sábado, 20 de julho de 2013

Moçambique: notas de campo (15).





Fotografia de Sean Sheridan, aqui




Foi raptado mais um empresário em Maputo, prática que vem sofisticando a natureza do crime em Moçambique. A novidade dos últimos dias foi a de a vítima ter sido um empresário português branco. Talvez não seja por acaso que, até agora, o grupo mais vulnerável a tal prática tenha sido o dos islâmicos de origem asiática. Veremos o que ocorrerá, de agora em diante, com a minoria portuguesa branca em Moçambique, sociedade em que certas modas pegam depressa, como os próprios raptos. Talvez também não seja por acaso que a vulnerabilidade possa pairar longe de empresários chineses ou da elite empresarial negra moçambicana, ainda que também estes não estejam absolutamente imunes aos raptos. Mas o nível de incidência comparativa entre diferentes segmentos ético-raciais terá certamente razões explicativas. Ignorar este dado significa obliterar uma peça importante na compreensão do assunto. Avento, por isso, a hipótese de poder existir, nas lógicas do fenómeno dos raptos em Moçambique, alguma associação com as atitudes políticas dos que controlam o estado. Tais atitudes oscilam entre um extremo de relacionamento desfavorável (ou distante), o que deixa uns grupos étnico-raciais minoritários mais vulneráveis, e um extremo de relacionamento favorável (ou preferencial), o que deixa outros grupos étnico-raciais mais protegidos. Para além de se tratar de pessoas-alvo ricas, o tempo permitirá aferir a validade de outras lógicas. De qualquer modo, existem indícios, mesmo que para já frágeis, de os raptores manifestarem tendências selectivas na escolha da pertença étnica ou racial das vítimas. Ou seja, o volume das contas bancárias das vítimas, sendo o atributo central em situações de raptos que visam obter valores monetários elevados em troca do resgate, pode não minimizar necessariamente outros atributos. Por seu lado, o contexto social onde tais práticas ocorrem é sempre relevante, o que implica ter em atenção ao modo como se processa a integração das minorias étnicas e raciais nas sociedades de acolhimento, bem como a natureza e os efeitos sociais, mesmo que indesejáveis, dos discursos e demais atitudes das elites dominantes. E para percebermos os últimos devemos prestar atenção ao que é manifesto (por hábito dominado pelo politicamente correcto) e sobretudo às inconfessadas fórmulas latentes (onde, muitas vezes, se jogam as cargas agressivas). De resto, as interpretações do lado problemático dos fenómenos étnicos e raciais continuarão fragilizadas enquanto aprioristicamente se persistir em circunscrevê-los a determinadas sociedades (em geral ocidentais), apenas a determinadas minorias (em geral não-brancas), apenas a pessoas de determinado estatuto socioeconómico (os pobres). Sociedades maioritariamente negras, como a moçambicana; minorias raciais não-negras, como a portuguesa branca ou islâmica asiática; ou indivíduos pertencentes a classes médias e altas (de acordo com os padrões das sociedades de acolhimento, não necessariamente das sociedades de origem) – deveriam também captar muito mais a atenção dos que pretendem compreender o mundo de hoje. É plausível a tese da existência de sociedades fortemente escrutinadas ao nível do tratamento conferido às minorias raciais e étnicas (e bem!), como as europeias, comparativamente a outras que são muito mais raramente escrutinadas a este mesmo nível. A propósito, e não se trata de mero detalhe face ao que está em causa, existem sintomas evidentes de anti-portuguesismo nos discursos e demais atitudes de uma parte das elites moçambicanas, em particular as ligadas ao poder político do estado, contudo tais atitudes tendem a inverter-se à medida que descemos na hierarquia social. Escrito em linguagem elementar, a comunidade portuguesa branca tende a ser forte entre os pobres moçambicanos, a grande maioria da população, e tende a revelar-se demasiado fraca entre os ricos moçambicanos, a esfera decisiva do poder. Daí que o termo xenofobia seja inadequado, mas não dispomos de outro. Suponho que algo de equivalente possa estar a ocorrer noutros contextos africanos. Quanto à comunidade islâmica de origem asiática (monhés, na designação depreciativa), a tendencial ostracização revela-se socialmente mais transversal a elites e gente comum, em Moçambique. Neste caso, de mais longa duração histórica em diversos países africanos, a realidade revela a necessidade de um escrutínio bem mais apurado desde já, precisamente porque o fenómeno vai transitando do período colonial para o pós-colonial em fórmulas reinventadas. Em geral, sobre os monhés alimentam-se uns quantos estereótipos (como associá-los, por atacado nos discursos de senso comum, a determinados tipos de criminalidade), mas que podem acima de tudo significar a procura de um bode expiatório vulnerável para descartar males de muitos outros. Em suma, as questões sensíveis que afectam as minorias étnicas e raciais em sociedades maioritariamente negras são assuntos a que as universidades e a comunicação social deveriam prestar muito mais atenção, viciados que estão em modelos de pensamento do século XX. São eles que impedem que se compreenda muito melhor o século XXI, um século substantivamente distinto do século que lhe antecedeu. Essa é a fonte de demasiadas incongruências, demasiados olhares selectivos, demasiadas dualidades de critérios, demasiadas incompreensões. Ajustar, o melhor possível, o pensamento à realidade vivida é uma incontornável ambição dos que se interessam pelos destinos do mundo.
 
 
Gabriel Mithá Ribeiro
 
 
 

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