domingo, 3 de março de 2013

«Um autor dos anos 2000».










Na capa da revista do jornal Sol (01.03.2013) anuncia-se mais uma entrevista com João Tordo, a propósito do seu último romance: «Hoje até o pasteleiro escreve livros». No interior, verifica-se que não foi bem isto que Tordo Jr. afirmou, mas o sentido anda lá muito perto. Com seis títulos no mercado, João Tordo considera-se um escritor ou, nas suas palavras, «um autor dos anos 2000». Que tem publicado livros, disso ninguém duvida. Mais até, decidiu fazer da escrita uma profissão. Aliás, é como uma actividade profissional que Tordo pretende que a escrita seja exercida – e, já agora, protegida. Trata-se de uma profissão dura e madrasta, esta das letras. Ao contrário do que acontecia antigamente, hoje em dia os praticantes deste ofício não têm sequer tempo para conviver entre si. «Temos vidas diferentes e com esta profissionalização da carreira viajamos muito. Vemo-nos nos encontros de escritores. Tenho pena de que a boémia entre escritores tenha desaparecido. Já não há partilha de ideias e não há zangas. Tenho poucos amigos escritores». Apesar disso, refere: «conheço todos os prémios Saramago, excepto o Paulo José Miranda».

         A seguir, evoca com nostalgia a geração de Cardoso Pires, Lobo Antunes e Saramago, escritores que – esclarece-nos Tordo – «não têm estilos iguais». Bons tempos, esses. «Nesses tempos, os escritores tinham a benesse de não ter de competir com a porcaria toda que se anda a vender. Hoje parece que todos são escritores: da apresentadora de televisão ao gajo dos blogues, ao pasteleiro. É um disparate. Eu não me vou meter na profissão dos outros. O excesso de produtividade editorial que marcou os anos 90 e estes últimos anos tem de parar».

         Eis, portanto, João Tordo, o artesão das palavras, a afirmar que, nos belos tempos de José Saramago e Cardoso Pires, estes gozavam da «benesse» de não terem que competir com pasteleiros ou apresentadores de televisão. «Eu não me vou meter na profissão dos outros». Ficamos portanto com a tranquila garantia de que Tordo-escritor nunca será Tordo-pasteleiro, por muitos pastelões que produza. Em contrapartida, crê-se que o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Hotelaria, Turismo, Restaurantes e Similares do Centro (STIHTRSC) deveria dar instruções estritas aos seus associados para que não escrevam nada, mesmo fora das horas de expediente. O escritor premiado não aprecia a concorrência desleal dos fabricantes de bolas com creme. Há mesmo, segundo ele, um «excesso de produtividade editorial» e esse excesso, sendo excessivo, «tem de parar». Como?

         Bem, em primeiro lugar convém esclarecer este jovem «autor dos anos 2000» que Torga e Agustina também tiveram de competir com novelas cor-de-rosa ou com O Livro de Pantagruel – e, ao menos, tiveram o pudor de não se compararem nem queixarem da concorrência. Mas que pretende, ao cabo e ao resto, João Tordo? Que só os escritores possam escrever e publicar? Mas, afinal, quem são os «escritores»? Uma seita iniciática de illuminati, um clube selecto de acesso reservado? Um sindicato monopolista com carteira profissional e privilégios corporativos? Uma casta superior de brâmanes, uma guilda da Idade Média?

         Como se vê, João Tordo oscila entre a extrema autoconfiança, que lhe advém da presunção de se julgar um «escritor» comparável a Cardoso Pires, e o cúmulo da insegurança, que o faz temer a refrega com o que escrevem apresentadores televisivos ou profissionais da confeitaria e panificação. Para quem está nos top’s de vendas, causa dó tanto medo da concorrência.  

         O problema da Literatura, na visão de Tordo, resolvia-se de uma forma simples: proibia-se que outros escrevessem. De facto, assim tudo seria facilitado, desde que fosse Tordo, ou algum outro iluminado, a decidir quem poderia ou não entregar-se à nobre arte da escrita. Deste modo, evitar-se-iam os «fenómenos de vendas de livros escritos a metro» e teríamos apenas «bons livros».

Mais adiante na entrevista, o que lhe repugna, afinal, é o facto de os livros de Dan Brown surgirem nos escaparates ao lado das grandes obras literárias. «As pessoas que lêem aqueles calhamaços tipo Dan Brown só vão ler aquilo. É bom que haja mais gente a ler mas temos de ter atenção ao quê». Atenção, atençãozinha, é necessário definir um cânone, se possível por via administrativa, através de uma inspecção-geral, tutelada pelo Ministério do Bom-Gosto. Uma ASAE literária, será isto que pretende? Para este escritor, é inconcebível, obsceno até, que os livros de pasteleiros e as obras de Saramago sejam comerciados no mesmo lugar. Concede, porém: «Percebo que seja nas livrarias. Mas que façam figura nos escaparates com os outros livros parece-me uma coisa quase obscena». Tudo se reduz, portanto, a uma questão de marketing. O grande problema das letras portuguesas não está no facto de se produzirem livros como os de João Tordo. A questão magna, o drama verdadeiro, está, pois, na ausência de um cordão sanitário ou de um perímetro de segurança que proteja a integridade de Os Cus de Judas dos avanços galopantes de Harry Potter.

