sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Há muito, muito tempo.







Fui preso no dia 13 de Julho de 1977, que nesse ano não calhou a uma sexta-feira. Tínhamos vindo a fugir à frente da polícia de choque pela Graça fora desde o Tribunal Militar de Santa Clara, onde dava início o julgamento de Rui Gomes. Mais leves, astutos e atléticos, sempre que ganhávamos avanço sobre a carga policial retorquíamos com uma chuva de pedras. Nesta curta Longa Marcha chegou-se ao Largo de Sapadores.

Pareceu-me perigosíssimo para a revolução democrática popular que dois tão centrais quanto clandestinos dirigentes do querido partido, Acácio Barreiros, que em público era deputado pela UDP, e o Grande Líder Eduardo Pires, estivessem postados em conspirativa cavaqueira à entrada de Sapadores, enquanto os bófias faziam agora um movimento de pinça para nos cercar. Diligente, avisei-os que retirassem, olharam-me com o enfado de velhos generais e foram andando enquanto eu decidi heroicamente protegê-los com mais pedradas.

Nisto oiço um grito e um apito. Um cívico de ronda, emulado pelo ambiente de batalha, apontava-me a arma de serviço, reclamando que me rendesse. Corri, perseguiu-me um carro nívea, fui catado – com os bolsos cheios de pedras.

 

Cartaz da manif

 
jornal "Página Um"
 

Lá vai tudo a caminho da esquadra dos Caminhos de Ferro. O mais exaltado era o condutor, um homem pequenino que decerto não era bailarino. Virava-se para trás largando as mãos do volante, não só para me exibir o bigodito adolfico como para me regalar de cacetadas a eito; sem discernimento para fazer pontaria, algumas acertavam nos agentes a emoldurar-me no banco de trás. Várias vezes o veículo se ia espetando nos estacionados ou nos cruzamentos atravessados na mecha e, na verdade, íamos todos aterrorizados com a condução. O que viajava no lugar do morto ainda arriscou debalde pedir-lhe calma, olhá estrada pá, o que teve um efeito amplificador da sua cólera. Nos intervalos das vergastadas, protestava fremindo o bigode, contra a provável falta de confiança das hierarquias nas suas capacidades: “havia de ser comigo!”

No recato da esquadra todos estávamos mais à vontade para dar largas às nossas disposições. Do meu lado, pareceu-me excitante a ideia de me tornar um mártir da revolução, pelo que agi em conformidade: um paisana mandou-me despir ao que retorqui se era só ele ou havia mais panascas – porrada. Veio outro e dedilhou com desprezo o emblema de Estaline que eu trazia na lapela, “era um trabalhador?”, “chui é que não era, de certeza” – porrada. Entretanto, a bem da minha glória, aquela era a esquadra onde os choques vinham aliviar a bexiga. Ao verem-me, perguntavam quem era o melro. Explicavam-lhes. Acariciando o casse tête: ora deixa cá ver se o pau se parte – porrada. Estivemos nisto até à noitinha, eles esgotaram ao assunto, eu esgotei os insultos.


 
 
 
 
Aquele foi um dia registado para sempre nos anais da corporação policial. Pela primeira vez desde o 25 de Abril, houve ordem para carregar em forma; estavam radiantes, como costumam estar os preteridos quando lhes pedem que regressem. À época os polícias de choque não eram especiais, nem apresentavam o ar de dark knights articulados e ginasticados de hoje. Reza a tradição que os recrutavam nas levas de recém-desmobilizados da guerra colonial que, encadeados pelas luzes do mundo, já não desejavam regressar às aldeias de origem. Eram escolhidos a dedo entre os mais ressentidos, boçais, de má índole e traumatizados e nunca se comprovou que os drogavam antes de os soltar. Não era preciso, bastava deixá-los a assar ao molho nas ramonas, horas e horas a fio em silêncio irrespirável, até lhes abrirem as portas e açularem contra a multidão – a adrenalina fazia o resto. Depois de largados ficavam incontinentes de fúria e por zelo, talvez também com algum prazer, arriavam com o bastão ao contrário, assestando o cabo metálico nos crânios. Naquela tarde de 77, não só moeram de mocada até à morte o militante Luis Caracol como houve quem os visse a espancar um poste de iluminação.

Aproximando-se a hora de jantar e já não estando ali a fazer nada, exigi um telefone para chamar um advogado; ligas mas é aos teus pais para te virem cá buscar. O careca que estava de plantão, com os modos displicentes de um cansado com a vida, muito mula, não atava nem desatava: advogado!, pais..., advogado!, pais… Descobrindo que ele era do Porto, desdenhei com sobranceria lisboeta as habilidades de Pedroto e chamei brinca-na-areia ao Seninho. O guarda transitou da aparente bonomia para a irritação e fechou-se em copas. Dali já não levava troco.

