domingo, 21 de julho de 2013

Crónica do Cairo.







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Começámos a falar sobre política dentro da igreja com o agente da polícia que guardava o templo. Esta conversa decorreu entre mim, o padre e o polícia.

Falámos sobre a grande traição dos líderes da Irmandade Muçulmana e o que eles fizeram durante a revolução de 25 de Janeiro em 2011: contactar membros do Hamash para coordenar a sua entrada no Egipto e fazer fugir os prisioneiros islamistas da prisão. Na altura, ninguém se apercebeu deste facto, pois todos estavam mais ocupados com os acontecimentos e as reivindicações da revolução de 25 de Janeiro, cuja prioridade era a demissão de Mubarak.

A estratégia da Irmandade Muçulmana depois da demissão de Mubarak consistia sempre em ameaçar o Conselho das Forças Armadas. Isto começou desde a sua exigência para alterar a Constituição, para que pudessem fazer uma Constituição à medida dos seus interesses até Morsi ganhar as eleições presidenciais.

Lembro-me muito bem do dia em que se anunciou o resultado final das eleições presidenciais. Foi um dia de terror. No caso de Morsi perder as eleições, havia a expectativa de que todo o Egipto ficaria em ruínas. Todos os funcionários saíram do trabalho ao meio-dia. Ninguém estava na rua na hora do anúncio dos resultados, excepto os manifestantes da Praça Tahrir, que são membros ou apoiantes da Irmandade Muçulmana. Mal foi anunciado o resultado, toda a gente ficou contente e saiu para a rua para festejar a vitória de Morsi, incluindo os revolucionários, pois o outro candidato era uma figura cimeira do antigo regime e durante a campanha dissera que o seu modelo era Mubarak. Os revolucionários escolheram o menos mau…

Antes do dia 30 de Junho, costumava assistir à manifestação em frente do Ministério da Cultura porque fora indigitado um novo ministro islamista para essa pasta. Era uma manifestação da elite egípcia: todas as pessoas ligadas à cultura, actrizes, realizadores, escritores, artistas plásticos. O ministro não conseguiu entrar no Ministério e foi obrigado a trabalhar a partir de outro lugar. O slogan de que mais gostei era «Morsi, Morsi, acorda, 30 de Junho é o teu último dia!». Havia sempre concertos de todos os tipos durante a noite, os jovens costumavam ficar ao lado da estrada a mostrar a propaganda da campanha rebelde aos que passavam de carro. De vez em quando, um carro parava para assinar o documento dos rebeldes. Os manifestantes cantavam o hino nacional e canções patrióticas com grande entusiasmo.

Adorei esta manifestação por uma razão muito simples: a Embaixada de Portugal fica do outro lado do Ministério da Cultura. Era fascinante ver a bandeira de Portugal acima destas manifestações. Adorava olhar para a bandeira portuguesa para cima e tive vontade de declarar aos manifestantes que o povo português apoiava a manifestação. Até tive a ideia de cantar o fado…

Antes do dia 30 de Junho fui para a casa assistir às notícias e debates pela televisão. Tinha a convicção de que não só iria ocorrer a queda do regime do Morsi mas também o fim da Irmandade Muçulmana no Egipto e no mundo árabe. Devo confessar que não era entusiasta desta revolução, como todos os egípcios, porque, para mim, o Egipto já não é verdadeiramente o meu país.

  Como referi atrás, a estratégia da Irmandade Muçulmana e dos seus apoiantes consistia sempre em ameaçar todos. A Irmandade Muçulmana fez uma aliança com antigos terroristas. Até se costumava dizer que Morsi era o patrocinador do terror no Egipto. Conseguiram todos os seus meios graças ao Conselho das  Forças Armadada. Voltaram a usar a mesma estratégia antes do dia 30 de Junho, mas, felizmente, não conseguiram aterrorizar o povo egípcio porque o povo egípcio não teme ninguém e não aceita que o ameacem. Todos os apoiantes de Morsi disseram que o Egipto iria ficar em ruínas se Morsi se demitisse do poder e que nunca iria haver estabilidade política no país. 

