terça-feira, 18 de março de 2014

Ionesco.


 
 
 
 
 
Eugène Ionesco (1909-1994)
 
 
 
 
 
EUGÈNE IONESCO, A GUARDA DE FERRO E A RINOCERITE
(com trechos duma entrevista de Ionesco em Portugal)
 
“History (…) is a nigthmare from which I am trying to awake”
James Joyce, Ulysses (1922).
 
 
 
 
 
1.“A alma balcânica”
 
Ionesco, um amigo íntimo de Mircea Eliade nos tempos convulsos da Guarda de Ferro,[1] mas bem distante pelo seu cepticismo crítico em relação às suas formas de fascínio pela violência político-mística e pelo anti-semitismo delirante – até porque a sua mãe era judia [2] –, lembraria os frenéticos camisas verdes balcânicos de maneira lúcida no seu livro de fragmento de memórias Présent passé Passént présent:
 
“Uma «cultura» balcânica original e autêntica não pode ser verdadeiramente europeia. A alma balcânica não é europeia nem asiática. Isso nada tem a ver com o humanismo ocidental. (…). Os balcânicos declaram-se cristãos, mas eles não o são, quase não são. Podem ter uma espécie de fé, uma fé não psicológica, uma fé como uma decisão tomada. Eles não têm sobretudo a caridade. A fé para eles pode não ser considerada como uma fé, de tal modo é diferente da fé afectiva, psicológica intelectual dos católicos e dos protestantes. Os popes são materialistas positivos, ateus no sentido ocidental; eles são bandidos, sátrapas, manhosos com as suas barbas negras. Sem piedade, telúricos: verdadeiros «trácios». O soberano moldavo-valáquio mais admirado, o mais popular, chamava-se Vlad, cognominado de Empalador, porquanto o empalamento era a sua única maneira de matar, que reservava aos ladrões, aos seus rivais, aos soldados turcos que ocupavam o seu país e contra os quais se tinham revoltado, aos desertores, aos mercadores, aos caídos em desgraça e assim sucessivamente. O fenómeno Guarda de Ferro não é qualquer coisa de passageiro, é profundamente balcânico, é verdadeiramente a expressão da dureza da alma balcânica no seu refinamento.” [3]
 
Este admirável texto de Ionesco no seu  Présent passé Passé présent é uma síntese de intra-história que nos ajuda a compreender a barbaridade animalesca dos legionários da Guarda de Ferro de Codreanu, que matavam com uma selvajaria mística, como nos massacres de 21 a 23 de Janeiro de 1941 em Bucareste, logo em seguida ao afastamento deste grupo político por Antonescu – já Eliade se achava em Londres –, em que chacinaram judeus e foram pendurar os seus cadáveres nos açougues da cidade.
 
 
 
Albrecht Dürer, Rinoceronte, 1515
 
 
 
