui, sem dúvida, uma das razões do sucesso do Gato Fedorento que não hesita em rir se si mesmo, o que é a forma mais alta do humor. Além destas características fracturantes do Gato Fedorento, o grupo era particularmente acutilante quanto a matéria política, sovando imparcialmente todo o pessoal da praça pública, recorrendo a uma cultura literária de nível superior e criando modismos de linguagem a partir de gracejos repetitivos.

Os 220 bonecos do Contra Informação

B)   Contra Informação


E é precisamente esta capacidade de imparcialidade que deu a um dos mais extensos programas da TV portuguesa de tipo humorístico a sua coragem, qualidade e diferença em relação ao que se costumava fazer nesses domínios: referimo-nos à experiência televisiva invulgarmente conseguida e duradoira que se chamou Contra Informação, que vigorou desde 29-IV-1996 a 11-XII-2010, durante catorze anos, num total de 170 programas. [19] Antes de mais, convém recordar que este foi o único, programa de sátira política em Portugal, o que, pela qualidade e desassombro da sua marca, constitui um verdadeiro milagre e, nessa medida, um prova provada da maturidade política do nosso país, capaz de produzir um programa de sátira ao mundo político tão abrasivo e, mesmo assim, sobrevivendo a todas as irritações provocadas pelo seu uso da liberdade de expressão – e que, neste caso, se exercia num medium público, a RTP...

Assim, como único programa televisivo de sátira política constante que durou por um tempo assaz extenso nas pantalhas televisivas, feita através de marionetas manipuladas, 220 bonecos feitos de barro e passados depois ao látex, produzido por Mandala, o CI, inspirada nos modelos congéneres da BBC – o Spitting image – e o Canal+ francês – os Guignols de l’Info –, procurava adaptar à nossa idiossincrasia dos velhos robertos populares e de feira, pondo-os agora ao serviço dum telejornal de tipo satírico, troçando em direcção de todos os azimutes partidários, com a única preocupação de troçar de todos as maganões do palco da polis, do desporto-rei e do espectáculos, com destaque para os profissionais do poder e a continuar na clique anexa dos socialites, gente grada do mundo mediático nos mais diversos campos, do futebol aos palhaços, passando pelos intelectuais, cantores, magnates, formadores de opinião e diversas outras camadas sociais correlativas. Em suma, o CI era um outro telejornal – um dos seus autores definiu-o como tendo sido “um programa de «realidade paralela», tão real como ela” (R. Cardoso Martins, art. cit., p.36) –, sincero, verrinoso mas verdadeiro, sem temores nenhuns, antes se deliciando com as liberdades dum Estado de direito democrático que não ousaria nunca censurar algum excesso ou exagero nesses colegas, locutores, apresentadores e comentadores dos jornais diários das diversas TVs, desde a estatal à SIC e à TVI.

E, neste aspecto, os 220 bonecos distribuídos pelos 170 programas de 5 minutos diários que o CI transmitiu heroicamente, em seguida ao telejornal – como o seu antídoto verídico – entre Abril de 1996 (governo de Cavaco Silva) a Dezembro de 2010 (governo de Sócrates) [20] constitui um repositório imenso e criticamente ousado de todas as figuras de que os media foram narrando as crónicas burlescas, ridículas ou patéticas – como os dramas amorosos e casos nos tribunais dos figurões do futebol como Luís Fígado (Luís Figo), Bimbo da Costa (Pinto da Costa) e os seus animais, o cão Bobi e o gato Tareco, o truculento magnate do Fê Cê Pê (Futebol Clube do Porto), ou Major Valentão (Valentim Loureiro), Hermínio Futeboleiro (Hermínio Loureiro), Luís Filipe Orelha (Luís Filipe Vieira, do Benfica) ou o negregado João Vale Tudo (João Vale de Azevedo, algum tempo presidente do Benfica, este último foi alvo dos mais abrasivos programas do CI, que apresentava como meliante sem pudor, presidiário  a burlar outros camaradas de cárcere, e, por fim  fugitivo na Inglaterra), bem como as pessoas de maior relevo na sociedade dirigente, já no mundo empresarial Belmiro Mete Medo (i.e, Belmiro de Azevedo), António Champolimão (António Champalimaud), Francisco Bolsa na Mão (Francisco Pinto Balsemão),  ou nas classes ditas cultas, sem esquecer o fátuo e retórico Manuel Triste (Manuel Alegre), com o seu mantra “A mim ninguém me cala!”, e Dom Duarte Tio (D. Duarte Pio), o alegado pretendente ao trono português.

A simples amostragem atrás enunciada dos bonecos ou robertos animados dessa série de figuras de gigantones (ou cabeçudos das festas populares), falando uma réplica fiel dos modelos em causa, constitui um repositório tão rico em documentos como a história feita pelos cultores da ciência de Clio. Recordemos algumas das principais têtes de turc ou mesmo bêtes noires desse telejornal falso – ou mais verdadeiro que os que as antenas das nossas televisões utilizavam para noticiar o dia-a-dia do país e do estrangeiro –, sem nos esquecermos de que a globalização da informação mediática tornava vultos como o papa ou os chefes de Estado dos diversos países ou as figuras famosas em diversos domínios icónicos (cinema, revistas, documentários, etc.) que se tornava tão íntima nos lares lusos com as nossas próprias figuras domésticas, ou seja, George W.Bush (ou George Embuste), Obama (ou Barraca Abana), Bill Gaitas (Bill Gaites), Bin Laden (Big Laden), Condolleeza Rice (Condoleeza Rasca), Chanana Gusmão (Xanana Gusmão), Tony Blair (Toneca Balir), Luís Lula da Silva (Luís Lula da Selva), etc..