Primeiro ouviu-se uma travagem brusca na rua, depois as portas de vidro aramado abriram-se com estrondo, irrompe um senhor de baixa estatura, atrás dele volteiam dois polícias constrangidos a pedir calma, “a culpa disto é do 25 de Abril!” gritava o senhor, o cortejo penetra no escritório do chefe da esquadra, ergue-se o graduado da secretária balbuciando a sua autoridade: “sedição”, “duas pedras”, “nos bolsos”, o senhor vocifera ainda mais convicto: “a culpa disto é do 25 de Abril!”, desarmado e confundido o major aquiesce: “por esta passa…”

Assim fui libertado às onze da noite.

À saída o sentinela, paternalmente, dá-me uma palmadinha nas costas: “tem juízo, rapaz”; replico “vai à merda”; acto contínuo, estalada de meu pai – creio que a única que dele recebi.
 
 
Valdimir Markovsky, “Estudo para 9 de Julho de 1905”, 1907
 
 
Por mais lastimável que este episódio tenha sido, dele não colhi qualquer proveito. Em vez de receber os galardões de resistente, fui severamente admoestado pelos veteranos. Alguns tinham andando nas complicadas correrias do funeral de Ribeiro Santos ou do Congresso de Aveiro, outros nas refregas com a tropa do famigerado capitão Maltês nos relvados da Cidade Universitária, um malhara com os ossos em Caxias. A minha bravata fora temerária e pequeno-burguesa – havia lá pior crítica – e a minha galhardia desrespeitosa para com os perseguidos e torturados do Estado Novo. As peripécias daquele dia eram uma brincadeira se comparadas com a brutalidade e a violência da repressão anterior ao 25 de Abril. Posto o que nem tive coragem para lhes contar como fora libertado das garras da polícia.
 
 
José Navarro de Andrade

 

6 comentários:

  1. Suponho que este texto terá sido escrito há muito tempo , seja mais uma curiosidade deste excelente blog e não um simples aproveitamento
    de acontecimentos recentes.
    Porque se não fôr assim é um texto inútil no tempo e no modo.

    Para concluír pela "auto-admitida" inutilidade da bravata ( o que só lhe fica bem) temos que ler em todos os seus pormenores as "auto-elogiativas" descrições( o que só lhe fica mal)?

    Este é o senhor que há tantos anos me faz companhia no amor pelo jazz ?
    O que "escolhe" os filmes que eu vejo ou não vejo (pagando , claro) ?
    Ou será outro com o mesmo nome ?

    "Il y a quelque chose qui cloche là dedans" , como canta Reggiani na "Java des bombes atomiques" ...

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  2. Caro rmg: se o auto-elogio não lhe soa a sarcástico é por defeito do texto. Sim ao jazz; os filmes no pretérito.
    José Navarro de Andrade

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    1. Caro JNA

      Talvez chegue tarde esta resposta , tenho andado arredio daqui , nada a ver com o local .
      Defeito do texto , talvez .
      Defeito do leitor , porventura .

      Há dias assim em que nada é o que devia ser .
      Obrigado pelo jazz de sempre .
      E também por muitos filmes pretéritos .

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  3. ainda hoje, pela tarddinha, lia as memórias do JMF ("revolução"...).
    agora, o seu texto. Valeu a pena.
    Obrigado pelo "olhar distanciado" e irónico, informativo e sem as grandiloquências do tipo «eu estive no Maio de 68...».

    caro rmg, imagino que o acontecimento recente será mais o livro do JMF do que as óbvias manifestações de agora. Aliás, parece-me que a catalogação de «bravata» foi, à época, um Partido-Muito-Revolucionário a usá-la numa estaliníssima purga.

    genial o senhor seu pai a rematar uma tarde de aventura: uma bofetada à bruta!

    Luís Palma de Jesus

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    1. Caro Senhor

      Não li o livro de JMF nem o tenciono ler , irei ler por aí uma sinopse para saber do que trata .

      Sou dessa época mas não sou de todo dessa purga .
      A catalogação deve-se ao inevitável peso da literatura francesa nos leitores que se iniciavam nos anos 60 .

      Talvez por isso mesmo , literatur francesa e jazz , me tenha saltado de seguida Boris Vian .

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  4. ... e bem merecida. Obrigado.
    José Navarro de Andrade

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