sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A cabana de Heidegger.

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Nunca acredite em quem lhe disser que leu na íntegra Sein und Zeit. Nunca. À excepção de Artur Baptista da Silva, jamais um ser humano foi capaz de compreender tudo o que lá está, de fio a pavio. Mas podemos aproximar-nos de Heidegger de um outro ângulo, certamente mais frívolo, mas igualmente válido. Adoptemos a perspectiva do turismo intelectual. Como guia de percurso, o livro de Farías centra-se em excesso na demonstração do nazismo intrínseco à filosofia de Heidegger e, quanto a biografias, existe uma clássica, de Hugo Ott, e outra, igualmente muito boa, de Rüdiger Safranski. Todos se lembram da evocação que Heidegger faz das noites em que, ao redor da fogueira, fumava cachimbo com os camponeses e lenhadores da Floresta Negra, em silêncio. E da importância desse silêncio. A vida de Heidegger foi feita de muitos silêncios desses, mas também de palavras com uma imensa – e, por isso, perigosíssima – carga poética. A cabana de Heidegger na Floresta Negra condensa toda a sua filosofia e o seu modo de ver o mundo. Hoje é um lugar de peregrinação, que a família tenta a custo resguardar de olhares excessivamente indiscretos. Num livro interessantíssimo, Heidegger’s Hut, Adam Scharr esquadrinha o covil da fera na sua simplicidade rude e campestre, na lhaneza do desenho e da volumetria, na pretensão de solidez dos valores que queria projectar. Não admira que muitos discípulos, fascinados, se reunissem ali, escutando no negrume das noites a palavra do Mestre. Foi ali que Heidegger concedeu a famosa entrevista ao Der Spiegel, cuja publicação só foi autorizada postumamente. «Só um Deus poderá salvar-nos», foi a frase mais marcante desse encontro fugaz do autor de Ser e Tempo com uma publicação de grande tiragem. A luz da publicidade obscurece tudo, disse, um dia. Enquanto falava para o Der Spiegel, a seu lado, algo submissa, a mulher, Elfriede. Não a única, já que outras mulheres atravessaram a sua vida, e até existem divagações romanescas de gosto duvidoso sobre o último encontro com Hannah Arendt. Menos conhecido é o facto de ter sido Heidegger a assinar, como proponente, a ficha de inscrição de Carl Schmitt no Partido Nacional-Socialista. Schmitt esperou longas horas, numa fila, para poder aderir ao Partido. Andava eu, floresta dentro, à procura de imagens da cabana de Heidegger e encontrei um projecto arquitectónico invulgar, singular. Da autoria de Juan Carlos Portuese, datado de 2007, delineia aquilo que se intitulava como «Centro de Visitantes e Hotel» para os que quisessem contemplar a cabana de Heidegger. Trata-se da antítese, a antítese completa, da cabana do filósofo. Um edifício de grandes proporções e linhas futuristas, quebrando a paisagem bucólica, maculando os trilhos do bosque. O projecto só pode ser uma paródia, um gozo ao culto heideggeriano. Não é possível, pura e simplesmente não é possível, que alguém tenha pensar em construir isto naquele local, profanando a «aura» que rodeava Heidegger. A explicação do projecto parece mostrar que se tratou de um mero divertissement de estirador. Em todo o caso, aqui fica tudo, para ajuizardes com vosso juízo e gosto.
António Araújo




3 comentários:

  1. 1) Até conheço uma pessoa que leu de fio a pavio, e outra vez, o O Sein und Zeit. Enlouqueceu - absolutamente verídico.
    2) Olha para a foto 9 e fica explicada subliminarmente muita da correspondência entre Hannah Arendt.
    3) O novo projeto será interessantíssimo se a cabana ficar em baixo, entre as patas metálicas, ao fundo da escadaria.

    José Navarro de Andrade

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  2. Não li o Ser e o Tempo, no entanto seduziu-me o tema do post pela razão que irei adiantar. . De facto, a cabana de Heidegger é uma outra forma, muito real, de nos aproximarmos de Heidegger. Um outro filósofo, Jean Guitton, relata no seu livro biográfico e de memórias (Um século uma vida) a visita que fez a Heidegger. Diz o filósofo: “Não posso esquecer a visita que fiz com minha mulher ao lobo da Floresta Negra: Martin Heidegger. ... Como esta conversa por silêncios, gestos e piscar de olhos não tinha dado resultado, Heidegger propôs-nos uma caminhada a pé sobre a neve, até ao seu chalé de Todtnauberg. Fazia quase noite (era Dezembro), quando chegámos, sem ter rompido a essência do silêncio dum campo de neve, e Heidegger parou num ponto deste campo. E disse em francês: «Vós ides ver a minha cabana.» Não se via nada. Nenhum chalé, nenhuma árvore; nada, salvo a neve e a noite. E eu dizia para mim vagamente que esta noite e esta neve eram os símbolos do que ele tinha tentado exprimir obscuramente na sua obra O Ser e o Tempo («Sein un Zeit»). Então, Heidegger pegou numa pá. E obstinadamente, lentamente, pazada por pazada, pancada por pancada, ele libertou uma chaminé que emergiu da neve, depois o telhado da casota, enfim a porta e a soleira. Conservando sempre a pá na mão, disse-me o que acabava de fazer perante os meus olhos era o símbolo do seu trabalho em filosofia. Mais tarde explicar-me-ia que desconfiava dos livros escritos por filósofos, que lhes preferia os livros escritos pelos poetas, principalmente por poetas místicos como mestre Eckhart.”

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