No foro caseiro, o desfile dos robertos reais ou caricaturados cobria um leque impressionante de individualidades políticas ou dos media como Santana Lopes (Santa Flopes), António Guterres (Toneca Guterres), António Vitorino (Toni Vitorino), Álvaro Cunhal (Cassete Cunhal), Carlos Carvalhas (Cassete Carvalhas), Odete Santos (D. Odete), Alberto João Jardim (Adalberto Jardim), Marcelo Rebelo de Sousa (Professor Martelo), Maria de Belém (Maria de Ninguém), Mariano Gago (Mariano Gagá), Mário Soares (Mário Só Ares), Isaltino de Morais (Isaltino Não Sais), Marques Mendes (Marques Pentes), José Rodrigues dos Santos (José Rodrigues dos Prantos),  José Eduardo Moniz (José Degenerado Luís), Lili Caneças (Lili Caraças), Manuela Moura Guedes (Manuela Boca Gaggs), Francisco Pinto Balsemão (Bolsa na Mão),  Pedro Passos Coelho (Pedro Fedelho), Aníbal Cavaco Silva (Acabado Silva e, depois, Regressado Silva), Vítor Constâncio (Vítor Tontâncio), Ferro Rodrigues (Zorro Rodrigues), Oliveira Salazar (Nojeira Salazar), José Sócrates (José Trocas-te), Durão Barroso (Furão Barroso), Jorge Coelho (Jorge Coelhone), João Vale e Azevedo (João Vale Tudo), Jorge Sampaio (Jorge Compaio), Manuela Ferreira Leite (Manuela Azeda o Leite),José Berardo (Joe Petardo), etc..

Há ainda que assinalar algumas figuras verdadeiramente martirizadas pelos bonecos do CI, em geral de pequena estatura e, por isso mesmo, reduzidos a pequenos bonecos movidos com arames: António Vitorino, Marques Mendes (com defeitos de pronúncia acentuados e expressões cómicas como “grande nóia!”) e, sobretudo, o burlesco Severiano Teixeira, o ministro PS da Defesa do PS, figura particularmente apta a ser caricaturada, desde logo pela sua escassa estatura. Também George W. Bush, do grupo dos pequenotes, constitui uma especial bête noire da CI, sofrendo, devido à agressão do Iraque, tratos de polé, nomeadamente em algumas das diversas paródias de filmes célebres feitas pelo CI, como no Apocalipse Mau (adaptação do Apocalypse now de Francis Ford Coppolla, 1979), no qual um obeso capitão Fretes (Freitas do Amaral) é encarregado de procurar Durão Barroso – a réplica do sombrio Marlon Brando do Coração das Trevas de Conrad, o qual se refugiou no Cambodja como refractário à guerra americano-vietnamita, sendo este Martin Sheen luso assistido por Mário Soares e Saramago, que vão procurar trazê-lo de volta à boa causa, neste caso a coligação com Bush e Blair – o que, na realidade, seria a cimeira celebrada nos Açores em 2003, na qual Durão Barroso funcionou como anfitrião colaborante para o projecto de invasão do Iraque, acolhendo Bush, Blair e Aznar, na Terceira. A cena final desta engenhosa adaptação da colaboração portuguesa na guerra de George W. Bush, remata com uma espécie de variante da cena final do Dr. Strangelove, na qual um cowboy com chapéu típico monta uma bomba que se despenha, agora sobre Bagdad – aqui o delirante cavaleiro do Apocalipse é George W. Bush [21].

CI foi, antes de mais, um projecto dotado de um brilhante e eficaz punhado de manipuladores (António Amaro, Ricardo Moreno, Sérgio Paixão, Ricardo Cabanelas, Joaquim Guerreiro, Rui Pimpão, etc.), argumentistas (Rui Cardoso Martins, José de Pina e Filipe Homem Fonceca) e vozes  – das quais a mais destacada é a de Canto e Castro –, servido por um grupo de caricaturistas irredutíveis e implacáveis no período político nacional e estrangeiro que correu entre 1996 e 2010, com especial paródia demolidora patente nos casos cimeiros de Freitas do Amaral (Fretes do Amaral), Santana Santa Lopes (Santana Flopes), José Sócrates e Alberto João Jardim – este com um cerrado sotaque madeirense e o chapéu de palha local) –, tratado com uma sátira sempre impiedosa – e o primeiro ministro Sócrates ou ainda o seu antecessor Guterres, ambos vitimados por choças e doestos zurzidos de todos os modos e feitios.  Sublinhemos que a imitação das vozes – no caso dos estrangeiros havia a clara intenção de os fazer pronunciar o português com o esperado sotaque cómico – eram perfeitas, como foi o caso de Aníbal Cavaco Silva (Acabado Silva e Regressado Silva). E para estas paródias arrasadoras da actualidade mais gritante recorriam os autores da CI a adaptações de canções na moda ou filmes célebres, estrangeiros ou nacionais (v.g., o referido Apocalypse now com um Freitas do Amaral no papel do oficial americano que sobe o rio em demanda de Brando, o major que traiu o seu país para se tornar numa espécie de soba no Cambodja, agora, na versão da CI, com um desfecho muito diverso, ligando a guerra do Vietname à guerra do Iraque, ou o excelente paródia do Goodbeye, Lenin!, agora Adeus, Abril!).


