quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Camões e o «Milagre de Ourique».

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No ano da graça de 1139, a 25 de julho, data em que se comemora a festa de Santiago Maior, travou-se, nos campos do Baixo Alentejo ou, talvez, do Ribatejo, a tão célebre quanto nebulosa batalha de Ourique, em que se defrontaram, de um lado, forças portuguesas chefiadas pelo já então rei, ou naquela ocasião aclamado, Afonso Henriques e, de outra parte, um exército sarraceno muito superior em número, comandado pelo "rei" Esmar, auxiliado por mais quatro "reis mouros", mais provavelmente emires, governadores ou apenas chefes militares, aos quais os cronicões denominavam indistintamente reis. A vitória alcançada pelos primeiros viria a revestir-se de enorme importância na história lusitana, representando o episódio mais notável da etapa de formação de Portugal como reino independente de Castela e Leão.[1]
         A ele está asociada a lenda de um milagre, cuja época de surgimento é incerta. Segundo José Hermano Saraiva, de início estaria ligado a Santiago, já então erigido em protetor das Espanhas na luta contra os mouros, sendo grande, tanto na Galiza como em Portugal, a fama de suas miraculosas aparições auxiliadoras em diversas ações guerreiras, especialmente quando estas ocorriam no seu dia, ao ponto de grangear-lhe a antonomásia de Matamoros.
         Portanto, para esse historiador, numa primeira fase o milagre de Ourique deve ter sido apenas um dos muitos do ciclo santiaguino. Nas primeiras referências portuguesas que sobre ele se conhecem, na Vida de São Teotônio, haveria alusão a Santiago.
         No final do século XIV, durante a guerra com Castela, por haver esse apóstolo permanecido como padroeiro dos inimigos castelhanos, em Potugal foi preciso suprimi-lo da patriótica legenda, substituindo-o por outro protetor que, inicialmente, veio a ser o são Jorge dos ingleses.
         O mais antigo relato completo do milagre teria aparecido na Crônica dos sete primeiros reis de Portugal, escrita em 1419, a qual tem como fonte a Vida de São Teotônio. Nele, D. Afonso Henriques procura animar os portugueses, dizendo-lhes que Deus os ajudaria, e Santiago, cujo dia hoje é, seria o seu conde. Mas depois a história continuava atribuindo o milagre exclusivamente a Cristo. A versão de 1419 é a origem das posteriores, mas nestas Santiago deixa de ter intervenção.
         Este mito viria a ser objeto de forjicações testemunhais por frades alcobacenses em pleno século XVI, servindo para inspirar a resistência popular durante o domínio filipino. Sua desmistificação, iniciada por Luís Antônio Verney, em 1746, no Verdadeiro Método de Estudar, ganhou muito mais ampla repercussão quando do lançamento do segundo volume da História de Portugal de Alexandre Herculano (1850), que o qualificou de fábula, dando com isto início a uma violenta e duradoura polêmica alimentada pelo clima de explosiva confrontação cultural então reinante no país, que se seguiu ao liberalismo. [2] Na opinião de Teófilo Braga, o ostracismo literário de Herculano explicar-se-ia pelo fundo ressentimento que manifestara com os ataques de que fora alvo em tal oportunidade.[3]
         Por sinal, Teófilo considerava que o suposto milagre de Ourique havia nascido da adaptação de outra conhecida lenda eclesiástica que se originara também com intuito político: a aparição, ao imperador Constantino, de uma cruz brilhante no céu, acompanhada da frase In hoc signo vinces. Fábula esta, por sua vez, muito parecida com a lenda de Clóvis implorando o Deus de Clotilde em Tolbiac. O milagre ante D. Afonso Henriques, filho de um conde francês, e neto de Afonso VI que inrtroduziu na Espanha a influência francesa, ligar-se-ia, segundo Teófilo, ao milagre de Tolbiac, já enxertado sobre o de Constantino. [4]
         Camões, na estância 45 do canto III de Os Lusíadas, assim o descreve:

                                      A matutina luz, serena e fria,
                                      As estrelas do Polo já apartava,
                                      Quando na cruz, o filho de Maria,
                                      Amostrando-se a Affonso o animava.
                                      Elle adorando quem lhe aparecia,
                                      Na fé todo inflammado, assi gritava:
                                      "Aos infiéis, Senhor, aos infiéis,
                                      E não a mi, que creio o que podeis".

