segunda-feira, 15 de abril de 2013

Pavlik.


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Pavel Morozov, a imagem oficial




Saiu há uns tempos, com chancela da Antígona, um livro arrepiante. O Tchekista, de Vladímir Zazúbrin, é uma novela sobre o terror na era de Lenine, um homem que, segundo as frases citadas no prefácio ao livro, não se inibia de deixar por escrito directrizes como estas: É preciso encorajar a energia e o carácter de massas do terror (Novembro de 1918) ou É indispensável aplicar um terror de massas sem piedade contra os kulaks (Agosto de 1918). Cortante, um telegrama de Agosto de 1918: Fuzilem sem perguntar nada a ninguém e sem delongas imbecis.

         Ao gabinete do oficial da Tcheka, personagem central deste livro apenas publicado em 1989 (Zazúbrin seria fuzilado durante o estalinismo…), afluíam centenas de denúncias, umas anónimas, outras não. «Tem centenas de informadores voluntários, um corpo de agentes secretos permanentes e, juntamente com cada um deles, ele espia, escuta», escreve-se n'O Tchekista. A delação constituía o cúmulo da devoção ao Partido. Melhor ainda seria se, em torno dela, existisse a ideia de que denúncia era feita com a máxima pureza de alma, sem suspeitas de que fora ditada por infamante desejo de calúnia ou outros interesses vis, invejas de aldeia ou intrigas mesquinhas. Ora, a pureza da delação seria tanto maior quanto mais puro fosse o denunciante. E quem melhor do que as crianças poderia desempenhar esse papel? De uma criança nunca se diria que denunciou o vizinho para lhe ficar com os seus parcos haveres, para se apropriar de tudo  quanto o fuzilado tinha, mulher incluída… Mas o melhor, o melhor de tudo, era se a criança denunciasse os próprios pais. Isso, sim, seria o apogeu de fidelidade à causa da revolução, a «Ela», a entidade inominada que surge assim descrita («Ela») na novela de Zazúbrin.
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         Os sistemas ditatoriais sempre alimentaram o culto das crianças e dos jovens. Abundam, por todos lugares, imagens dos ditadores com crianças ao colo ou rodeados de adolescentes em êxtase. Todos os totalitarismos tinham organizações de enquadramento da infância e da juventude. Às crianças, que tanto gostam de objectos para forjar a sua identidade em construção, eram dados emblemas, lenços, sinais de pertença e marcas que assinalassem, através de uma graduação precisa, a hierarquização da fidelidade.

A razão é simples: por mais que os nazis proclamassem os 3K (Kinder, Küche, Kirche), por mais que Gorky ou Brecht louvassem o amor de mãe, tudo isso actuava num plano acessório, apenas naquilo que contribuísse para a construção do Estado totalitário. Sempre que a família ou o amor maternal se sobrepusessem ou pusessem em causa esse projecto, não se hesitava em destruir famílias inteiras ou separar os filhos dos pais. A autêntica Mãe Coragem não era a encenada por Brecht (aliás, um ser humano desprezível: basta ler o arrasador Intelectuais, de Paul Johnson), mas a cantada por Anna Akhmátova, autora do pungente Requiem, publicado entre nós na antologia Só o Sangue Cheira a Sangue (trad. port., Assírio & Alvim, 2000). O filho único de Akhmátova, Lev Gumiliov, esteve cerca de quinze anos detido nos campos prisionais soviéticos. Há dezassete meses que grito, / que te chamo: volta para casa, / lançava-me aos pés do verdugo, / ó meu filho e meu horror. / Tudo se confundiu para sempre / e não sei agora distinguir / quem é besta, quem é homem.  

         Tudo isto nos conduz a Pavel Trofimovich Morozov (1918-1932), «Pavlik», sobre o qual existe um livro admirável de Catriona Kelly, Comrade Pavlik. The Rise and Fall of a Soviet Boy Hero (2005).  A história de Pavlik conta-se em poucas linhas. Em 1932, Pavlik, um rapaz de treze anos, que alegadamente pertencia aos Pioneiros, denunciou o pai à delegação da polícia política (GPU) da terra recôndita em que vivia, a aldeia de Gerasimovka, na região de Sverdlovsk, Sibéria Ocidental. Em resultado disso, o pai seria condenado a dez anos de prisão num campo de trabalho e, mais tarde, executado. Entretanto, Pavlik apareceria morto, o corpo retalhado a golpes de faca. O tio, o avô, a avó e um primo seriam presos e, numa farsa de julgamento, todos, excepto o tio, seriam condenados e executados por um pelotão de fuzilamento. A diabolização dos infanticidas sempre foi um expediente eficaz da propaganda autoritária, como se explica aqui, a propósito de Pavlik.

