sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Mauriac e a Justiça.

 
 
 
François Mauriac
 
 
Sabe-se como a observação atenta de um julgamento pode fornecer matéria-prima fundamental para uma incursão na alma humana.

 
Não estamos, evidentemente, a falar das crónicas embrutecedoras e sensacionalistas que sempre pulularam num certo tipo de imprensa.

Mas da procura deliberada que grandes escritores do nosso tempo fizeram de alguns casos que, através das suas penas, tornaram maior que a vida.

A justiça foi uma constante preocupação de François Mauriac (1885-1970, Nobel da literatura em 1952), quer na obra jornalística quer na literária.

Para ele, a justiça não podia ser vingativa sob pena de se contradizer a si própria. Valorizava os eixos de compreender, amar e perdoar, advogando a punição do crime no respeito pela lei e os formalismos, sempre com humanidade.

Nesta vertente, assumem especial dimensão L’ Affaire Favre-Bulle e Thérèse Desqueyroux. 

A exibição cinéfila de mais uma versão deste extraordinário romance é uma boa ocasião para uma brevíssima revisitação judiciária da sua vida e da actualidade da sua reflexão (a versão fílmica de 1962, que Mauriac adaptou, de Georges Franju, com Emmanuelle Riva e um Philippe Noiret, adiposamente repugnante, nos papéis principais e música de Maurice Jarre parece difícil de ultrapassar…).   
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A justiça em Thérèse Desqueyroux
Mauriac inspirou-se num processo a que assistiu na Cour d´ Assises de Bordéus, de onde era natural, em 1906, em que foi ré Henriette Canaby.
A história desta tentativa de envenenamento, escrita em 1927, é um retrato violento de uma burguesia de província asfixiante e perturbadora.
Mas, ao que ora nos interessa, a visão da justiça é bem desencantada. Relatada no primeiro capítulo e subsequentes, refere “os corredores despidos do Palácio de justiça”, a instrução do processo é descrita como "descuidada", sem a sustentação pericial necessária para a fundamentar.
         O non-lieu do juiz de instrução é fundamentalmente devido a três circunstâncias: o médico ter retirado a sua denúncia por prescrições falsas; Bernard, vítima e marido de Thérèse, ter ilibado a sua mulher para proteger a honra da família; e a negação da arguida dos factos que lhe atribuem.
Além disso, é indicado que se o caso fosse em frente, ela iria ser implacavelmente defendida por Léonce Peyrecave, eminente advogado, 
A investigação criminal é aberta após a denúncia do Dr. Pédemay, avisado pela farmácia Darquey da existência de ordens forjadas em seu nome e termina com um arquivamento, devido a uma conveniente e induzida falta de provas.
Bernard, que apenas compreende a atitude de Thérèse por motivos económicos (“entre as mil possibilidades secretas do seu acto, este imbecil não soube descobrir uma única; e inventou a razão mais básica”) passa a impor a sua vontade e não haverá nenhum divórcio ou a separação formal dos cônjuges.
Thérèse quer confessar ao marido, na esperança de ser perdoada. No final do romance, Bernard “menos simples logo menos implacável” pretende saber o motivo do crime mas não leva essa pretensão até ao fim, distanciando-se novamente, sem aceitar o pedido de perdão “com horror dos gestos fora do habitual, das palavras diferentes das que trocava todos os dias”.
Em última análise, a vítima nunca vai entender que existem duas Thérèses: a mulher que quer inserir-se mas que se interroga se “a vida das pessoas como nós não se parece terrivelmente com a morte” e a insatisfeita que pretende amor e liberdade.
Mauriac apresenta uma visão desvalida da justiça oficial, objecto lateral de problemáticas que sempre o irão interessar: o castigo, a humanidade e o perdão. Mas não deixa de a apresentar, no fundo, como cúmplice de uma expectativa dos mais fortes, da preservação da honra familiar, abstendo-se na defesa da ordem estabelecida.
O caso é uma alavanca para uma poderosa apresentação interior de uma mulher perdida no seu mal de vivre e que “embora os homens não tenham reconhecido como culpada foi condenada a uma solidão eterna”.



Albert Camus

 
         A polémica Mauriac-Camus
Em 1944, quando começa o ajuste de contas em França, um importante debate ocorre, entre o jovem Albert Camus (31 anos, ainda autor de apenas um livro) e o consagrado, François Mauriac (59 anos, eleito para a Academia Francesa em 1933), sobre a justiça e especialmente a sua aplicação aos colaboracionistas.
Camus escreve no Combat e Mauriac no Le Figaro. O primeiro é ateu, o segundo é católico.
O confronto entre os dois, exemplarmente travado, continua a conter em si muito do que as justiças de transição debateram depois e ainda hoje debatem.
Até onde deverá ir a justiça? Mauriac é defensor do perdão e tem medo da corrupção do espírito que considera dever presidir a uma boa e prudente aplicação. Camus pretende maior severidade, considera fundamental ajustar contas com o passado e não pretende trocar a justiça por qualquer tipo de caridade. O primeiro quer a reconciliação, o segundo prefere a punição.
Mauriac considera fundamental rejeitar a pura vingança, Camus, embora adversário da pena de morte, pretende uma repressão curta mas eficaz para romper com as leis de Vichy e o ordenamento capitalista.
Mauriac revolta-se contra a parcialidade dos tribunais e a iniquidade de algumas decisões. Num editorial do Le Figaro, de 12 de Dezembro de 1944, intitulado “A lotaria”, refere que nas sentenças proferidas, “tudo é sorte e arbitrariedade”.
Curiosamente, as posições dos dois vão aproximar-se. A partir de 1945, Camus assume o fracasso da depuração encetada, considerando os processos como selectivos e mal conduzidos levando a veredictos absurdos e incoerentes e a aproveitamentos políticos manifestos (reconhece com tristeza o falhanço, rematando “uma nação que falha a sua depuração está pronta para falhar a sua restauração”).
Camus passa a defender a reconciliação como uma finalidade fundamental e junta-se a Mauriac e a numerosos signatários de um pedido de clemência de Robert Brasillach (escritor, jornalista e crítico de cinema francês, fuzilado aos 36 anos pela sua posição durante a Segunda Guerra Mundial) depois de um processo judicial absolutamente ideológico e sem sentido. De Gaulle, de quem Mauriac era amigo e apoiante, apesar da sua conhecida moderação na matéria, vai ignorar esse pedido.
Em 1947, diante dos Dominicanos da Tour Maubourg, Camus reconheceu que Mauriac, nesta polémica, tinha a razão do seu lado.
Nas palavras de Philippe Sollers, o tempo tem corrido a favor de Mauriac, “o escritor que se enganou menos sobre todas as tragédias do século XX” (Discours Parfait, Gallimard, 2010, p. 427), nem vichysta nem comunista, apoiante dos republicanos contra Franco, adversário da guerra da Argélia, católico progressista, de sexualidade ambígua e com o seu credo semi-anarquista “Com Deus mas sem mestre”.
A propósito desse extraordinário livro que é Thérèse Desqueyroux, vale a pena redescobrir este verdadeiro intelectual, cujo segredo era a independência de “nunca ter tido ninguém acima perante quem tremesse ou transigisse”.
 
Luís Eloy Azevedo
 

 

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