quinta-feira, 18 de abril de 2013

Heróis, santos e mártires.

 
 
Heróis, santos e mártires – hoje (redefinindo conceitos)

 
“Todo o conhecimento (Kenntnis) é reconhecimento (Erkenntnis).”
G.W.F. Hegel
 
“Forte é a alma, e sábia e bela:
As sementes do poder divino ainda estão em nós;
Deuses somos nós, bardos, santos, heróis, se quisermos.”
Matthew Arnold
 
 
 
Façamos uma reflexão sobre o conceito de heróis, santos e mártires nacionais hoje, nestes começos do séc. XXI, submetendo-o a uma leitura crítica e europeia actual. Uma das poucas tentativas de inventariar os principais heróis e mártires de Portugal foi feita por Francisco Rocha Martins (1879-1952), prolífico autor e jornalista apaixonado pela História, numa série de folhetos que se reuniram em (pelo menos) oito volumes, sob o título de Heróis, Santos e Mártires da Pátria (Lisboa, Colecção Histórica, s.d., anos 30? 40?), neles abordando, em textos que não excediam sessenta e tantas páginas cada, figuras tão diversas como a rainha Santa Isabel, o Condestável, D. João de Castro, o Védor de Sagres, o Infante Santo, o Conde de Abrantes (vol. 1), o Decepado, Santa Joana, Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque, Camões, os falsos D. Sebastião (vol. 2), Santo António de, D. Francisco de Almeida, os jesuítas martirizados, os heróis restauradores de 1640, o Duque de Caminha e D. Duarte de Bragança (vol. 3), o Conde de Vila Flor, D. Manuel de Portugal (o irmão de D. João V), os Fuzilados de Campo de Ourique em 1830, o marechal Saldanha, o Duque da Terceira (vol. 8), etc. Havia ainda outros folhetos de Rocha Martins dedicados a Inês de Castro, ao Venturoso, à madrasta de D. João II, à neta da Rainha Santa, etc.: em suma, a mais acabada listagem do cânone tradicional do que seriam os heróis e santos lusos.
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A simples leitura desta lista comprova o que seria de esperar, ou seja, que poucos conceitos são tão datados e, nessa medida, mutáveis ou conceptualmente voláteis com o tempo e as formas político-ideológicas vigentes em cada época como os de santidade, martírio e heroicidade nacionais. Se alguns dos nomes evocados dessa tríplice lista ainda seriam hoje catalogados numa panóplia identitária do imaginário nacional, a verdade é que quase todo o elenco proposto pelo combativo jornalista monárquico e adversário da Ditadura salazarista chamado Rocha Martins está irremediavelmente caduco e abandonado como referencial totémico do nosso país, esquecido até, não servindo doravante para integrar uma lista de heróis, santos e “mártires da pátria”, pois até esta última designação nos custa hoje a aceitar, nesta Europa globalizante do Estado pós-nacional ou em vias de caminhar para uma “nação europeia”, no seio da qual seria mais fácil aceitar Jean Moulin, Willy Brandt, Mozart, Schubert, Mahler, Francisco de Assis, Miguel Servet, Giordano Bruno, Erasmo, Bulgakov, Goethe, Shakespeare, Tintin, Cervantes, Anne Frank, Churchill, Ulisses, Peter Ustinov, John Gielgud, René Clair, W.H.Auden, Jean Moulin, Fritz Lang, Charlie Chaplin, Thomas Mann, Leonardo da Vinci, Vermeer, Turner, Rembrandt e Van Gogh como figuras supremas dum novo imaginário englobante, composto por artistas, génios, políticos, figuras mitológicas e até os tais santos, heróis e mártires, elenco cada vez menos nacional (ou menos nacionalista). Em suma, cada vez mais europeu. Se, por exemplo, um Viriato não logra suscitar em espíritos coevos portugueses a mínima empatia ou familiaridade identitária, já um Erasmo ou um Da Vinci ou até um Picasso nos parecem mais próximos da nossa sensibilidade essencial, europeia e até tribal do que tantos outros santos e heróis domésticos que nada têm a ver connosco, com os portugueses aqui e agora. É evidente que nesta atitude não há qualquer desejo de sanear um elenco de antigos oragos e maiores lusos que deixaram de nos seduzir, nos inspirar ou nos motivar como modelos de acção, de pensamento ou de qualquer outra qualidade possível num mundo cada vez mais globalizado e, antes de mais, europeizado, não paroquial, não limitado aos pequeninos emblemas de um passado que realmente passou, ou seja, que não deixou fascínio bastante para nos aliciar. Se por acaso fosse necessário colocar numa praça nova um arco de triunfo semelhante ao monumento de Veríssimo João da Costa, de 1873, no começo da rua Augusta, aberto para a Praça do Comércio, em Lisboa,[1] decerto que talvez ali figurasse ainda a inscrição latina – virtutibus majorum ut omnes sit documento (“às virtudes dos nossos maiores para servir a todos de testemunho”) –, embora fosse duvidoso que se mantivessem o mesmo elenco de símbolos nacionais como Viriato, Nuno Álvares Pereira, Vasco da Gama, Pombal e os emblemas geográficos Tejo e Douro, sendo antes de esperar que a europeidade se acrescentasse com a presença de rios como o Danúbio, o Reno ou o Ródano, ou os maiores incluíssem um Goethe, um Shakespeare, um Espinosa ou um Erasmo, para só citar alguns nomes óbvios. A verdade é que a heroicidade cultural, ética ou anímica tem hoje, aos nossos olhos e mentes menos estreitamente paroquiais, um sentido diferente daquele de que ainda há um século atrás dispunha.
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Miguel Servet (1511-1553)