         Um pouco mais à frente, lamenta-se Tordo da vida dura que abraçou. «Nós, os escritores, pelo menos os da minha geração, somos tudo menos ricos. E temos que fazer muita coisa para sobreviver». Acrescenta: «faço um bocado de tudo para conseguir sobreviver». O quê, pastéis de nata? Então, afinal, João Tordo não quer que os pasteleiros escrevam livros mas reconhece que, além da escrita, anda a fazer biscates por fora? Que dirão os músicos, por exemplo, já que Tordo confessa que voltou a tocar contrabaixo com o seu grupo Loafing Heroes? «Eu não me vou meter na profissão dos outros»?

         O desastre prossegue. Depois de se lamentar da perigosa concorrência dos pasteleiros, o jovem autor reconhece com orgulho que foi galardoado em 2009 com o Prémio Saramago. E, João, quanto a idas a festivais literários? «Não conseguia fazer isso em série. Conheço escritores que passam a vida no aeroporto. Gosto de ter o meu tempo pessoal e para escrever. (…) Nos próximos meses, vou viajar muito, devido ao livro novo». Afinal, pelos vistos, os escritores, os grandes escritores como João Tordo, são premiados, são amplamente publicitados, passam a vida em aeroportos rumo a festivais literários, andam em tournées promocionais das suas obras. Porquê tanto receio da concorrência dos desgraçados dos pasteleiros?

         «A minha forma de expressão partiu inteiramente de mim», diz Tordo. Será isso, porventura, o que o distingue doutros colegas de ofício cujo nome invoca, como Oscar Wilde, José Saramago, Borges ou Shakespeare. Neste último livro, Tordo explora o tema dos duplos. Agora, a compita já não é com os pasteleiros. Agora, João Tordo pede meças ao Bardo do Avon: «O Shakespeare escreveu sobre tudo, é difícil encontrar um tema novo. Mas há novas formas de se abordar o tema. É aí que se distinguem os escritores». É aí, nesse ponto crucial, que João Tordo se diferencia de William Shakespeare. Com modéstia, remata à trave: «um livro escrito por mim dificilmente poderia ser imitado, tenho o meu próprio estilo». Isto, claro, além de ser um cidadão do mundo («Viajo muito»), um prosador de sucesso («se é que se pode chamar a isto sucesso») e, enfim, um bom escritor: «Vendo livros porque, acho, sou um bom escritor».    

Este seu último livro foi escrito numa residência literária no Canadá. Ao que consta, William Shakespeare não ganhou o Prémio Saramago, nem os pasteleiros de Lisboa escrevem em residências literárias no estrangeiro. Mas não é com eles que Tordo concorre. Quem João Tordo verdadeiramente ameaça é outra classe profissional: os palhaços.
 
 
António Araújo


25 comentários:

  1. AHAHAHAHAHAHHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAHAH!!!!
    P.S. Amo este blogue!

    ResponderEliminar
  2. Excelente post , como sempre .

    Tenho milhares de livros (lidos) e nem um deste senhor , por mais que os folheasse não me atraíam , nunca percebi porquê .

    Agora já percebi .
    E foi ele que me explicou .

    ResponderEliminar
  3. É bem verdade, tordo de pena não precisa de ser depenado.

    ResponderEliminar
  4. Parabéns, António Araujo: muito boa análise e opinião sobre a entrevista do Tordo "escritor" que, como sou cada vez mais ignorante embora vá lendo todos os dias, considero igual aos outros "escritores a metro" que por aí andam a porem-se em bicos-de-pés...

    O Saloio

    ResponderEliminar
  5. Deus !!

    Resumo-vos já o meu mal e peço-vos desculpas: estive sem ler o malomil (uns quantos dias, vá) e disso me arrependo.
    Agora é rever as matérias perdidas (todas, letra a letra).

    Isto é apenas o melhor blog do mundo.
    Obrigado.

    ResponderEliminar
  6. até me doeu a mim, pobre torto, desculpe, Tordo.

    ResponderEliminar
  7. Coitado do Tordo! Uma vez folheei, não sei onde, qualquer coisa deste "escritor", mas, para ser sincero, aquilo ficava um pouco abaixo das literatices de 'pasteleiro'. Quanto ao prémio Saramago, estamos conversados. Os ditos escritores das capelinhas comunas, prodigalizam elogios entre si, e, claro, o mesmo se passa no que toca à entrega de prémios "literários". Os exemplos são mais que muitos.