 
2. A rinocerite
 
Noutra passagem do mesmo livro[4], Ionesco, ainda a propósito da Guarda de Ferro, pergunta como seria possível falar com um lobo, com um rinoceronte: “Como fazer-lhes admitir os meus valores, o mundo interior que eu transporto. De facto, como o derradeiro homem nessa ilha monstruosa, já não represento nada, a não ser uma anomalia, um monstro. Sim, eles parecem-me ser rinocerontes.” (p. 164), Está aqui o tema ionesquiano da rinocerite, que o levaria a escrever a peça O Rinoceronte (1959), extraordinária parábola de como se chega à desumanização colectiva das sociedades pelo fascismo (ou pelo estalinismo soviético).[5] Em suma, para Ionesco esta peça não se confinava ao exame do nazismo mas a todos os totalitarismos contemporâneos de direita ou de esquerda, europeus ou sul-americanos, a todas as histerias colectivas do “homem  novo” e dos ideólogos que obedeceriam ao “instinto de rebanho” como o Bérenger desta peça. Noutra passagem do Présent passé…, Ionesco escreve: “Agosto de 1940. Os polícias são rinocerontes. Os magistrados são rinocerontes. Tu és o único homem diante dos rinocerontes. (…). E tu mesmo perguntas: é verdade que o dera conduzido por homens?” (op. cit, p.,114) E associa o rinocerontismo ao “homem novo”, que pode significar: “tudo pelo Estado, tudo pela Nação, tudo pela Raça. Isso parece-me monstruoso, evidentemente. (…). Como ser pelo Estado, que não passa duma máquina para administrar? Não é um homem, não é Deus, não é um anjo, não é mesmo uma ideia, um mito. É uma abstracção ou antes uma máquina jurídica, mas para os rinocerontes, o Estado tornou-se um Deus! (…), Não se quis Deus, porque Deus vos aliena e eis que se fez do Estado um Deus com o fim de sermos nós alienados.” (p.115); e logo acrescenta, comentando este texto de 1940: “Nesse momento, eu falava da mentalidade fascista e dos Guardas de Ferro e dos seus colectivismos. Hoje isto aplicar-se-ia aos marxismos e  às sociedades marxistas.” (p.116, datado de 1967).
Ainda noutra passagem do mesmo livro Présent passé…, Ionesco recolhe alguns apontamentos seus sobre o período de 1940 e acrescenta-lhes reflexões dos anos 60. Eis o essencial desse texto: “Assisti a mutações. Vi pessoas transformarem-se. É como se eu tivesse surpreendido o processo mesmo da metamorfose, como se tivesse assistido ali. Eu sentia-os primeiro tornarem-se cada vez mais estrangeiros, senti como germinava neles uma outra alma, um outro espírito. Perdiam a sua personalidade, substituída por outra. Tornavam-se outros. (…) estávamos ali, juntos, nós que tentávamos  resistir aos outros, àqueles que nos cercavam. Era duma resistência mental que se tratava. (…). Éramos jovens na época e como resistir intelectualmente a tantos especialistas fanatizados: sociólogos, filósofos da cultura, biólogos que fundavam «cientificamente» um racismo, literatos, jornalistas. Há de facto uma biologia marxista, houve de facto filósofos entre os maiores que cederam ao absoluto do Estado ou ao delírio colectivo. Que podíamos nós fazer (…) e tentar pensar, entre nós, e responder a todas as rádios que uivavam, a todos os discursos, a todas as imagens, a todos os livros que nos assaltavam. (…). Éramos cada vez menos numerosos e eu sabia como é que aquilo se passava: eu dava-lhes quatro a seis semanas para sucumbirem definitivamente, para ceder à tentação, à tentação da força, para encontrarem desculpas para o seu medo. Para deixarem cair os braços, não terem mais de combater, admitirem interiormente todas as razões dos outros e tornarem-se eles mesmos como os outros, com um grande alívio. Eles tornavam-se possessos.
Estou espantado de ver até que ponto isto se parece com a minha peça O Rinoceronte. É mesmo isto a génese dessa peça. Só recentemente é que, retomando páginas antigas do meu diário, vi que o que eu chamava rinoceronte, e que tinha esquecido completamente, e que só por um curioso acaso me parecia retomar o nome desses adversários ou desses fanáticos imbecilizados. Esse fanatismo delirante existe ainda nos nossos dias e são os comunistas e são os Guardas Vermelhos e assim sucessivamente… Já não são mais os nazis. (...). É como se eu tivesse assistido a transformações. Vi gente metamorfosear-se. Constatei, segui o processo da mutação, vai como é que irmãos e amigos se tornavam progressivamente estrangeiros. Senti naturalmente germinar neles uma nova alma: como que uma nova personalidade substituía s sua personalidade.” (pp.168-172).
 