O Inimigo Público. Um Ano Inesquecível


C)  O Inimigo Público


Quando ao semanário satírico-político O Inimigo Público, suplemento do jornal diário Público (publicando-se desde 1989, órgão mediático do grupo empresarial SONAE), inicia este a sua publicação em 2003, substituindo o suplemento Mil Folhas. Este suplemento, tendo como director Luís Pedro Nunes e sub-diretora Rute Gil,  editou já três volumes de antologia dos números saídos desde 2002: Um Ano para Esquecer. O Inimigo público. Se não aconteceu, podia ter acontecido, dir. de Luís Pedro Nunes, editores Nuno A. Silva e Daniel Deusdado, Público/Produções Fictícias/Farol de Ideias, 2004, ilustr.. Um Ano inesquecível. Do Barrosismo ao Socratismo passando pelo Santanismo, ilustr.. O Inimigo Público, Lisboa, Público/Produções Fictícias/Farol de Ideias, 2005, ilustr.. Um Ano igual aos outros?, Público, Lisboa, 2006, ilustr.. Infelizmente, esta edição em livro dos suplementos satíricos do Público inclui poucos dos excelentes cartoons de António Jorge Gonçalves., cujo Toon sai, a partir de 2005, na última página (às vezes é ele o autor da capa do IP), trata-se, sem dúvida, de um dos mais talentosos cartoonistas da novíssima geração. Os demais cartoonistas que colaboraram desde o início do IP foram João Fazenda, Nuno Saraiva e Nuno Markl, [22]  e  o referido António Jorge Gonçalves, tendo a colaboração deste último sido iniciada em  2005. Recordemos, entre os seus desenhos mais ousados ou vitriólicos, os que dedicou a Durão Barroso (6-XI-2009), Obama (“Não há milagres…Obama chega a Portugal como gajo normal”, 13-XI-2010), o cavalo da Grécia remendado pela UE (12-XII-2009), as tropas americanas abandonam o Iraque e vão-se embora, arrastando consigo a Estátua da Liberdade (3-IX-2009),  Manuela Ferreira Leite num esquife conduzido por Passos Coelho, Aguiar Branco e Alberto João (12-III-2010), o papa Bento XVI arrasta uma cruz de  madeira com uma forma fálica  (2-IV-2010), a esfomeada vaca da Europa bebe o seu próprio leite (14-V-10), Israel visto pelos palestinianos e como os israelitas vêem os palestinianos que os ameaçam (4-VI-10), FMI/POVO nova versão do POVO/MFA de J.A. Manta (o operário luso sodomizado pelo burguês do FMI engravatado (21-X-2011), Marine Le Pen, do Front Nacional, exibe as suas duas tetas transformadas em urnas eleitorais que Sarkozy e Hollande querem atrair a eles (17-IV-12), o rei de Espanha como um elefante abatido em África por dois jornalistas (20-IV-12), Angela Merkel como sádica que exibe as algemas com que vai amarrar as vítimas da sua polícia financeira (14-IX-12), etc. Não deixa de ser estranho que um cartoonista deste nível não tenha ainda reunido em livro os seus  desenhos duma austeridade de traço e sátira tão agressiva como certeira.

O IP constitui, de certo modo, a importação do estilo de humor satírico “bête et méchant” dos jornais franceses Hara-Kiri e do seu sucessor Charlie Hebdo, [23] o abrasivo e licenciosamente desinibido órgão francês de Wolinski, Reiser, Cavanna, Cabu, Gebé e tantos outros cartoonistas ou jornalistas dum país que teve, desde o lendário L’Assiette au Beurre (1901-1912, no qual colaborou o nosso expatriado  Leal da Câmara) [24] e o Canard Enchainée (fundado em 1915, ainda em publicação), semanários que deixaram uma memória perdurável no público gaulês consumidor de gazetas ilustradas de caricaturas da vida social e  política. A grande diferença que se pode achar entre ambos é a relativa pobreza dos nossos cartoonistas (já no IP, o único desenhador actual de real talento é o referido António Jorge Gonçalves) e uma tendência para a temática mais vulgar, servindo-se de situações escabrosas e linguagem despejada (o que o referido Charlie Hebdo abundantemente utiliza). De qualquer modo, um suplemento de jornal como este retoma de certa forma o melhor da tradição satírica que vigorou durante os finais da monarquia e a I República, ilustrada por órgãos de humor como A Garra, o Adesivo, A Lanterna, A Corja, A Marselhesa, Sempre Fixe, O Papagaio real (semanário monárquico, colaborado pelo jovem Almada Negreiros), O Século Cómico, O Riso da Vitória, A Corja e tantos outros, [25] nos quais podemos visualizar a história social e política desse regime de década e meia.