         Assim estava criado um mártir, um herói e criança-modelo para todos os jovens da União. Durante o julgamento da família, uns pobres camponeses varridos pelos ventos da colectivização, afluíram ao tribunal centenas de cartas apelando ao juiz para que não tivessem a mínima complacência para com os assassinos de Pavlik. No processo da morte de Pavlik, que Catriona Kelly consultou em Moscovo, existem cerca de 500 cartas de pioneiros, exigindo a morte dos acusados.  

A partir de então, em torno da sua memória foram edificadas dezenas de estátuas – a ideia foi de Gorky –, inúmeras escolas e outros tantos grupos de juventude ostentaram o seu nome. Foi escrita uma ópera em sua honra, além de muitas e muitas biografias. A escola que frequentara tornou-se um lugar de peregrinação, onde acorriam excursões vindas de todos os lugares da URSS.

Ainda que partindo de uma história de Turgenev, Sergei Eisenstein baseou-se (como, aliás, admitiu) no caso de Pavlik  Morozov para realizar em 1937 o mítico filme O Prado de Bezhin, que, por ter desagradado às autoridades, não chegou a ser concluído. O realizador mostrou-se arrependido por este seu desvio aos padrões estéticos do estalinismo, salvou a sua carreira, acabaria por receber a Ordem de Lenine (1939), sendo nomeado em 1941 director artístico dos estúdios Mosfilm. Tal não impediria que, à custa deste incidente cinematográfico, várias pessoas – que não Eisenstein…– acabassem na prisão. Nos anos sessenta, soube-se que a viúva do realizador guardara alguns fragmentos da película e o filme foi restaurado numa nova versão.      

Nos anos oitenta, antes da perestroika, um jornalista e escritor dissidente, Yuri Druzhnikov, fez uma extensa investigação sobre a morte de Pavlik, chegando à conclusão de que o rapaz tinha sido assassinado pelos próprios agentes locais da GPU. O seu trabalho circularia inicialmente por via clandestina, através de samizdat, mas foi publicado no Ocidente, primeiro em russo, e, em 1996, em inglês, com o título Informer 001. The Myth of Pavlik Morozov.


 
 
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Em Comrade Pavlik, Catriona Kelly, que também estudou o caso a fundo, tendo acesso a documentação secreta do processo (transcrita aqui), contestaria a tese de Druzhnikov, dizendo que Pavlik fora morto, isso sim, por uma questiúncula de rapazes em torno da posse de uns arreios e de uma arma. Druzhnikov acusou Kelly de plágio e de ter confiado em excesso naqueles que lhe franquearam as portas dos arquivos russos. Kelly ripostou num artigo fundamental, intitulado «Без заголовка». Aconselha-se vivamente a leitura no original.  

Em qualquer dos casos, a versão oficial é posta em causa: é possível que Pavlik não tenha denunciado o pai às autoridades; quase de certeza, a família não o terá assassinado. Mas parece que, de facto, o rapaz detestava o pai, que batia na mãe e abandonara a família, trocando a legítima por outra mulher. A mãe de Pavlik, a analfabeta Tatiana, terá ficado mentalmente perturbada.   

É curioso notar que a memória de Pavlik, explorada durante décadas pelo regime soviético, é agora objecto de controvérsia entre um escritor russo e uma historiadora de Oxford. Por outras palavras: Pavlik, usado como arma de propaganda por Estaline e seus sucessores, converteu-se num memento mori disputado entre intelectuais da Rússia e do Ocidente. No fundo, continua a ser um ícone, quando, em vida, não passou de um rapazinho atravessado por um edipiano complexo, que passava fome enquanto via o pai a bater na mãe. Ao contrário da história oficial que, durante décadas, foi contada nas escolas da URSS, Pavlik nem sequer pertencia aos Pioneiros. Desejava ardentemente ser um deles, mas não o era – o que talvez explique algo do que se passou. Irónico é pensar que, na querela contemporânea, cada qual quer buscar o seu quinhão à herança do pobre rapaz. Sim, Pavlik era pobre, paupérrimo. A única imagem que dele existe mostra-nos um pré-adolescente magro e de olhar vago, assustadiço, que vivia numa terra descrita como um «ninho de kulaks», ou seja, como um lugar suspeito.