 


Símbolo da Guarda de Ferro
 
 
 
 
3.O pai de Ionesco ou “o espírito da ortodoxia”
Neste mesmo livro Présent passé…, Ionesco fala da trajectória política e profissional dum advogado que parece ser exactamente o seu pai (pp.184-187): por exemplo, depois de ter sido de um dado partido, adere à Guarda de Ferro. “Delírio colectivo, entusiastas adesões em massa. Codreanu, como Mao, como Hitler, é o tirano bem-amado, o matador adorado, o profeta ou o Messias enviado por Deus por fazer justiça. Mas sobretudo para matar e para flagelar os seus inimigos. (…). Depois vem a guerra: a Guarda de Ferro no poder, a Guarda de Ferro afastada do governo, um general, inimigo das Guardas de Ferro, mas igualmente inimigo dos russos, fez-se aliado da Alemanha hitleriana, torna-se comandante chefe dos exércitos romenos e presidente do conselho: o advogado está convencido da justeza da atitude de Antonescu, condena os anarquistas criminosos da Guarda de Fero e inscreve-se, no sentido da História, ao lado do general Antonescu. A Alemanha perde a guerra, os romenos também, os russos ocupam o país, o partido comunista está no poder. A ordem socialista instala-se (…). Já não há advogados. Os comunistas expulsam-nos da ordem dos advogados, todos menos cinco, entre os quais o advogado, que cai sobre as suas patas, exactamente no sentido da História. E contudo, o homem não era verdadeiramente um oportunista. Ele tinha simplesmente (…) o «espírito da ortodoxia», ele acreditava no poder. Era um hegeliano instintivo: a verdade, para ele, era o Estado, a verdade só podia ser a do diário do governo (…) a verdade era a história, pois pode haver outra verdade a não ser a da história ou da força presente? Ele era dócil, acreditava sinceramente e é por essa razão que todos os partidos não lhe censuravam nunca ter sido membro de outros partidos.” (pp. 185-186).
 
 
Ionesco
 
 
 
4. Ionesco em Portugal
E antes de examinarmos de perto o resultado da vivência pessoal e histórica desta rinocerite que contaminava almas e infectava sociedades inteiras, recordemos agora uma conversa que tivemos com o dramaturgo romeno – durante a qual lhe falámos duma peça sua que tínhamos acabado de ler, e que nos impressionara como poderosa parábola político-ideológica −,  há mais de meio século atrás, tínhamos nós dezanove anos. Em 1959, tendo vindo Ionesco a Portugal para assistir a representações das suas peças no cine-teatro Carlos Manuel, em Sintra, entrevistei-o para a revista ilustrada O Mundo (12-IX-1959). [6] O que se segue recolhe a apresentação da entrevista e as passagens mais relevantes, em larga medida dedicadas ao tema d’O Rinoceronte.
“Seteais. Numa pequena sala tranquila, Ionesco recebe-nos. É um homem de uma extraordinária amabilidade. Fala numa voz um pouco velada, doce e suave. Poucos gestos. Face serena, quase melancólica.
− Foi influenciado pelo surrealismo?
−Não estou certo, mas creio que sim. Trata-se de um fenómeno artístico e cultural muito importante de que todos beneficiaram: os que fazem pintura ou teatro ou poesia não podem fugir a essa influência.
− Em O Rinoceronte quer-nos parecer que abandonou uma técnica de esvaziamento verbal; marcará esta obra uma nova fase?
− Não sei. Há nesta peça, como nas outras, temas antigos. Mas se nas outras se estudava a proliferação da matéria, aqui trata-se antes da proliferação de um monstro: os humanos desumanizam-se. Mas encontramos uma crítica da linguagem no Iº acto. O Lógico é ridicularizado, não porque raciocine ilogicamente mas porque o faz fora do real. Apresenta-se uma crítica do formalismo verbalista. O tema básico é o advento de uma catástrofe – o aparecimento de um rinoceronte. As pessoas não tomam consciência do facto, preocupando-se antes com pormenores secundários (se o monstro é asiático ou africano, por exemplo). O insólito não aparece como tal. As pessoas pretendem que tudo continue quotidiano.
− A sua obra conduz a uma contestação do mundo e do homem ou antes a uma afirmação da solidão?
− Uma afirmação da solidão? Mas o que entender por solidão? Não há solitários no mundo de hoje. Os colectivismos são um grande perigo porque repudiam a solidão. A verdadeira comunidade é a solidão de cada um. Só estando comigo mesmo posso ser universal. Um mundo exclusivamente social, como o de hoje, tem falta de profundidade. Paradoxalmente poderíamos afirmar: a verdadeira solidão é a colectividade e a verdadeira comunidade está na solidão.
− Acha justa a designação de «Teatro do Absurdo» para as suas obras?
− Não sei se haverá aí uma negação da esperança. Ao denunciar o Absurdo, contesto não o mundo mas a «absurdidade». Como poderia eu denunciá-lo se não tivesse em mim o paradigma do Não-Absurdo?...
− Sofreu alguma influência determinante da literatura romena?
− De modo algum.
− Acredita na existência de uma crise teatral europeia?
− Sim e não. Se se fala demais em crise, ela poderá chegar. Há sempre crise de obras, de autores e sobretudo de encenadores. Fala-se, noutro sentido, de uma crise: Gabriel Marcel, filósofo confuso, contesta-a. Mas tem de haver crise. Ela é permanente. O Homem é o único animal doente. Deixaria de haver crise do teatro quando deixasse de haver crise do Homem. Seria o sono, a morte.
− Que pensa do teatro de Beckett?
− Gosto muito de Beckett.
(…)
− Em certos meios expressou-se o receio de que o novo regime francês [7] poderia prejudicar a livre expressão artística; o que pensa?
− Não o creio de modo algum. Temos Malraux no poder, e portanto estamos salvos. Seria muito mais perigoso se tivéssemos Sartre como ministro da Cultura. Seriamos obrigados a ser engagés no sentido dele…[8]
− Exige realismo na interpretação das suas peças?
− Não. O realismo é uma não-verdade, uma estilização do real. Poderíamos mesmo falar no irrealismo do realismo. O que exijo é verdade – a expressão livre de cada um dos actores.”
 