António Jorge Gonçalves, 2010, aqui

Tanto o estilo como a forma mental (e gráfica) destes três tipos de humor hiper-crítico, no domínio sobretudo da política no primeiro – O Inimigo Público – e de pendor mais abrangente nos outros dois – Gato Fedorento e Contra Informação –, mostram que o velho sestro de escárnio ou do velho pendor luso para a paródia política – recorde-se a publicação do veterano Gaiola Aberta, [26] velha revista muito pé-de-boi, com os seus gracejos pesados, esterquilinários e sem ironia, exemplo paradigmático de humor de cepa labrega e sem qualquer elevação intelectual – parecem, ao invés, vir comprovar que uma nova era de criticar com graça vem substituir o antigo espírito meramente escarninho, vociferante e rude, mesmo que mantenha um certo traço grosso no referido IP. Não significa isto que o escárnio tenha, por força, de se catalogar como forma inferior de humorismo – o caso do citado manifesto de Almada Negreiros bastaria para o desmentir –, já que, desde Rabelais (Pantagruel e Gargantua, respectiv. de 1532 e 1534) e Alfred Jarry (Ubu Roi, 1888) ao ultrajante semanário satírico gaulês Charlie Hebdo, esta forma de troça “bête et méchante” – dois exemplos:  “Vaticano já aprovou modelo de preservativo (ideal para fiéis com voto de castidade”, mostrando um preservativo com um corte que permite verter o seu conteúdo, IP, capa do nº137, de 5-V-2006; “Portas quer que a masturbação seja considerada genocídio / Não se podem desperdiçar tantos portugueses”, IP, nº 10, de 28-XI-2003 –  pode resvalar para a banalidade agressiva ou para a malícia puramente abrasiva quando desprovida dum sopro anímico interior (que os dois primeiros casos franceses referidos não deixam de patentear de forma expressiva, ou seja, dispondo dessa superioridade intrínseca de verve).