Chegou o dia 30 e houve a maior manifestação de sempre na história do Egipto. Todas as praças  e ruas do Egipto estavam cheias, e não apenas a Praça Tahrir. Uma avenida muito grande em frente do palácio presidencial no Cairo ficou completamente cheia. Esta avenida é como a Avenida da Liberdade, em Lisboa. Ninguém esperava que esta grande massa de pessoas saísse para a rua, nem sequer as forças da oposição que convocaram a manifestação. As Forças armadas fizeram tudo para proteger as manifestações.

No dia seguinte, surgiu a declaração das Forças Armadas convocando todas as forças políticas para se sentar à mesa e discutir os problemas e deram 48 horas para que isso acontecesse. A oposição não aceitou qualquer solução que não fosse a demissão do Morsi, pois perderam toda a confiança nele e no seu regime.  

Toda a gente ficou extremamente feliz com esta declaração das Forças Armadas e saiu para a rua para festejá-la. No dia seguinte, Morsi fez um discurso horrível para o país, em que repetiu a palavra «legitimidade» 42 vezes. Disse que estava pronto a sacrificar a sua vida para poder proteger essa legitimidade. No dia seguinte, o Conselho das Forças Armadas convocou todas as forças políticas: a oposição, que nomeou Mohamed el Baradei, o Partido Salafista, o xeque de al Azhar, os jovens que fizeram a campanha rebelde e também a Irmandade Muçulmana, que rejeitou o convite . Passaram as 48 horas e toda a gente estava à espera de ouvir uma declaração. Passaram mais horas e a reunião não terminava. Num encontro na Casa da União Patriótica  (El Sessy) o Ministro da Defesa fez o seu histórico discurso, anunciando a suspensão da Constituição e a indigitação do Presidente do Tribunal Constitucional  como Presidente temporário.

Houve uma alegria imensa nas ruas do Egipto. No momento em que o ministro estava a proferir o discurso, foi ordenado o encerramento dos canais islamistas, que ameaçavam matar e usar da violência no caso de deposição de Morsi. Fui para a rua e vi como os jovens e muitas outras pessoas festejaram a queda do regime da Irmandade Muçulmana.  

         Os egípcios ficaram felizes, mas também os povos dos países do Golfo, pois havia um grande conflito entre a Irmandade Muçulmana e esses países, com excepção do Qatar. As grandes figuras da Irmandade Muçulmana costumavam insultar os povos destes países, além de existir uma forte oposição da Irmandade Muçulmana às monarquias dos países do Golfo. Toda a gente no Egipto e nos países de Golfo sentiu que o Egipto regressara às mãos dos egípcios.

Devo reconhecer que as Forças Armadas tiveram grande interesse em depor Morsi, pois ele e a Irmandade Muçulmana eram uma grande ameaça para a segurança nacional. Os militares só precisaram que saíssem para a rua muitas pessoas e isso acabou por acontecer. Saíram milhões de egípcios, quer pessoas interessadas na política, quer pessoas comuns que sofreram imenso durante o ano de Morsi por haver muitas problemas em tudo: no gás, na electricidade, na água e na economia, além de Morsi destruir imenso a imagem do Egipto no exterior.

Lembro-me de falar com um reformado num café sobre o Presidente do Egipto. Disse que o Egipto não pode ser governado por um civil e que as pessoas um dia irão beijar as mãos das Forças Armadas para que estas governem o país. Foi isto que aconteceu. Agora toda a gente está à espera de um novo Presidente, mas primeiro irão ser estabelecidas regras para a instauração da democracia, que começam por uma Constituição, eleições parlamentares e depois eleições presidenciais. O reformado afirmou ainda que irá aparecer, na altura certa, uma pessoa que é ou foi das Forças Armadas. Na história recente, o Egipto foi governado por três pessoas que pertenciam às Forças Armadas. Isto ao longo de 60 anos, menos o ano de Morsi, que foi o pior ano de sempre, um ano de pesadelo para os egípcios. A experiência de Irmandade Muçulmana foi um mal inevitável. Ainda bem que ocorreu naquela altura, e não agora depois. Toda a gente se apercebeu das intenções da Irmandade Muçulmana e de como eles usaram a religião para atrair imensas pessoas.

Devo dizer que há grande esperança e que tudo vai correr bem. A esperança vem do entusiasmo e a sinceridade dos jovens que fizeram as duas revoluções.

 
Samir H.



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