 

 
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Falando de suspeitos e suspeições, Orlando Figes, um historiador de renome mas dado a algumas malandrices e pecadilhos para com os colegas de ofício, assinala em Sussurros. A Vida Privada na Rússia de Estaline (trad. port., Alêtheia, 2010) que Pavlik vivia num local miserável, rodeado de campos de trabalho e «alojamentos especiais». À noite, os habitantes de Gerasimovka ouviam o ladrar dos cães de guarda. Na escola só existiam treze livros e um professor. Em 1931, nenhum morador dessa terra aderira ao processo de colectivização, pelo que a imprensa soviética falaria de um «ninho de kulaks», expressão que surgiria em obras hagiográficas de Pavlik, publicadas ao longo dos anos.

Pavlik desejava integrar os Pioneiros e era, ao que parece, um agitador que gostava de andar próximo da polícia. Tinha fama de delatar os vizinhos que, anos mais tarde, o recordariam como um «miúdo corrompido». No julgamento do pai, o juiz confrontou-o com as acusações, ao que o jovem terá respondido: «É verdade que ele era meu pai, mas deixei de o considerar como tal. Não faço isto como filho, mas como pioneiro». Pavlik actuava e denunciava como pioneiro: o sistema vencera. Parece que, estimulado por este sucesso parricida, passou a denunciar tudo e todos na aldeia siberiana. Acabou mal.

O culto que lhe foi dedicado, e a que milhões seriam expostos, não suscitou, a acreditar em Figes, grande adesão por parte dos jovens soviéticos provenientes de famílias estruturadas. Mas, nos que provinham de lares problemáticos, a prática da delação tornou-se frequente. Aliás, os propagandistas originais da causa de Pavlik vinham de famílias conturbadas: o jornalista Pavel Solomein, que primeiro chamou a atenção para o caso, tinha fugido de um padrasto brutal em criança, vivendo a infância em vários orfanatos; por seu turno, Gorky tomara conta de si próprio desde os nove anos, idade em que fora expulso da casa do avô e começara a trabalhar nas cidades industriais do Volga. Nas cartas que Gorky enviava a Estaline, o tema do bem-estar das crianças e dos jovens na União Soviética era frequentemente abordado.   

Alguns dos entrevistados por Orlando Figes reconheceram o fascínio de Pavlik. Na União Soviética, muitos órfãos, que tinham sido criados pelo Estado, viam este último como a encarnação dos pais e não percebiam que mal existiria na denúncia de um progenitor, sangue do seu sangue. Depois de narrar alguns casos, Figes escreve que:
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«Os Pioneiros instigavam as crianças a imitar Pavlik Morozov e a denunciar os pais. Brigadas de pioneiros vigiavam os campos dos kolkhozes e denunciavam os camponeses que roubavam cereais; o Pionerskaia Pravda publicava os nomes dos informadores e os respectivos feitos. Nos anos 30, no auge do culto a Pavlik Morozov, o verdadeiro pioneiro quase tinha a obrigação de demonstrar o seu valor denunciando a família; um dos jornais de província advertia que os pioneiros que o não fizessem deviam ser olhados com desconfiança e, se se chegasse à conclusão de que eram pouco vigilantes, deviam ser eles a ser denunciados».

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Não admira, assim, que, mesmo no interior dos lares, a censura se instalasse. Os pais não falavam com os filhos: «Eu nunca disse nada contra Estaline ao meu rapaz. Depois da história de Pavlik Morozov, a pessoa tinha receio de deixar cair qualquer mais indiscreta, mesmo em frente aos próprios filhos», confessou um dos entrevistados por Orlando Figes. O sistema triunfara em pleno: a educação no culto a Estaline era agora feita no interior de cada casa, por acção ou omissão. Sobretudo, pelo silenciamento da crítica. Julgando que os pais, ao não questionarem Estaline, aderiam ao seu modelo, as crianças passaram a interiorizar desde cedo o ideal do novo homo sovieticus.