Monte Estoril, 21-IX-2012

João Medina







[1] J. L. de Vasconcelos, Etnografia portuguesa. Tentame de sistematização, vol. IV, elaborado segundo as os materiais do autor por M.Viegas Guerreiro, notícia, notas e conclusão por Orlando Ribeiro, Lisboa, Imprensa Nacional, 1958, pp.525 e ss. José Leite de Vasconcelos (Tarouca, 1858-1941), formado em Ciências naturais (Porto, 1881), e em Medicina (Porto, 1886), doutorado em Letras (Paris, 1901), foi conservador da Biblioteca Nacional até 1911, altura em que lecciona cadeiras de Filologia na Faculdade de Letras de Lisboa, até  1929. Interessado no estudo da alma popular, produz diversas obras resultantes das suas pesquisas etnográficas e folcloristas, percorrendo todo o país; publicou Tradições populares em Portugal (1882), Ensaios etnográficos (1891-1910), Religiões da Lusitânia (1897-1913, 3 vols.) Esquisse d’une dialectologie portugaise (tese de doutoramento, 1901), etc. O Museu Arqueológico português foi criado em 1893 por sugestão sua. Dirigiu a revista O Arqueólogo português (1895).
[2] Desconhece-se quem seja o autor deste almanaque pornográfico-satírico, mas presume-se que fosse Guerra Junqueiro; não se sabe quem o editou, nem a data da publicação, que talvez seja 1879 (na edição original diz-se 4481, impressa em Paris pela Imprimerie  le Chaste), sendo as 66 ilustrações de Rafael Bordalo Pinheiro. Esta obra foi há pouco tempo reeditada,em Lisboa, em 2011, por Tinta da China, com posfácio de António Ventura: O Pauzinho do Matrimónio. Almanaque perpétuo ilustrado por Rafael Bordalo Pinheiro, Lisboa, Tinta da China, 2011. Outro monumento da poesia pornográfica lusitana foi o poema de Guerra Junqueiro A Torre de Babel ou a Porra do Soriano, reeditado em 2012 (Lisboa, Tinta da China, 2012), já antes incluído, em curto extracto, na selecta de Natália Correia, Antologia de Poesia portuguesa erótica e satírica, Lisboa, Afrodite, 1966, pp. 344-346, verdadeiro pináculo da nossa literatura obscena.
[3] Este poema pornográfico narra as conhecidas propensões homossexuais de D. Sebastião Leite de Vasconcelos (Porto, 1852- Roma, 1923), satirizadas também na caricatura (v.g., Francisco Valença e Stuart Carvalhais). Foi nomeado bispo de Beja em 1907, por João Franco, ao qual tinha simpatias políticas. Em 1908 entrava em conflito com a monarquia por causa dos irmãos Ançã, dois sacerdotes que eram professores. A sua hostilidade à erecção dum monumento ao marquês de Pombal tornou-o odioso à imprensa republicana. Quando se deu a revolução de 5-X-10, o bispo de Beja desertou imediatamente do seu episcopado, o que trouxe sérios problemas à Igreja. O Governo provisório da República demitiu-o em  21-X-10, passando o bispo desertor a viver em Espanha, seguindo em 1912 para Roma, onde havia de falecer. O poema O Bispo de Beja é assinado por Homem Pessoa, possível pseudónimo do editor desse livro, Santos Vieira. A obra seria reeditada após o 25 de Abril, pelas Edições &Etc, sendo aprendida pela Polícia Judiciária, por denúncia, um dos raros casos de apreensão administrativa duma obra no regime democrático. Está incluído na antologia de poesia erótica da escritora Natália Correia, Antologia da Poesia satírica e erótica: dos Cancioneiros medievais à actualidade, que teve quatro edições: a primeira, em Lisboa, Fernando Ribeiro de Melo, 1966 (poema O Bispo de Beja. Incompletamente reproduzido, pp.376-86); a 2ª, Lisboa, Antígona, 1999; a 3ª, Antígona-Frenesi, 2005, e a 4ª, mesma edit., 2008.
[4] Quanto ao género literário chamado paródia e seu significado, nomeadamente em relação à paráfrase, veja-se Affonso Romano de Sant’Anna, Paródia, Paráfrase & Cia, São Paulo, Editora Ática, 1985 (definição de paródia: pp.11-15; paráfrase: pp.-16-22). Para o russo Mikhail Baktin, a paródia parte duma intenção diretamente oposta à do autor parodiado.
[5] Henrique de Campos Ferreira Lima (Lisboa, 1882-idem, 1949), alferes em 1904 e coronel em 1928, director do Arquivo Histórico Militar, estudioso de Garrett, tendo publicado uma bibliografia  deste poeta e dramaturgo, é autor de diversas obras, entre as quais avultam o catálogo de paródias de que nos ocupamos e um estudo sobre Santo António militar (1939), além de diversos volumes sobre Garrett como diplomata, estudante em Coimbra, em Espanha, etc., além de um estudo sobre Quinet em Portugal (1941).
[6] Ver Crispim (Eugénio Severim de Azevedo, 1884-1920), O Sr.Bernardino Machado nunca existiu. Bernardino na Lenda, Bernardino na Política. Bernardino na Cordialidade. Formação impessoal do Bernardinismo, Lisboa, Tipografia A Modesta, 1914, ilustrado com um desenho na capa mostrando um espantalho formado pelo chapéu, bigodes e casaca de B.M. Esta obra troçava de Bernardino (Rio de Janeiro, 1851-1944), na linha do brochura de Emilio Bossi (Bruxelas, 1870-Lugano, 1920), Jesus Cristo nunca existiu (Gesù non è mai esistito, 1900, trad. de Augusto de Castro, 3ª ed., Lisboa, Livraria do Povo, 1909), por sua vez inspirado no panfleto antinapoleónico Napoleão nunca existiu, do abade Jean-Baptiste Pérès (Agen, 1752-1840), cf. a trad. em português, do inglês, pelo Rev. Roberto Moreton, Porto, Tipografia da Viúva de José da Silva Mendonça, 1909, 16 pp.). Essa brochura satírica é, em geral, atribuída a um bibliotecário de Agen (dep. de Lot-et-Garonne), em França, o abade Jean-Baptiste Pérès, da qual existem diversas edições desde 1827, reedit. em 1831, 1835, 1836, 1838, etc.: Comme quoi Napoléon n’a jamais existé.  