    ResponderEliminar
  8. Extraordinário post: tomara ele escrever assim !

    ResponderEliminar
  9. Baixem lá as carabinas e deixem voar o Tordo, atordoado, vers le soleil.

    ResponderEliminar
  10. Caro António, parabéns pela prosa e pelo blogue, isto é que é serviço público!

    ResponderEliminar
  11. O escritor vai ser formador num Workshop sobre escrita criativa, uma acção que terá lugar no Mosteiro de Tibães nos dias 27 e 28 de Abril próximo.

    Um dos requisitos de admissão dos candidatos é "enquadrar-se na tipologia de destinatário(a) designada".

    Após consulta atenta da tipologia dos destinatários não me parece que a profissão de pasteleiro constitua um impeditivo.

    Resta saber se a frequência desta acção de formação dá acesso à certeira de escritor.

    ResponderEliminar
  12. "Like most intellectuals he's intensely stupid" ?

    ResponderEliminar
  13. Há uns gajos que se dão a si mesmos muita importância.É é bom que assim seja, porque mais ninguém lha dá!

    Quem é este gajo para se comparar com autores como Dan Brown ou J.K. Rowling?

    É que estes autores são muitos bons no que fazem.

    O DB na literatura de cordel. Que serva para nos entreter.

    E a JKR noutro plano, cumprindo uma missão sublime, que é a de instilar o gosto de ler às crianças. E aos adultos...

    Eete palerma do João Tordo é tão triste como o pai dele. É um chato, que faz chachadas, que não dão prazer a ninguém. E que passa toda a vida a julgar que fez algo de útil...

    Ainda bem para ele. Mas não se arrogue o direito de julgar os outros e, sobretudo, de condenar quem é muito melhor do que ele.

    Em síntese: seria bom que se dedicasse à pastelaria...

    Bravo, António Araújo! É urgente que estes tipos se apercebam de qual é a sua verdadeira dimensão.

    Pedro Sousa e Silva


    ResponderEliminar
  14. Parecem-me um pouco exagerados alguns dos comentários aqui publicados. Desde logo, porque a maioria nada leu do que JT publicou até esta data. Por outro, porque é bem verdade que o mundo editorial está repleto de "obras" oriundas de pessoas que nada têm que ver com a escrita, apenas a ela se dedicando, ou, por impulso próprio (sou condescendente nalguns casos...), vaidade ou por sugestão alheia (leia-se, editoras, que a vida está difícil e importa ir ganhando algum para sobreviver...). E se isto é verdade, mais verdade é, o facto de que leitores menos atentos olhem para DB, JKR ou EL James, que por serem mega sucessos, como sendo produtores de "boa literatura". Assim, alguém como JT, que chama a atenção para este facto, só está a defender os grandes e intemporais escritores.

    ResponderEliminar
  15. Deliciosamente mazinha esta leitura da entrevista. E, acho, bastante justa. Valha-nos Santa Engrácia.

    ResponderEliminar
  16. Muito bom ó A.A.! por um sindicato das bolas-de-berlim marchar contra os escriturários a metro que nos fascizam

    ResponderEliminar
  17. Parabens Antonio Araujo! analise mais perfeita não podia ser...

    ResponderEliminar
  18. Ainda bem que o Saramago era serralheiro mecânico e não pasteleiro.

    ResponderEliminar
  19. ... o fim dos Tordos!
    É triste os comentários deste rapaz e do seu! Queriam a vida protegida por quem? Por aqueles que fazem descontos e pagam impostos? Que eu saiba a reforma é calculada em função dos descontos efectuados. Ora quem é culpado de receber dinheiro dos espectáculos em numerário em envelopes e não declarar? Era só receber ... e gastar! Não sabia que tinha que gerir a vida dele? Só faz falta quem está...quem não está, estivesse! Passem bem senhores Tordos.

    ResponderEliminar
  20. Tanta inveja e dor de cotovelo!....dizer mal por dizer, por pensar que lhe acham muita graça..... Vivam e deixem viver, caraças!
    O que vale é que a caravana continua a passar, apesar de tantos cães ladrarem...... Não tem vida própria pra viver sr. A.A., senão tentar evidenciar-se à custa de maledicência?.... Que feio!

    ResponderEliminar
  21. Coitado.
    Graças À Carta que escreveu ao papá e graças ao Blasfémias que pela ajuda de um comentador fez um link para este post a risota vai torna-se mundial.

    ResponderEliminar
  22. kkkkkkkkkkkkkkkkk meu Deus que texto fulminante@

    ResponderEliminar