 
 
Denis de Rougemont, 1947
 
 
 
5. Denis de Rougemont e a rinocerite hitleriana
 
Voltando à génese da peça O Rinoceronte, recordemos que, no prefácio à sua edição norte-americana [9], Ionesco sublinhava que a ideia de escrever esta parábola da rinocerite lhe viera da leitura do Journal d’une Époque: 1926-1946, do escritor suíço Denis de Rougemont (Neufchâtel, 1906 – Genebra, 1985), o qual, em 1938, assistira em Nuremberga a uma manifestação nazi que muito o impressionara. Rougemont estava no meio de uma multidão compacta que esperava a chegada de Hitler e as pessoas davam sinais de grande impaciência até que, por fim, no final duma avenida, surgiu Hitler e o seu séquito, o que despertou uma progressiva espécie de delírio daquela multidão que aclamava em êxtase o seu ídolo. Esta histeria espalhava-se à medida quem Hitler avançava como uma maré, pelo que o narrador se sentiu espantado diante deste fenómeno de posse colectiva da turbamulta. Quando o Führer chegou perto, as pessoas que estavam ao lado do suíço entraram em delírio eléctrico, ao mesmo tempo que o visitante se sentia invadir por essa raiva contagiosa colectiva, até que se deu conta de que ele mesmo estava prestes a sucumbir a ela, até que, do mais profundo do seu ser, resistiu à tempestade colectiva e não se deixou subjugar pelo fenómeno envolvente. Rougemont contava que tinha sentido então um grande mal-estar no meio daquela turba histérica, ao mesmo tempo que ia resistindo a esse impulso de contaminação, hesitando quanto ao que devia fazer. Por fim, os seus cabelos eriçaram-se literalmente e o ensaísta e militar helvécio compreendeu o que significava a expressão “horror sagrado”. Nesse momento não era o seu pensamento que resistia ao delírio nazi, antes era todo o seu ser e toda a sua “personalidade” que se revoltava contra o contágio colectivo: foi este, conclui Ionesco, o ponto de partida da sua peça sobre o delírio que desumaniza as pessoas, transformando-as em monstros, em rinocerontes.
 
