quinta-feira, 18 de julho de 2013

Os operários a caminho da guerra.








 

  O jornalista e escritor francês Lucien Deslinières gostava de sonhar a utopia mas nunca a conseguiu viver. Em 1899 publicou, com um esperançoso título, L´Application du Système Collectiviste, conseguindo, antes de ter aplicado o que quer que seja, encontrar motivo para preencher 544 páginas. Jean Jaurès, que escreveu o prefácio, dizia justamente: até agora os socialistas proibiram-se de descrever com precisão a sociedade futura; finalmente, surge Deslinières, o qual no seu livro demonstra com toda a força como será abundante a produção colectivista. O problema foi passar à prática: Deslinières tentou estabelecer uma quinta colectivista no México, mas falhou; depois, passou-lhe pela cabeça repetir a tentativa na União Soviética, tendo sido comissário para a agricultura na Ucrânia, em 1920, onde quis aplicar as suas ideias, mas falhou devido, afirma-se candidamente, a falta de … dinheiro. Voltou a França, onde ainda teve coragem, e encontrou editor, para publicar, em 1923, um livro com um título ultra-optimista: “La production intensive.” Há quem  nunca aprenda …
   Em 1908, Deslinières tinha publicado o primeiro volume (não consta que tenha havido segundo) do seu Projet de Code Socialiste, que ofereceu à S.F.I.O. (Section Française de l´Internationale Ouvrière), para que o partido tivesse disponível “uma organização social no momento em que quaisquer circunstâncias, que precipitassem os acontecimentos, como, por exemplo, uma grande guerra europeia, lhe facilitassem apossar-se do poder político”. Uma guerra parecia, pois, a oportunidade azada para a revolução socialista.
    No entanto, os socialistas sentiam-se presos por um dilema: por um lado, a guerra poderia conduzir à queda definitiva do capitalismo, pelo que, mesmo não a provocando, os revolucionários nada deviam fazer para a evitar; no entanto, também tinham a consciência de que o conflito poderia ser uma calamidade, na qual os trabalhadores seriam os que mais sofreriam, pelo que os socialistas deviam recorrer a todos os meios possíveis para eliminar a possibilidade de guerra.
    Também os governos enfrentavam um grave dilema: sem um significativo suporte popular, dificilmente um governo arriscaria tomar o caminho da guerra; ora, face ao crescente peso eleitoral dos socialistas, como se poderia ter a certeza, quando se tivesse de tomar a decisão fatal, que os cidadãos estariam dispostos a marchar para a frente de batalha?
    Assim, no caminho para a Grande Guerra, a atitude dos trabalhadores e, em particular, das suas organizações profissionais e políticas na eventualidade de um conflito, constituía o principal temor dos governantes. No Império Austro-húngaro e na Rússia, é certo, sindicatos e partidos socialistas relativamente fracos não preocupavam seriamente aqueles que viam no conflito uma oportunidade para consolidar o império e o seu poder. Já os Governos francês e alemão estavam confrontados com os dois maiores partidos socialistas existentes, formalmente revolucionários, e, juntamente com o Governo britânico, com movimentos sindicais poderosos. As suas tomadas de posição em caso de guerra eram muito importantes, porventura decisivas para o sucesso dos respectivos países no conflito que se adivinhava. Por isso, a análise prévia sobre as possíveis reações dos partidos e dos sindicatos quando confrontados com uma guerra real determinaria o modo como os governantes enfrentariam a crise. Quanto menor a incerteza maior seria a liberdade de acção dos governos.
    No fundo, a grande questão era saber se as várias comunidades políticas em confronto tinham sabido encontrar resposta para uma pergunta: como tornar credível um Estado que vai pedir às pessoas a quem não dá de que viver que vão morrer para a defender?