         Os dois últimos versos da estrofe foram objeto de irônico comentário de Francisco Evaristo Leoni, que os tachou de "verdadeiro quinau dado ao mesmo Cristo, de que, todavia, os milagreiros se regozijam muito". [5] Não sei por que motivo essa crítica teve repercussão, mas o facto é que a vi referida por outros autores.
         José Maria Rodrigues [6], que, como Augusto Epifânio da Silva Dias [7], dá por fonte histórica de Camões, neste passo, a Crônica de D. Afonso Henriques de Duarte Galvão, tratou de defender o Poeta, atribuindo a responsabilidade do suposto disparate ao cronista (ou melhor, à respectiva fonte), que assim relatara o legendário acontecimento:

                   E quando foy hua mea hora ante manhã ... o príncipe syosse fora de sua tenda... uiu nosso senhor em cruz ... e adorouho muy deuotamente com lagrimas de grande prazer, confortado & animado cõ tal enleuamento & confirmaçam do spiritu sancto, quesse afirma, tanto que uio nosso senhor, auer antre outras palauras fallado alguas sobre coraçam & spiritu humano, dizendo: Senhor, aos herejes, aos herejes faz  mester apareceres, ca eu sem nenhua duuida creo e espero em ti firmemente (fl. XXII).

         Acrescenta J. M. Rodrigues, baseando-se em Herculano, que já Vasco Fernandes de Lucena, embaixador de D. João II, dizia em 1485 ao papa Inocênio VIII:

                   Antes de dar o signal para a batalha, este rei, orando de joelhos, viu o Salvador pendente da cruz, e foi tal a confiança do régio ânimo, tal a fé gravada no seu  coração, que, sem se aterrar com a estupenda maravilha, se atreveu a dizer que não convinha que Christo apparecesse a um firmíssimo crente, mas que tal apparecimento era necessario aos herejes, aos que se afastavam da fé christã.

         Para o Dr. Rodrigues, ao Poeta pertencia apenas a substituição da palavra herejes por infiéis, bem mais apropriada no caso e também mais de uma vez usada por Galvão, nos capítulos relativos à batalha do Campo de Ourique e noutros.
         Teófilo Braga, por sua vez, refere ainda que o cronista borgonhês Olivier de la Marche, nas suas Mémoires, escritas entre 1435 e 1488, descrevendo a lenda das quinas portuguesas, sobre as quais conversara com Vasco Fernandes, conta o seguinte sobre o milagre:

                   Reste la cinquème cause de l'augmentation de cet escu: le quel est soutenu d'une croix de sinoble, dont les quatre bouts se monstrent fleuronnés es quatre coings naissans dessous l'escu: et de ces aucuns veulent dire que celle croix y fut adjontée par un roy de Portugal, qui eut ceste grâce de Dieu, que combatant les Sarrasins, une croix s'apparut au ciel devant ses yeux, qui moult le conforta et sda compagnie. Le bon prince fit son oraison à Dieu et dit: Mon Dieu Jesu-Christ, j'ay ferme foy en toy et en ta passion douloureuse. Monstre ta croix à tes ennemis infideles, qui en toy ne veulent croire. [8]

         Se, diante destas demonstrações, alguém ainda quiser considerar procedente a crítica de Leoni e achar que Camões deveria ter-se dado conta da impropriedade de Afonso Henriques pretender emendar o ato do próprio Cristo, cabe ainda lembrar que a fórmula tem precedente nas Sagradas Escrituras. Com efeito, o Salmo 113 B da Vulgata latina (115 do texto hebraico) começa da seguinte maneira:

                                      Non nobis, Domine, non nobis,
                                      sed nomini tuo da gloriam,
                                      Propter misericordiam tuam et veritatem tuam
                                      ne dicant gentes: "Ubi est Deus eorum?"

ou seja:

                                      Não a nós, Senhor, não a nós,
                                      mas ao vosso nome dai glória,
                                      Por amor de vossa misericórdia e fidelidade
                                      Porque diriam as nações pagãs:
                                      "Onde está o Deus deles?

