quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Baby Suicida.

 
 
 
 
Adelaide Ferreira
Baby Suicida
1981
 
 
 
Quando Maria Adelaide Mengas Matafome Ferreira (n. 1959) cantou a sua imortal Baby Suicida não houve qualquer celeuma. Mas devia ter havido: mesmo para a época, o videoclip, então chamado «teledisco», era indescritivelmente mau. A cantora Adelaide, muito versada em Durkheim, apelava claramente ao suicídio altruísta dos seus ouvintes, em especial quando esganiçava aquela voz roqueira no banco traseiro dum descapotável, pelas curvas sinuosas da Marginal. Mais tarde, houve celeuma, mas foi em França. Por causa de um livro chamado Suicídio. Modo de Usar, de Claude Guillon e Yves Le Bonniec. Proibiram a venda a menores, pois ensina as pessoas a matarem-se das mais diversas formas e houve jovens franceses que o praticaram. Por cá, o livro foi traduzido, publicado pela refractária Antígona, tão muito ou tão pouco vendido que até virou mono.  À venda na Wook.  Polémica? Nem uma, felizmente. Alteraram o código penal francês e, se não me engano, nós fomos atrás, criando um novo tipo penal, o crime de incitamento público ao suicídio. Para um pueblo de suicidas, como nos caracterizava Unamuno, até somos bastante tranquilos nestas matérias.
 
 
Katy Perry
Prism
2013
 
 
Se a Adelaide Ferreira não fosse irmã da cantora-causídica drª Mila Ferreira (Maria Emília Mengas Matafome Ferreira) e se tivesse nascido em 1984, em Santa Bárbara, Calif., filha de pastores evangélicos de classe média-baixa, chamar-se-ia, quase de certeza, Katy Perry. Esta rapariga lançou em finais do ano passado um álbum chamado Prism, que lá dentro tem uma música chamada Unconditionally (que em português se podia traduzir por «Irrevogável», mas já não pode). Apesar de já ter sido visualizado 61.354.054 vezes no YouTube, vamos portanto visualizá-lo mais uma vez. É que é mesmo um pavor, com um mocho gordo que nem um texugo a esvoaçar e uma cama a lançar fogo real sobre uma plateia de gente gira de libré j-p gaultier:
 
 
 

 
 
 
No clip, que certamente acompanharam até ao fim, há uma cena terminal em que a cantora é abalroada por um automóvel e, no rescaldo, a viatura-homicida fica mais coberta de flores do que todos os jardins de Lisboa juntos. O material promocional: 
 
Katy Perry
Unconditionally
2013
 
O resultado é pavoroso e, com desplante, foi lançado há pouco, coisa de finais de Novembro do ano passado, antes destas chuvadas monstras. Gravado em Londres, o clip constitui, diz a cantora, um cruzamento entre enamoramento e atropelamento. «Na verdade, é uma metáfora: quando te apaixonas é como se fosses atingido por um carro», referiu Katy aos jornalistas, em Amesterdão. «Os meus videoclipes têm sempre uma narrativa e desta vez quis fazer algo diferente». Até tu, Katy Perry, usas e abusas da palavra «narrativa»?
Deixando o reino das narrativas, falemos então de uma fotografia – essa, real, sem metáfora nem graça – do grande repórter mexicano Enrique Metinides ou, para quem prefira o rigor, Jaralambos Enrique Metinides Tsironides. Nasceu em 1934 e durante mais de cinquenta anos andou a fotografar acidentes, desastres e tragédias na Cidade do México, que, por ser uma cidade muito populosa e muito tormentosa, se presta muito ao tipo de trabalho de Metinides, comparado com o qual o tão celebrado Weegee é, literalmente, um menino. Para se ter uma ideia: Metinides fotografou a primeira morte quando tinha 12 anos de idade e, ao contrário de Weegee, que esperava pelas informações da polícia para acorrer aos locais do infortúnio, o mexicano voluntariou-se para a Cruz Vermelha, andando nas ambulâncias mesmo na hora do acontecimento. Uma das imagens mais famosas de Metinides foi captada na Cidade do México, em 1979, no cruzamento da Avenida Capultepec e da Calle de Monterey, e mostra uma jornalista famosa, Adela Legarreta Rivas, que, saindo de um cabeleireiro, ia a caminho da sessão de lançamento ou de uma conferência de imprensa sobre  um livro da sua autoria. Dois carros colidiram e atropelaram-na, matando-a. Melhor dizendo, foi atropelada por um Datsun branco, que se vê na imagem. A fotografia impressiona e até é um bocado estúpido da minha parte estar a descrever porquê: o rapaz da Cruz Vermelha prestes a tapá-la, o sol iluminando o rosto, a mão retorcida e o braço pendente do poste,  a aparência cuidada, de festa ou ocasião selecta, com as unhas pintadas a vivo, a pulseira de oiro, o rosto riscado por dois fios de sangue, o olhar aberto mas doravante inexpressivo. Uma retrospectiva da sua obra deu a Metinides o nome perfeito: «The man who saw too much».
 
 
Enrique Metinides
Cidade do México
1979

 
Daqui vamos passar para o que eu queria mesmo falar, que é doutra imagem, tirada em 1947 em Nova Iorque por um estudante de fotografia. Foi recriada na capa do álbum Gilt, saído em 1995 pela banda Machines of Loving Grace. Há quem diga que a imagem do disco de Katty Perry se inspirou na tal fotografia de 1947, na qual, por sua vez, alguns encontram semelhanças com a fotografia do mexicano Metinides. Como isto começa a ficar um pouco ensarilhado, e mete Andy Warhol e até a Christie’s, vamos devagar. Por hoje, ficamos então por aqui.
 
 
(Continua)       
 
 
 
 
 
 

4 comentários:

  1. Então e o Nick Cave com a Kylie Minogue, "Where the Wild Roses Grow"? É ver o video e a capa do single.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelo comentário.
      Com o devido respeito, permito-me discordar. A inspiração, nesse caso, é muito baseada no quadro «Ophelia», de Sir John Everett Millais. Aqui, o traço unificador é a presença do automóvel, como tentarei mostrar no próximo «post» (ou «posta») sobre a fotografia de 1947.
      Cordialmente, muito grato pelo seu comentário,
      António Araújo

      Eliminar
  2. O Malomil é o melhor que me acontece no dia a dia. Que luz, que luz.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Desculpe só agora responder ao seu comentário. E, verdadeiramente, não sei - ou não consigo - dizer-lhe o que quer que seja. Apenas isto: sou muito ignorante perante a vastidão de tudo quanto há para saber neste mundo. Por isso, escrever estas coisas dá-me muito, muito trabalho. E 99% das vezes saem mal. Tomarei, pois, o seu comentário como um incentivo para que continue a procurar estar à altura das suas palavras, Talvez um dia, quem sabe? Talvez um dia.
      Cordialmente, muito grato,
      António Araújo

      Eliminar