Na Biblioteca Nacional de Lisboa há uma ed. farncesa desta obra, intitulada Comme quoi Napoléon n’a jamais existé ou Grand Erratum Source d’un Nombre infini d’Errata (...), Paris, 1909. Esta brochura foi também atribuída ao jornalista satírico francês Eugène de Monglave, autor de Le Siège de Cadiz par l’Armée française (1823) e de Histoire de la Conspiration des Jésuites contre la Maison de Bourbon en France (1825). Tulard, no seu L’Anti-Napoléon (Paris, Julliard, col.Archives,1964; pp.16 ss), garante que o folheto é de autoria de J.-B. Pérès. transcrevendo esse pequeno texto que daria origem a uma série de negacionismos posteriores (v.g., Emilio Rossi, Jesus Cristo nunca existiu; Crispim,  Bernardino Machado nunca existiu, Lisboa, 1914, etc.). Pérès baseou-se num livro de sucesso, publicado ainda no séc. XVIII, por um tal Dupuis, explicando a origem de todos os cultos na astronomia e em mitos solares; esta obra charlatanesca intitulava-se L’Origine de tous les Cults. Há um romance do galego Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999), intitulado La Isla de los Jacintos cortados (1980), passado nos Estados Unidos, no qual um professor espanhol tenta provar aos seus alunos americanos que Napoleão nunca existiu, tendo sido inventado pelos inimigos da França, Talleyrand e Metternich. Crispim considera que B.M. nunca existiu “a não ser na imaginação dos que nele têm acreditado ou por conveniência especulativa, ou por sugestão, ou ainda por necessidade de justificar os factos pela intervenção dum homem superior. (…) Bernardino resultou (…) do mito afonsista, pois que Bernardino não é mais do que o dr. Afonso Costa pintado de branco numa criação fantasiosa para dar maior respeitabilidade ao ídolo.” (pp.25-6). Crispim formou-se em Letras, era aparentado com Hintze Ribeiro e pertencera ao partido franquista, sendo jornalista monárquico; foi chefe de redacção do Tempo, da Nação e do Talassa.
[7] Veja-se o nosso estudo “D. Tomás de Melo, um português das Arábias” in Tomás de Melo, Boémia antiga, Lisboa, Arcádia, 1980, 3 p, antologia, pref. e notas de João Medina.
[8] Veja-se J. Dantas, A Ceia dos Cardeais, Lisboa, Tavares Cardoso & Irmão, 1902,  36 pp.
[9] Já em 1923, num artigo publicado n’O Mundo (19-XI-1923), o jornalista e literato  Albino Forjaz de Sampaio (1884-1949)  observava que as paródias à Ceia… de Dantas eram já 17, pelo que essa insistência em troçar da peça “tem servido para a macacaria literária dos dois mundos se rever em esgares e alexandrinos que é uma consolação. Ninguém faz ideia do babado e insulso chorrilho de banalidades sobre ela se têm bordado. Eu possuo 17 paródias, dezassete!” (apud C. F. Lima, op. cit., p. 44).
[10] Vide J. Dantas, Soror Mariana. Peça em 1 acto, Porto, Livraria Chardron, 1915, 39 p. A imprensa lisboeta da altura deu-lhe grande atenção: vejam-se, v.g., Diário de Notícias, 22-X-1915 (a peça foi estreada com aplauso de grande parte do público”,  A República, 21-X-15 (“O teatro estava repleto e a peça teve um magnífico sucesso, sendo Júlio Dantas chamado ao proscénio e calorosamente aplaudido”), A Capital, 30.X.15 e 21-X-15 (ensaio geral serem jornalistas, mas com a presença de J.D, 22-X-15 (artigo na lª p., refere a celeuma em torno da questão político-religiosa e que o “notabilíssimo escritor magistralmente teatralizou o caso da Freira de Beja”, garantindo que só zoilos podem descortinar no entrecho (…) propósitos anticlericais”, além de elogiar as duas actrizes estreantes, Luísa Lopes e Celeste Leitão, referindo que a estreia da peça foi assinalada por um incidente: “Um leve ruído de desagrado ouviu-se ao baixar o pano sobre a peça de J.D. Os aplausos cobriram essa manifestação que se reproduziu num recanto da sala, constando que os manifestantes em número muito reduzido se viram forçados a sair em face da atitude de outros espectadores”; esta crónica é assinada por Avelino de Almeida), 28-X-15 (refere a edição em livro da peça, editada por Chardron, do Porto, com capa de Alberto de Sousa, também mencionado no Manifesto anti-.D. de Almada), 25-X-15 (artigo “Um êxito teatral e um êxito literário”, de Adelino Mendes), A Luta, 20-X-15 e 21-X-15 e 22-X-15(“Terminada a representação, enquanto a maioria aplaudia e chamava J.D., alguns espectadores patearam, com o que outros não concordaram, estabelecendo-se borborinho que foi rapidamente terminado”), Jornal do Comércio e das Colónias, 22-X-15 (“No final os aplausos foram calorosos, sendo chamado o autor que foi  muito aplaudido, assim como todos os intérpretes), etc. Almada, no seu manifesto, garante antes que: “o espectador (…) desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa, do dia seguinte, foram unânimes naquele êxito teatral de Dantas” (Almada Negreiros, Manifesto anti-Dantas e por extenso por José de Almada Negreiros Poeta de Orfeu futurista e tudo, in Obras completas de A.N., vol.6, Lisboa, Editorial Estampa, 1972, p.15).
[11] Cf. Almada Negreiros, Manifesto anti-Dantas, pp.9-17. Sobre este escritor e artista veja-se o estudo de J. A. França, Almada o Português sem Mestre, Lisboa, Estúdios Cor, 1974, ilustr., maxime pp.32-34.
[12] Cf. Almada Negreiros, Manifesto anti-Dantas , op.cit., p.15. A síntese deste manifesto consiste neste juízo: “O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!” (p.12).