 

 
O difícil, nesta perspectiva de fôlego mais vasto, mais generoso e de alma menos tribal, está em escolher os “santos” e os “mártires”. Escolheríamos, por exemplo,  Miguel Servet[2], o humanista e médico, negador da divindade de Cristo e da Trindade, fugido à Inquisição espanhola para ser, depois, queimado pelas chamas calvinistas, em Genebra, em 1553? Ou o antigo dominicano e herege panteísta Giordano Bruno, queimado pela Inquisição italiana na praça pública, em Roma, em 1600? Ou São Tomás More, decapitado, em 1535, na civilizada Inglaterra de Henrique VIII? Ou Galileu, obrigado a abjurar das suas convicções científicas, tidas pela Inquisição romana como heréticas, por elas condenado a prisão perpétua, de que o salvou o duque da Toscânia, que lhe permitiu viver em Siena e em Florença o resto dos seus dias? Ou ainda os franceses, russos, checos e membros de tantas outras nacionalidades, os fuzilados pelos nazis durante a Segunda Guerra mundial ou os chacinados em Lídice, Katyn ou Oradour-sur-Glane? Ou os milhões de soldados caídos nas trincheiras da Flandres durante a guerra europeia anterior, todos vítimas duma leva-da-morte que, no fundo, para nada servia?[3] Ou as vítimas sem conta dos campos de concentração nazis ou do gigantesco arquipélago de Gulag soviético? Ou ainda, dando uma passada mais ampla, não seria de incluir nessa lista nomes trans-europeus, como Gandhi ou Mandela?
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Discurso de Malraux, na homenagem a Jean Moulin

 
 
Muitos destas figuras, como o acima referido resistente Jean Moulin, torturado e morto pelos algozes hitlerianos que ocupavam a sua pátria – ao qual André Malraux, na sua inspirada oração fúnebre, no Panteão de Paris, em 1964, diante do general De Gaulle, chamou “pobre rei supliciado das sombras.”[4] –, são, sem qualquer dúvida, verdadeiros mártires duma causa europeia e até mundial que transcende o país pelo qual então se batiam e por causa dele morreram no meio de bárbaros horrores e sevícias. Não será ele, o dirigente interno da Resistência gaulesa, um verdadeiro “santo” laico, moderno – como Gandhi o foi na Índia –, um santo da ideia democrática, patriótica europeia, da nação europeia de que falava, já no séc.XVIII, o abade de Saint-Pierre? Ou terão o martírio e a santidade de serem exclusivos das confissões religiosas? Anne Frank morreu por ser judia, apenas como judia da Torah ou pela pátria judaica? É evidente que morreu sobretudo como santa europeia, como mártir europeia – e mártir da humanidade, universal –, vítima do ódio dos psicopatas da suástica, como a judia católica Edith Stein (esta, sim, acolhida no rol dos santos canónicos pelo chefe da Igreja, o papa João Paulo II, para grande escândalo dos judeus). O facto cada vez mais inegável é que certos heroísmos, martírios patrióticos e santidades do passado, mesmo recente, se dissolvem nas memórias como neves de outrora, deixando tão só vestígios “arqueológicos” no registo dos profissionais de Clio. A simpatia apaixonada, assim como o ódio convulso, são sempre passageiros, como o comprova o caso dos regicidas Buíça e Costa, cujo culto popular como “mártires” – as aspas estão aqui para marcar algum cepticismo diante desta expressão, uma vez que estes dois homens foram mortos pela polícia depois de terem assassinado o monarca, em 1908[5] – durou algumas semanas apenas, pois era difícil perpetuar sobre um gesto homicida tão sangrento uma noção sustentável e continuada de martírio, mesmo num grupo político fanatizado e açulado pela liturgia do ódio – na qual os poetas de serviço demagógico tiveram forte responsabilidade, entre eles avultando o ribombante e enfático Guerra Junqueiro –, num dos períodos mais conturbados da nossa História. Como o diz o provérbio árabe, “o sangue dos mártires vale menos do que a tinta dos sábios”.
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Buíça e Costa