Mais do que saber quem matou Pavlik – o ponto que opõe Catriona Kelly e Yuri Druzhnikov (síntese aqui), mas que dificilmente será resolvido –, é fascinante ver como a imagem da criança  foi moldada ao longo dos tempos. Este é, provavelmente, o aspecto mais fascinante do livro de Kelly. Um jovem famélico e moreno, de olhar assustado, foi convertido num rapaz louro, com um ar resoluto e decidido.  As várias imagens que foram sendo construídas de Pavlik são muito distintas consoante o público a que se destinavam e a época em que foram produzidas. Desde logo, colocaram-lhe um lenço dos Pioneiros ao pescoço, a ele, Pavel Trofimovich Morozov, que nunca pertencera à organização. Depois, o Pavlik dos anos 30 e do auge do Grande Terror estalinista nada tem a ver com o Pavlik da década de 50 e da liderança de Nikita Krutschev. Ao que parece, e segundo Catriona Kelly, Estaline não era um incondicional adepto do culto de Pavlik, pois pressentia que esse fascínio implicava a subversão de um princípio de autoridade – a autoridade paterna –, o qual, em última instância, poderia causar danos à ordem imposta pelo Estado. Terá sido essa a razão do fracasso do projecto cinematográfico de Eisenstein. Por outro lado, o culto de  Pavlik cede lugar, a certa altura, à atracção exercida por um pioneiro de ficção, Timur, herói criado por Arkady Gaidar e que conquistou o imaginário de gerações de jovens soviéticos. Durante a 2ª Guerra, tempo de unidade, Pavlik eclipsa-se, a ponto de a sua casa natal ser demolida. No pós-gerra, porém, as suas virtudes de cidadão-delator voltam a ser louvadas. Com o tempo, Pavlik passa a configurar-se não como um pioneiro diligente e cumpridor mas como um jovem rebelde inconformista. O tempo apagaria a sua memória. Numa sondagem realizada em 2002, mais de 50% de jovens moscovitas foram incapazes de dizer quem era, ou o que fizera. Um grupo de rock chamado Crematorium chegou a gravar uma música onde o desafortunado Pavlik era descrito como um «cretino maltratado por Deus». Muitas das estátuas com a sua figura foram derrubadas. Curiosamente, nessa mesma altura – mais precisamente, em 2001 – familiares de uma das vítimas do processo de 1932 procuraram reabilitar a memória do seu antepassado. Todavia, o processo acabaria por ser arquivado. É sintomático que a passagem do 75º aniversário da sua morte, em 2007, tenha despertado mais atenção (aqui). Estranha notícia no PravdaGeorge Soros doou 7.000 dólares para a reconstrução do museu de Pavlik.   

   Em vida, Pavlik nunca conseguiu integrar os Pioneiros. Convertido em herói de massas, ganharia o título de Pioneiro nº 001. Na década de sessenta, qualquer candidato aos Pioneiros deveria recitar, de fio a pavio, o mantra da biografia de Pavlik Morozov. Até em Colombo, no Sri Lanka, lhe erigiram uma estátua. Era sobre uma estátua, aliás, que pretendia escrever quando iniciei este texto... Uma estátua em Berlim, dos tempos do comunismo. Não falei da estátua, espero fazê-lo em breve. A propósito de Berlim, recorde-se que os nazis também tiveram a sua versão de Pavlik Morozov. Herbert Norkus, um rapazinho da Juventude Hitleriana, morto em Berlim, 1932, numa refrega nocturna com jovens comunistas. Pavlik e Herbert morreram no mesmo ano e foram ambos glorificados como mártires. As semelhanças entre  eles, e os regimes que serviram, não ficam por aqui.

 
António Araújo 

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Única fotografia conhecida de Pavel Morozov




 
 
 
 
Nikita Chebakov, Pavlik Morozov, 1952




 

 
Pavlik, na versão de 1972
 
 
Busto de Pavlik, na sala de aula da sua escola

 
 
 
 
 

Imagens do filme de Eisenstein

 


 

 

 
 
 
 
 



 

1 comentário:

  1. Os três K são de uma frase do imperador Guilherme II e, segundo a própria entrada da Wikipedia para que aqui remete, nunca foi usada pelos nazis, que, aliás, desprezavam esse imperador.

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