 
 
 
 
6. Exame sucinto da parábola do rinoceronte
 
Peça em três actos e quatro quadros, O Rinoceronte estreou-se em 6-XI-1959, num palco na Alemanha, no Schauspielhaus de Düsseldorf, sendo editada nesse mesmo ano, em Paris, pela Gallimard. Em 22-I-1960 era levada ao palco francês, o Odeón Théâtre de Paris, na encenação de Jean-Louis Barrault, com cenários de Jacques Noël. O cinema só se interessaria por esta peça num filme dirigido por Tom O’Horgan, Rhinoceros (1974), com um excelente elenco em que se desatacavam Zero Mostel, Gene Wilder e Karen Black. Houve ainda uma adaptação ao cinema de animação, numa curta-metragem de Jan Lenica, Die Nashörner, feita com papéis recortados.
Como se viu acima nos textos do próprio autor desta peça, ela tem a ver com um enquadramento histórico e com uma psicologia de massas manipuladas pelo fanatismo, pelo facciosismo e com o fascínio pelos extremismos de actuação violenta durante a ascensão e triunfo do nazismo alemão e dos totalitarismo de índole racista – clima a que não seria estranho, antes de mais, na Roménia, a Legião de Arcanjo São Miguel (1927), depois denominada Guarda de Ferro (1931), de Codreanu, com o seu enquadramento militarista e agressivo de militantes fardados, com camisa verde sobre a qual se destacava uma cruz branca. A peça divide-se em três actos e tem cerca de 20 personagens, entre as quais avulta gente comum, da meia média burguesia, do comércio, uma doméstica, um merceeiro, um professor de lógica, o dono dum café, um polícia e várias outras figuras menores como empregados duma firma, a loira dactilógrafa Daisy, apaixonada por Bérenger. No acto I surge um paquiderme em liberdade que provoca inicialmente cepticismo e até descrença, pois Jean garante que aquele rinoceronte que esmagou um gato não deve existir, sendo geral a atitude de repulsa diante de práticas violentas e animais que a todos chocam. No acto II começa o fenómeno da rinocerite, ou seja, da progressiva transformação de cada um e de todos em rinocerontes, havendo quem, como Botard, negue que as estórias que se contam sejam possíveis, ou que o fenómeno seja uma maquinação infame com propósitos ignóbeis, o que não impede que mesmo os cépticos se sintam fascinados pelo horror que vai infectando todos naquela terra.
A presença dos rinocerontes começa a ser preocupante, pelo que os bombeiros são depressa ultrapassados pelos casos de apelo para salvar as personagens que querem escapar aos paquidermes. Até Jean, apesar de preocupado com a ordem pública e pela presença dos rinocerontes na cidade e pelos constantes bramidos destes animais, acaba por se transformar num deles em sua casa, o que dá início à progressiva e invencível metamorfose dos humanos naqueles animais. A metamorfose de Jean é presenciada por Bérenger que o vai ver porque o colega está acamado com uma indisposição. A bossa que cresce na sua testa irá transformar-se em corno de rinoceronte, ao mesmo tempo que a sua pele endurece e o seu espírito começa a exprimir sentimentos de raiva à espécie humana, além de que proíbe que o colega telefone a um médico, afirmando que, no fundo, se as pessoas desejam transformar-se em paquidermes, não se lhes deve impedir de o fazerem, até porque “no fundo, os rinocerontes são criaturas como nós” (p.126) e que a moral pode muito bem ser substituída pela “natureza” (p.127), começando a soltar bramidos e garantindo que o humanismo está “ultrapassado”(p.128). e interrogando-se: “porque não ser um rinoceronte?” (p.129). Ao mesmo tempo, o seu corno cresce a olhos vistos e o novo animal garante que há-de esmagar o seu colega (p.130) – e um vizinho seu, já velho, se metamorfoseia também em animal cornudo, ao mesmo tempo que a cidade começa a ser invadida pelos animais. Bérenger, finalmente, consegue fugir da casa de Jean aos gritos de “Rinocerontes! Rinocerontes!”(p.133).