[13] Júlio Dantas (Lagos, 19-V-1876-Lisboa, 25-V-1962), médico, militar, poeta, dramaturgo, ensaísta, publica o seu primeiro livro em 1897, Nada, forma-se em Medicina, é nomeado em 1902 médico do exército e comissário do governo no Teatro D. Maria II (1902), é sócio da Academia das Ciências (1913) e depois seu presidente (1921), sendo quatro vezes ministro durante a I República (1920, Instrução Pública nos ministérios António Granjo e Álvaro de Castro, e, depois, Negócios Estrangeiros, 1921 a 1923, nos Ministérios Cunha Leal e Ginestal Machado). Filiado no Partido Nacionalista, foi por três vezes em missão diplomática ao estrangeiro (1923, 1926 e 1941); aderiu ao Estado Novo, foi membro da Câmara Corporativa (1936) e pertenceu à comissão do Duplo Centenário em 1941, altura em que teve Almada a seu lado como um dos artistas presentes nesse certame. Dantas foi autor de uma obra vasta distribuída pela poesia, crónica literária, ensaio, historiografia, teatro, etc. Três peças suas foram convertidas em ópera: A Ceia dos Cardeais, O que morreu de Amor e As Rosas de todo o Ano esta em duas óperas diferentes; A Severa foi adaptada em Espanha a zarzuela. O seu interesse pela hereditariedade levou-o, em 1913, a fazer uma famosa conferência sobre “Consanguinidade e Degenerescência nas Famílias reais portuguesas”, ele que fora monárquico e que, mais tarde, estaria com o regime de Salazar Homem mundano, académico, político camaleónico, tutelando ainda o teatro nacional, Dantas foi, em certa medida, uma das figura mais representativas do establishment político-cultural luso, desde os finais da monarquia ao salazarismo. Por seu lado, Almada (São Tomé, 1893-Lisboa, 1970), desde jovem situado no campo da monarquia e com simpatias pelos regimes autoritários, trabalharia para o Estado Novo, ilustrando obras e cartazes de propaganda legionária e do regime, ilustrando o livro Roteiro da Mocidade e do Império, de Silva Tavares, fez o cartaz “Nós queremos um Estado forte! Votai a nova constituição” (1933), além de desenhar um selo postal com o lema estadonovista “Tudo pela nação” (1935), executando importantes obras para decorar edifícios do regime, entre os quais estava a Igreja de Fátima, mostrando sempre admiração pelo seu ditador.
[14] Recordemos alguns desses artistas zurzidos pelo manifesto de Almada: Vasco Mendonça Alves, Chianca de Garcia, Ramada Curto, Urbano Rodrigues, André Brun, Mello Barreto, Nunes Mata, Alberto Sousa (“o Dantas do desenho”, Oldemiro César, José de Figueiredo, Sousa Pinto, Alfredo Guisado, Albino Forjaz de Sampaio, Homem Cristo Pai, Homem Cristo Filho, e “todos os que são políticos e artistas”, e os músicos, os jornalistas  e os críticos literários como o “raquítico Albino Forjaz de Sampaio (…), “mais os Vaz, os Estrela, os Camacho, os Cunha, os Carneiro, os Barros, os Silva, os Godinho, os Teixeira, os Câmaras, etc., sem esquecer os artistas da Águia do Porto e os jornalistas do Século, da Nação, da República e da Luta,  e ainda “todos os pintores e artistas de Portugal que eu não gosto (...) e os palermas de Coimbra” e ainda “ todos os Dantas que houver por aí” (Almada Negreiros, Manifesto Anti-Dantas, pp.15-16). Em  suma, esta diatribe paródica a uma peça de Dantas constituía, no fundo, um libelo contra todas as formas de cultura e arte e os “burros de Cacilhas” também incluídos neste rol de nulidades do período republicano, no momento em que surgia, com o Orpheu, uma geração que a contestava. Não se esqueça que Dantas escrevera em na Ilustração portuguesa de 12-VII-1915, uma condoída e piegas crónica sobre o desastre de que fora vítima Afonso Costa, ao saltar dum eléctrico por supor ter sido vítima dum atentado, isto dois meses depois da revolução do 14 de Maio desse ano, que repusera o Partido Democrático no poder; veja-se esse texto no vol. 1 da  Primeira República da nossa História contemporânea de Portugal, Lisboa, Amigos do Livro, s.d., pp. 246-247.
[15] Veja-se o nosso estudo “O mito sebastianista hoje: dois exemplos da literatura portuguesa contemporânea: Manuel Alegre e António Lobo Antunes”, in Actas dos Terceiros Encontros Internacionais de Verão de Cascais (1996), Cascais, C.M. de Cascais, vol. 4, 1997, pp.199-212. E o nosso livro Zé Povinho sem Utopia, Cascais, C.M. de Cascais, 2004, maxime pp. 32-33.
[17] Veja-se a entrevista com o grupo do programa da Sic Radical, feita por Paulo Moura, com fotos de Pedro Cunha, Gato Fedorento – a arte de rir de si próprio”, revista Pública, nº 441, 7-XI-2004, pp. 31-38. Vide ainda “Estar bem. Dossier Garo Fedorento”, revista Xis do jornal Público, 28-I-2006, pp.8-20, constituído por entrevistas e fotos dos quatro animadores do grupo.
[18] Na referida entrevista à revista Xis, Miguel Góis salientava; “Não gostamos de humor com palavrões e por princípio não o fazemos. Não é o nosso caminho. (…). O nosso desafio é tentar fazer humor com que as pessoas se riam, mas sem palavrões.”
