sábado, 18 de janeiro de 2014

Fazer filhos.

 
 
 
 
 
Quando a minha filha nasceu, lembrei-me logo de ‘A Estrada’, o romance de Cormac McCarthy: no meio de um Apocalipse cinza, a caminho de um futuro sem futuro, aquele pai não hesita em cuidar do filho, continua a protegê-lo, como se existisse uma vida inteira à sua frente. É um pai igual às mães de “Se isto é um Homem”, mães que alimentam os filhos durante a viagem para Auschwitz. O cínico dirá que elas não conhecem o destino do comboio. É falso. Sabem, mas mesmo assim continuam a tratar das crianças como se tivessem três ou quatro eternidades ao virar da esquina. Naquele dia, também me lembrei de uma ópera metaleira dos ‘Theatre of Tragedy’, uma música que me atormentava desde 1996. Na tal ópera, ‘And When He Falleth’, a voz gótica de Vincent Price surge em cena para glorificar a desesperança. Em diálogo com uma crente, Price diz que “se alguma vez existiu um Deus de luz e vida, Ele há muito que está morto e alguém ou alguma coisa reina no seu lugar”. Sem abrir a boca, a minha filha ajudou-me a enfrentar finalmente a voz de Price. Deus está morto? Não faz mal. O meu dever é continuar a viver como se Ele continuasse vivo. 
Primo Levi, Cormac McCarthy e uma banda norueguesa, três ângulos sobre a grande questão moral: se o Apocalipse é às três da tarde, o que me leva a mudar a fralda à minha filha? Se o mundo vai acabar numa fornalha nazi, se a natureza vai destruir a humanidade, se Deus vai ser derrotado, qual é o sentido da paternidade? Se ouvíssemos apenas a voz da razão, a resposta seria negativa, não, a paternidade não tem sentido. Mas, felizmente, nós temos um ouvido mouco, um ouvido que despreza a lógica e, desta forma quase patética, continuamos a mudar fraldas. Ser pai é este aparente absurdo. O cínico dirá que, ora essa, tudo isto é movido pelo instinto animal. É falso. Se a causa fosse apenas a tesão darwinista, se o motivo fosse apenas a fuçanguice genética, nós abandonaríamos a nossa primeira cópia genética num albergue qualquer e trataríamos de fazer mais cópias, quais coelhinhos frenéticos. Não, nós não somos coelhinhos darwinistas. Ou melhor, até podemos ser os coelhinhos entesuados das Galápagos, mas também somos outra coisa. Ao contrário dos bichos, sabemos que existe um dever moral acima do Excel genético. 
Sim, é um dever, não é um gosto. As pessoas fazem sempre aquela pergunta retórica “então, gosta muito de ser pai, não é verdade?”. A minha resposta passa sempre por dizer que a paternidade não está no campeonato do gostar ou não gostar. Até porque ninguém gosta daquelas tarefas. Ninguém. É impossível gostar da mudança da fralda, das noites sem sono, do cansaço permanente, dos dias passados na urgência pediátrica, do trabalho que se atrasa porque há semanas em que ela tem de ficar em casa doente, dos filmes que não se vêem, dos livros que não se lêem, dos restaurantes que não se visitam ou das viagens que não se fazem. Mas a vida é mesmo assim. Há coisas que estão fora do alcance do gostar ou não gostar, coisas que não encaixam na frequência do like, coisas que têm de ser feitas seja qual for a nossa vontade. E, no final, prostrados e deprimidos, descobrimos que a renúncia aos nossos instintos e prazeres oferece uma alegria inqualificável, sem tradução, segundos de alegria com décadas de recompensa.
 
 
Henrique Raposo
 
in Expresso, 30 Dezembro
 
 
 
 

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