No acto III e último, passado agora no quarto de Bérenger, este recebe a visita do colega Dudard, o qual, como todos os demais se tornara também rinoceronte, proclamando que é “preciso seguir os camaradas para o melhor e para o pior” (p.176). Até Daisy, que o vem visitar, também já está infectada pela epidemia de rinocerite, acabando por partir, abandonando Bérenger, apesar de o amar. Assim, Bérenger será o único que se recusa transformar-se em paquiderme, apostado em combater a infecção geral que avassala toda a cidade. Tendo partido Daisy para se juntar aos rinocerontes, Bérenger decide continuar a ser humano: “Eu continuo a ser o que sou. Sou um ser humano. Um ser humano.” (p.196). E exclama: “Ai de mim, nunca serei rinoceronte, nunca, nunca! Não posso mudar. (…). Sou o último homem, sê-lo-ei até ao fim! Não capitulo!” (p.199). E com estas palavras termina a peça.
Fugindo da tentação de fazer uma peça de qualquer índole historiográfica –  até porque nada seria tão avesso ao seu teatro como a dramaturgia didáctico-política de um Brecht –, antes optando pela parábola dramática que situa o problema humano e colectivo num âmbito simbólico e metafísico de fábula, aqui em torno duma epidemia psíquica geral que perverte e avassala pessoas, convertendo-as em animais, Ionesco, ainda que, como vimos acima, confessasse que a ideia original da peça derivasse da leitura dum relato pessoal contado pelo democrata suíço Denis de Rougemont, além da vivência pessoal do fenómeno romeno da Guarda de Ferro – a que sucumbiram dois dos seus amigos mais íntimos, Eliade e Cioran –, fez a sua peça O Rinoceronte recorrendo a processos de comicidade e absurdo que eram tão próprios do seu teatro, um conto moral sobre a condição humana, o fenómeno social de uma comunidade que, diante duma contagiosa anomalia perversa que passa da racionalidade, da incredulidade e até do racionalismo mais formalista e burlesco – como o do Lógico (v.g., pp. 25, 37ss, 65) – ou  os que trabalham ao serviço dos demais – como todo um regimento de bombeiros, que depois de tentarem impedir os rinocerontes de fazerem estragos na cidade, acabam por ser contagiados pela rinocerite (p. 174), pelo que um regimento inteiro adere e se espalha pelas ruas, tocando tambores, ou ainda,  como diz a delicada Daisy, “é preciso seguir o seu tempo” (p.168) –, caindo na animalidade, no inumano e na selvajaria, ficando apenas um homem incólume a esta adesão em massa ao contágio envolvente. Esta fábula de Ionesco, ainda que directamente inspirada como problema metafísico e de psicologia humana pelo inquietante espectáculo, nos anos 30/40 do séc. XX romeno, pelo fenómeno do fascínio político exercido pelos camisas verdes assassinos da Guarda de Ferro de Codreanu – como, mais tarde, pelos diversos regimes comunistas como no caso dos Guardas Vermelhos chineses –, pretendia sobretudo ser uma meditação sobre a resistência obstinada de uma nova Antígona, agora chamada Bérenger, que não capitulava diante do despotismo dos governantes da Polis ou diante duma epidemia nefasta a que os seus compatriotas se iam entregando, ou seja, demitindo-se de serem humanos, simplesmente humanos.
 