 
Ao pedir aos povos que se unissem e aos homens que fossem humanos, o citado sacerdote francês, que deplorava a hecatombe de 14-18 – na qual as nossas tropas participaram com o seu tributo inútil de sangue e de duvidosa glória –,  exprimia, afinal, do modo mais perene o fundo comum do humanismo europeu e ocidental, do ideário libertador das Luzes e do melhor da herança ético-espiritual judeo-cristã: a consciência de que só é santo, glorioso e justo o que serve para unir os homens e torná-los mais livres e mais humanos, em suma, melhores.




Diário de Anne Frank
 
 

 
Teria razão Bertolt Brecht quando, pela boca do insubmisso mas prudente e porfiado herói da ciência Galileu, garantia que só seriam felizes as nações que não precisassem de heróis, ou seja, quando dispensavam modelos excelsos martirizados na praça pública ou em masmorras secretas? Ou ainda, como pateticamete suplicava ao criador Joana d’Arc, a donzela de Orleães que seria queimada em Rouen pelos ingleses e seus apaniguados franceses: “Ó Deus que fizeste esta bela terra, quando é que ela estará pronta para receber os teus santos?” (George Bernard Shaw, Santa Joana, epílogo, 1923). Isto é, quando é que a terra e os seus habitantes estarão maduros para receber, ver e ouvir os seus santos sem os vilipendiarem e queimarem, mesmo que depois, passados alguns séculos após o momento em que as fauces ígneas os devoraram, canonizassem por fim as suas vítimas? Estas perguntas têm um recorte idealista ou utópico, já que a história dos homens é uma interminável estrada juncada de cadáveres trucidados pela injustiça dos que não querem ouvir as prédicas dos santos que Adonai manda em auxílio dos homens para os guiar durante esse pesadelo sangrento e tumultuoso no qual, por via de regra, todos o que dizem a verdade são sacrificados, pagando com tormentos infames e até com as suas vidas breves os exemplos de nobreza, rectidão e generosidade de alma que intentam dar aos seus irmãos, e não por esta ou aquela pátria, por esta ou aquela bandeira ao vento, mas pela raça humana na sua integralidade de viventes, pela humanidade total, aquela que continua a precisar sempre  de santos, heróis e mártires.

 
João Medina
 
 
       
Texto  publicado na 1ª edição de Portuguesismo(s)(Acerca da identidade nacional), Lisboa, Centro de História, 2006, ilustr., pp.199-202,
agora revisto e aumentado com vista a uma reedição desse livro
 
 



 

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[1] Veja-se Gustavo de Matos Sequeira, Os Arcos de Triunfo, Lisboa, C.M. de Lisboa, s.d.
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[2] Sobre este humanista queimado em Genebra por Calvino, vejam-se os estudos de Roland H. Bainton, Hunted Heretic. The life and death of Michael Servetus, 1511-1553, Boston, The Beacon Press, 1960; e  Georges Haldas, Passion et Mort de Michel Servet. Chronique historique et dramatique, Paris, l’Âge d’Homme, 1975.
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[3] Um filme francês recente, evocando uma trégua natalícia celebrada pelos exércitos francês, inglês  e alemão, em Dezembro de 1914, exemplifica este remorso europeu pela alucinante sangria da guerra 14-18: referimo-nos ao filme de Christian Carion, Joyeux Noel (2005). Na igreja francesa de Notre-Dame-de-Lorette há uns versos escritos por Monsenhor Julien, fundador do cemitério local das vítimas da guerra, onde se  lê: “Vous qui passez en pèlerins près de leurs tombes /Gravissant leur cadavre et ses sanglants chemins /Ecoutez la clameur qui sort des hécatombes /Peuples, soyez unis – hommes, soyez humains.”
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[4] André Malraux, Oraison funèbres, Paris, Gallimard, 1971, p.134.
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[5] Veja-se , no nosso estudo “Oh!...a República!...”. Estudos sobre o republicanismo e a Primeira República Portuguesa, Lisboa, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1990, o exame que fazermos dos regicidas e do seu acto, pp.34-39 ( com os depoimentos de Junqueiro e Manuel Laranjeira).
 
 

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