         Suponho mesmo que, quem primeiro imaginou a exclamação do monarca português, inspirou-se nesses versículos da Bíblia. O censor do Santo Ofício, que não glosou a impertinência, certamente tinha consciência de que o Poeta se apoiava no exemplo do salmista, que, além disso, constituía o lema dos Cavaleiros Templários.
         Essas apóstrofes à divindade certamente não foram raras na literatura universal, e ocorrem mesmo em obras muito mais recentes, como, por exemplo, a do grande poeta romântico brasileiro Castro Alves, o "poeta dos escravos", no seu célebre "O Navio Negreiro" [9]:

                                      Senhor Deus dos desgraçados!
                                      Dizei-me vós, Senhor Deus!
                                      Se é loucura... se é verdade
                                      Tanto horror perante os céus?!

Ou, ainda mais pungente e atrevidamente, logo no início do poema "Vozes d'África" [10]:

                                      Deus! ó Deus! onde estás que não respondes!
                                      Em que mundo, em qu'estrela tu t'escondes
                                               Embuçado nos céus?
                                      Há dous mil anos te mandei meu grito,
                                      Que embalde, desde então, corre o infinito...
                                               Onde estás, Senhor Deus?...

                                      Qual Prometeu, tu me amarraste um dia
                                      Do deserto na rubra penedia,
                                               Infinito galé!...
                                      Por abutre — me deste o sol ardente!
                                      E a terra de Suez — foi a corrente
                                               Que me ligaste ao pé...

E mais adiante:

                                      Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
                                      É pois teu peito eterno, inexaurível
                                               De vingança e rancor?
                                      E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
                                      Eu cometi jamais, que assim me oprime
                                               Teu gládio vingador?!

                                     


Rubem Amaral Jr.

        
        



 
        

 
           










[1] Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, Vol. XIX, Lisboa-Riode Janeiro, Editorial Enciclopédia.
[2] José Hermano Saraiva, História Concisa de Portugal, 9.ª ed., Mem Martins, Europa-América, 1984, pp. 55-58.
[3]Teófilo Braga, História da Literatura Portuguesa, XIII, Camões, a obra Lírica e Épica, Porto, Lello, 1911, pp. 464-465.
[4] Op. cit., pp. 451-452.
     [5]   F. E. Leoni, Camões e os Lusíadas, Lisboa, 1872, p. 214.
     [6]   José Maria Rodrigues, Fontes dos Lusíadas, 2.ª ed., Lisboa, Academia das Ciências, 1979, pp. 43-44.
[7] Os Lusíadas de Luís de Camões, comentados por Augusto Epifânio da Silva Dias, 3.ª ed., s.l. [Rio de Janeiro], MEC, 1972, p. 155.
[8] Tepófilo Braga, op. cit., pp. 456-457.
[9] Castro Alves, Poesias Completas, Intr. de Jamil Almansur Hadad, Org., Rev. e Notas de Frederico José da Silva Ramos, 2.ª ed., São Paulo, Saraiva, 1960, p. 530.
[10] Op. cit., pp. 541 e 544.

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4 comentários:

  1. Respostas
    1. Obrigado, Paulo. Os azulejos estão no Centro Cultural Rodrigues de Faria, Forjães, Esposende, e são de Jorge Colaço. Há uns magníficos painéis de Jorge Colaço numa «tasca» junto à Praça da Figueira, que vende tudo de leitão, desde croquetes a sanduíches!
      Um abraço
      António Araujo

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  2. O painel de Jorge Colaço é magnífico, mas o artigo de Rubem Amaral Jr é excelente!
    Abraço,
    Cunha Bento

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