Monte Estoril, Março de 2014
 
NB: Este texto é um capítulo do nosso estudo
«Mircea Eliade no purgatório português».
 
João Medina
 
 
 
 


[1] A Guarda de Ferro (Garda de Fier) era uma organização fascista romena, violentamente anti-semita e anti-maçónica, criada em 1930 por Corneliu Zelea Codreanu (Hutsi, Moldávia, 1899-1938, cujo verdadeiro nome era Cornelius Zelinski, de origem polaca), sob a forma inicial de Legião do Arcanjo São Miguel (Legiunea Arhanghelui Mihaei, 1927), de base cristã mística e racial, que recorreu a processos de actuação terrorista, como a morte violenta de líderes políticos adversos,  sendo dissolvida pelo governo em  1933  a partir do assassinato do primeiro-ministro Ion Gheorghe Duca (29-XII-1933, em Sinia), o que levaria ao julgamento de Cadreanu e de outros responsáveis desse partido como o general Cantacuzino e  Nichifor Crainic; mais tarde refundada com o nome de Totul Pentru Tara (Tudo pela Pátria), seria suprimida pelo golpe de Estado (Fevereiro de 1938) promovido pelo rei Carol II, criando a Frente de Renascença Nacional (Frontul Renasterii Nationale, Dezembro de 1938),  sendo Codreanu detido e depois, sob o falso  pretexto duma tentativa de fuga, abatido pela polícia. Em 1940 o general Ion Antonescu derrubava este regime, o rei abdicava a favor do seu filho Miguel (6-IX-1940), a Guarda de Ferro, agora liderada por Horia Sima, participava nesse chamado Estado Nacional Legionário, situação que se alterou de modo dramático em Janeiro de 1941, por ocasião dum golpe da Guarda de Ferro, que as tropas alemãs presentes não apoiaram, levando ao esmagamento deste grupo, responsável pelo sangrento pogrom ocorrido em Bucareste (21/23-I-1941), a partir do qual os chefes legionários seriam detidos e mandados para a Alemanha hitleriana e ali mantidos presos. Deposto, o rei Carol II, exilara-se entretanto em Espanha, Portugal, Brasil – onde casaria finalmente com a sua favorita, Magda Lupescu, agora princesa Elena) –, México e, por fim, de novo em Portugal (1947), onde acabaria por morrer (Estoril, 4-IV-1953).
[2] Veja-se a biografia de Andé Le Gall, Ionesco, pp.208-211. E o depoimento do Journal de M. Sebastian, em 10-II-1941, p.321: sob o efeito de alguns copos de vinho, o dramaturgo contou-lhe que a mãe era uma judia de Craiova, que o seu pai a deixara com duas crianças pequenas em França, permanecendo fiel à sua fé até morrer. Quanto às complexas relações entre Ionesco e Eliade, recordemos dois estudos indispensáveis, o de Alexandra Laignel-Lavastine, Cioran, Eliade, Ionesco. L’ Oubli du Fascisme, Paris, PUF, 2002, maxime pp.235-274 (Ionesco, Eliade e os “rinocerontes”) e  pp. 383-416 (os três romenos exilados em França), e a excelente biografia de Eliade por  Florin Turcanu. Le Prisonnier de l’Histoire, Paris, La Découverte, 2003, maxime pp. 349-351.
[3] Eugène Ionesco,  Présent passé Passé présent, Paris, Mercure de France, 1968, pp.181-182. Ver ainda pp.163-164, na qual, a propósito da Guarda de Ferro, Ionesco se pergunta como é que seria possível falar com um lobo, um rinoceronte: “Como fazer-lhes admitir os meus valores, o mundo interior que eu transporto. De facto, como o derradeiro homem nessa ilha monstruosa, já não represento nada, a não ser uma anomalia, um monstro. Sim, eles parecem-me ser rinocerontes.” (p.164), Está aqui o tema ionesquiano da rinocerite, que o levaria a escrever a peça O Rinoceronte (1959), extraordinária parábola de como se chega à desumanização colectiva das sociedades pelo fascismo (ou pelo estalinismo soviético).
[4] Eugène Ionesco, op. cit., pp.163-164.