[19] Veja-e o artigo de Rita Brandão Guerra, “Contra-Informação depede-se com «amor» e malfeitorias”, Público,  11-XII-2010. Quanto à Contra-Informação veja-se o vídeo Contra of Best, Lisboa, Edição de Público/RTP/Mandala, 2005 (com trailers, making of e reportagens, mais uma larga selecção abarcando 9 anos de actividade das Produções Fictícias, de 1996 a 2005, textos de Rui Cardoso Martins, José de Pina, Filipe Homem Fonseca, des. e modelação de Pablo Bach, António Antunes, António Carvalho, Claúdio Esteves e Filipe Portela, realização de Eduardo Rodil e Francisco Merino e direcção-geral de Mafalda Mendes de Almeida). Sobre o fim deste programa satírico, vide: Sara Capelo, “Eles levaram o boneco para casa”, revista Sábado, Lisboa, 7-XII-2010, pp.80-82, ilustrado com fotos dos três políticos portugueses receberam o seu boneco na CI: Jorge Coelho, Sócrates e Francisco Louçã (Francisco Trotskã). Raquel Costa, “Bonecos do «Contra» dizem adeus…ou até já?”, Diário de Notícias, 27-XI-10, com fotos de dois bonecos, Barroso e Cavaco, R. Costa, “Guionistas temem fim dos bonecos”, Diário de Notícias, 19-XI-10, com fotos de Mafalda Mendes de Almeida e 5 bonecos de látex. Veja-se o artigo de um dos principais autores do CI, Rui Cardoso Martins, “Entre o acabado e o regressado, breve história do Contra-Informação”, revista Pública, 19-XII-10, pp. 34-39, com várias fotos coloridas de Trocas-te, Trotstkã, Cassete Carvalhas, Mário Só Ares, Acabado Silva, Bimbo da Costa, etc., feitas por Enric Vives-Rubio.
[20] O CI trata do período do final do governo presidido por António Guterres (nasc. em 1949), que vencera com o seu partido, o PS,  as eleições em 1995, sendo reeleito em 2001, e demitindo-se, por fim, em 2002, indo ocupar mais tarde, desde 2005, o cargo de Alto Comissário para os Refugiados. Cavaco Silva  governara durante uma década, vai de 1985 a 1995, tendo perdido em 1996 as eleições presidenciais desse ano para Jorge Sampaio, ficando então fora da política desde então até 2006, altura em que venceu as mesmas eleições e foi nomeado PR (22-I-2006, com 50,6%  dos votos), sendo reeleito em 2011 ( 23-I-11, com 52,05 % de votos e 19.74 % para Manuel Alegre); no período em que esteve fora da política, trabalhou no Banco de Portugal, do qual se reformou em 2004, tornando-se então professor na Universidade Católica de Lisboa, cargo de que se demitiria em 2002. Quanto a Santana Lopes (nasc. em 1956), assumiu o governo após a partida de Durão Barroso para a Comissão Europeia, em 2004, o 17º governo constitucional que duraria poucos meses. Quanto a Durão Barroso (nasc. em 1956), tornou-se primeiro-ministro em 2002, à frente do 16º governo constitucional (2002-4).
[21] Veja-se o DVD Contra of Best, editado em Lisboa, s.d., por RTP e Mandala, reunindo oito filmes e diversas paródias de anúncios comerciais que são troças ao período em que governaram Cavaco Silva, Santana Lopes e Durão Barroso. Entre as paródias dos filmes figura talvez a melhor paródia do CI, o filme Adeus, Abril!, a partir do Goodbye, Lenin!  (2003) de Wolfgand Becker: agora, em vez da história duma comunista de Leste que, depois dum trauma cerebral e dum longo coma, acorda na Alemanha reunificada, sendo convencida pela família e amigos de que o regime comunista ainda ali vigora,  no caso português, depois duma pancada que a deixa inconsciente e em coma durante anos, a deputada D. Odete Santos (Odete) acorda durante a presidência de Sampaio, convencido por Álvaro Cunhal e Carlos Carvalhas a fingirem que o secretário-geral do PCP é presidente da República e que em Portugal triunfou finalmente o regime marxista. Outros filmes parodiados pelo CI: O Senhor dos Anéis (O Senhor dos Pastéis), Minority Report  (Inteligência Artificial, sátira a Barroso e à sua partida para Bruxelas, a cantar: “Que se lixe a nação!...Adeus tristeza de país!... mas eu parto feliz”), Rambo (Rambo Guedes, Nobre Guedes no papel de Rambo), Shrek (Santanek, sátira feroz a Santana Flopes), O Mito de Fausto, Santana o grande (esta é uma das mais abrasivas paródias a Santana Lopes, clone do verde Shrek, na sua fase final, após o catastrófico governo de quatro meses, a comparar-se a um recém-nascido numa incubadora, a ser  pontapeado pelos seus colegas de partido, discurso que foi efectivamente pronunciado por este estabanado político). 
[22] António Jorge Gonçalves nasceu em 1954, fez BD, sendo ainda designer gráfico e cartoonista. João Fazenda nasceu em Lisboa em 1979 e tem colaborado em obras de BD, realizando em 2010 a sua primeia exposição individual. Nuno Saraiva nasceu em Lisboa em 1969, colaborou no IP, no semanário Independente,   publicou, em parceria com Júlio Pinto, uma série de bd chamada Filosofia de Ponta, da qual sairiam 3 volumes(1997),  e em nome próprio  Os Dias do Bartolomeu (1989),  Body and Soul (2001), etc. É colaborador do Sol; recebeu em 2010 o Prémio Stuart do Desenho de Imprensa. Nuno Markl colaborou durante algum tempo no IP com uma crónica ilustrada intitulada “Salvo erro”.
[23] Vejam-se as antologias deste semanário satírico,  Les Années Charlie, apresent. de F.Cavanna e Ph.Val, Paris, Editions Hoebeke, 2004, ilustr.; e Charlie Hebdo. Les 1000 unes, 1992-2011, Paris, 2011.
[24] Veja-se L’Assiette au Beurre (1901-1912), L’Âge d’Or de la Caricature, Paris, Les Nuits Rouges, 2007, ilustr. (não traz uma única caricatura de Leal da Câmara).
[25] Veja-se o nosso livro Caricatura em Portugal. Rafael Bordalo Pinheiro, pai do Zé Povinho, Lisboa, livros horizonte, 2008, ilustr. maxime pp.27-38 (breve sinopse histórica do  nosso humorismo gráfico).
[26] Humorista com colaboração no Diário de Lisboa, Cara alegre e O Mundo ri, José Vilhena (nasc. em 1927) publica várias dezenas de livros de humor, é preso pela PIDE e, depois do 25 de Abril de 1974, edita a revista Gaiola Aberta, a que se sucedem O Fala Barato, O Cavaco e O Moralista.