 
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    A resposta seria dada em 1914. A iminência da guerra fez com que os Governos francês e alemão adoptassem algumas medidas preventivas. O Ministério do Interior francês elaborou uma lista − o célebre Carnet B −, onde se enumerava o nome dos sindicalistas e militantes socialistas que considerava prioritário sujeitar a medidas de detenção em caso de guerra. O governo alemão, pelos vistos mais confiante no patriotismo dos seus “revolucionários”, limitou-se a desenvolver contactos regulares com alguns socialistas que considerava mais susceptíveis de serem seduzidos por apelos patrióticos: Gustav Noske foi convidado a visitar um navio de guerra enquanto outro socialista, Albert Südekum, mantinha contactos regulares com o gabinete do Chanceler Bethmann-Holweg como representante de Friedrich Ebert, líder do SPD. É certo que em 1919, Noske, então no governo do SPD, usaria os Freikorps para afogar no sangue a intentona spartaquista (Noske sobreviveria ao nazismo, não sem passar por um campo de concentração). E Lenine, em Fevereiro de 1915, escreveria um artigo no “Sotsial-Demokrat” (não passa despercebida a ironia do nome do jornal) onde falava dos “Südekumes”: uma designação genérica para todos os oportunistas sem escrúpulos e social-chauvinistas (a inventiva no impropério sempre distinguiu os bolcheviques).
    Na verdade, os sinais existentes davam alguma liberdade de acção aos governos. Na França, temeu-se a quebra da unidade nacional quando do homicídio de Jean Jaurès, em 31 de Agosto, na iminência da mobilização. Pois nada se passou: poucos se juntaram às cerimónias fúnebres, não houve manifestações nem a mínima alteração da ordem pública. Sentiu-se uma profunda emoção, mas esta surgiu mais como uma marca da impotência perante a evolução dos acontecimentos, já profundamente interiorizada na consciência dos franceses.
 
 

 
 
   Para John A. Hall e John Ikenberry (em O Estado, Editorial Estampa, Lisboa, 1990), decisivo nesta fase foi precisamente “o facto de a elite política sentir que podia confiar nos trabalhadores no que diz respeito à prática política com o estrangeiro...”. As discussões no seio da Segunda Internacional tinham concluído sem que tivesse sido adotada uma posição clara, definitiva e pronta a aplicar em caso de conflito: greve geral multilateral que impediria o esforço de guerra. Quando os governantes ouviram os líderes operários dizer que nenhuma garantia havia de que do outro lado da fronteira se fizesse greve, puderam concluir que o movimento operário não estava unido, estando contagiado pelo espírito patriótico de cada país. Perceberam então que os operários fariam a guerra.
  Quando todos partiram para a guerra, com entusiasmo, Aquilino Ribeiro, que residia em Paris no início das hostilidades, ainda não se apercebera da mudança de mentalidades. Em 2 de Agosto, escreveria no seu diário que os operários,
 
   “... rivalizavam (...) na febre de defender a bandeira que (...) tempos antes atafulhavam nas sentinas (...). No último congresso não preconizaram e votaram, para o caso de guerra, a greve geral? Numa e noutra parte os socialistas marcharam para a hecatombe com a mansidão de borregos.”
 
   Começou então a perceber-se que os operários fizeram a guerra porque o Estado lhes dava alguma coisa que não queriam perder. Não eram mansos borregos, mas cidadãos que, acima da consciência de classe, colocavam valores mais poderosos. Hobsbawn,  assinalando que o exército francês contava com até 13% de desertores e apenas foi confrontado com 1,3% em 1914, falou  na “prova melancólica do sucesso da política integradora da democracia.”
   Depois, a estória foi outra: os operários sentiram-se enganados durante a guerra, esquecidos depois desta. Em 1919, Clemenceau viveria em pânico porque, enquanto negociava Versalhes, tinha um milhão de soldados entusiasmados com experiências revolucionárias na Rússia, na Alemanha, na Hungria, esperando a desmobilização de armas na mão. É bem verdade: há sempre que contar com o dia de amanhã.
 

José Luís Moura Jacinto

 

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