[5] Veja-se Rhinocéros de Ionesco, apresentação e dossiê crítico de Emmanuel Jacquart, Paris, Gallimard, col. Foliothèque, 1995, maxime  pp. 11-14, 9-25 e 36-38 (o contexto sociopolítico desta peça e a influência dum texto de Denis de Rougemont, no seu Journal d’une Époque, 1926-1946, Gallimard, 1968, sobre o fascínio colectivo na Alemanha hitleriana, durante um comício que assistiu em 1936, em Nuremberga), bem como os depoimentos do próprio dramaturgo, pp.102-112. Ver ainda Eugène Ionesco, Le Rhinocéros,  peça em 3 actos e quatro quadros, Paris, Gallimard, 1959. O monólogo final de Bérenger, recusando transformar-se num rinoceronte: pp.195-99, rematando com estas palavras: “Contra toda a gente, defender-me-ei, contra toda a gente, resistir-lhe-ei até ao fim! Não capitulo!” (p.199).
[6] Ver essa entrevista, intitulada “Ionesco em Portugal”, realizada por mim com a ajuda de Jorge Mota, um colega da Faculdade de Direito, que eu então frequentava, que me pedira ajuda porque não conhecia muito bem as peças do franco-romeno, pelo que a nossa conversa com o dramaturgo sairia com o pseudónimo “Sérgio de Andrade”, na revista O Mundo, “revista semanal ilustrada” que se publicou de 6-VII-1957 a 19-III-1960,dirigida por Gentil Marques, Lisboa, nº 110, 12-IX-1959, pp.40-41, com duas fotos do dramaturgo a ser entrevistado no Palácio de Seteais. Citarei as perguntas que eu mesmo lhe fiz, sobretudo acerca d’O Rinoceronte e da política francesa. Como tinha levado comigo um exemplar da referida peça, Ionesco, sempre de uma enorme gentileza no trato connosco, teve a amabilidade de me dedicar  o meu exemplar, usando uma BIC, com estas palavras: “Pour João Medina sympathiquement / Eugène Ionesco”, sem data, explicando-me que fazer dedicatórias era bem mais difícil do que escrever livros, pelo que ele adoptara essa fórmula invariável, do que me pedia desculpa... Além das palavras da entrevista que a seguir transcrevemos, Ionesco contou-me, ainda a propósito da rinocerite, que o seu pai tinha sido membro da Guarda de Ferro e, depois da guerra, aderira à ditadura comunista na Roménia, o que parecia natural ao escritor, em termos de tendência de aderir ao que predomina numa dada sociedade. Quanto a este pai que Ionesco tanto detestou – até por ter abandonado a sua mulher, Marie-Thérèse Ipcar, mãe do dramaturgo, e ter ido viver para a Roménia, onde voltou a casar –, veja-se o que dele esclarece A. Le Gall na sua cit. biografia, maxime  pp. 20, 25, 28, 63-68. Eugen N. Ionescu fez carreira na administração civil, nomeadamente na polícia e nos serviços da Securitate (desde 1918) e no pós-1945, mostrando ser capaz de  ser legionário, democrata, franco-maçon, nacionalista e, por fim comunista, adaptando-se a tudo e  todos (cf. op. cit., pp. 63-64); no final da vida, foi um advogado de sucesso, mantendo-se na advocacia pelo regime comunista numa altura em que essa profissão desaparecia na Roménia; faleceu em 1948.
[7] A pergunta refere-se ao regime do general Charles de Gaulle (1890-1970) implantado em 1958. A seguir à crise de Maio de 1968, vendo o referendo sobre reforma do Senado e regionalização por ele proposto recusado pelo eleitorado, demitiu-se da presidência da República (28-IV-1969), recolhendo a Collombey-les-Deux-Églises.)
[8] O romancista André Malarux (1901-1976) foi ministro dos Assuntos Culturais de De Gaulle, de 1959 a 1969. Sartre era uma das bêtes noires de Ionesco: veja-se, por exemplo, o que diz dele no seu livro de entrevistas a  André Coutin, Ruptures du Silence, Paris, Mercure de France, 1995, maxime pp. 66-68. Ionesco lamentava que o homem do engagement nunca se alistara verdadeiramente em nada, e “que era um homem que nunca se aventurara na contra-corrente, que esteve sempre na moda e que o quis estar”(p. 67).
[9] Veja-se este texto no seu livro Notes et Contre-notes, Paris, Gallimard,  col. Folio, 1972, pp. 273-275.




 

2 comentários:

  1. A propósito...:
    http://ricerca.repubblica.it/repubblica/archivio/repubblica/1997/04/30/un-delitto-troppo-perfetto.html
    Gabriel

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    1. Muito obrigado.
      Cordialmente,
      António Araújo

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