sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Pretérito imperfeito.

 
 
 
 
 
 
 
 
DE COMO PERDI A CRENÇA NA VANTAGEM DE TERMOS
COLÓNIAS AFRICANAS
 
 
Memórias dos anos passados em Moçambique ou reflexões sobre o mito do Império português, o que Cervantes designaria como Ilha Baratária
 
        
           Olhe, amigo Sancho, respondeu o Duque, eu não posso dar uma parte do céu a ninguém, mesmo que não seja maior do que uma unha, pois só a Deus estão reservadas essas mercês e graças. O que posso dar-lhe é uma ilha feita e pronta redonda a bem proporcionada e muito fértil e abundante, onde vós, se tiverdes manha para isso, poderá com as riquezas da terra, granjear as do céu.”
         Cervantes, D. Quixote da Mancha, II parte, cap. XLII.   
                                                
 
                                                                                     
Depois dos anos de meninice passados em Joanesburgo, onde fui aluno dum colégio marista inglês, embora dispensado da aula de catequese, vivi depois em vários recantos de Moçambique, como Inharrime, Spungabera e, mais tarde ainda, em Montepuez e Nacala, localidades onde meu pai foi administrador. Nos dois últimos anos africanos, quando terminava o liceu, que seriam os derradeiros passados em Moçambique, residi então na pensão Martins, na Avenida 24 de Julho, em Lourenço Marques, passando com os meus pais as férias de natal e do verão. E foi em Nacala, tinha então 15 anos, que pude assistir uma ou duas vezes, ao cerimonial que iria marcar de modo profundo o meu modo de encarar o mundo e a vida: o julgamento de nativos, a que assisti em Nacala, no edifício da administração, colhendo para sempre, na minha memória de adolescente, uma impressão de estranheza que esses actos judiciais, a que assisti na sede da Administração, então me provocaram, sendo o meu pai o juiz todo-poderoso dessas cerimónias.
A justiça fazia-se diante no alpendre que servia de átrio ao edifício do governo, ficando todos os litigantes debaixo das árvores de largas copas que davam sombra ao terreiro, estando o juiz (o meu pai) com a farda branca da  marinha, com botão de âncora e sapatos alvos, ouvindo e presidindo a tudo, quase sempre calado, sentado na sua secretária de mogno, havendo em cima da mesa alguns papéis referentes aos casos a resolver entre queixosos e réus negros, O intérprete lá ia traduzia o diálogo agreste entre a acusação e a defesa – não havia advogados neste tribunal colonial – e, no final de cada caso, o juiz branco (o meu pai) resolvia sumariamente o caso, ditando em poucas palavras a sentença e mandando aplicar ao acusado o castigo imediato, umas tantas palmatoadas dadas pelo sipaio, um homem geralmente cruel e hercúleo. O castigado gritava de dor depois de cada palmatoada dada com um espesso pau de ébano de cinco olhos. E, por fim, eram todos mandados embora, regressando o meu pai ao interior da Administração para tratar dos seus demais negócios. Nos casos de penas mais gravosas, o réu recolhia de imediato ao cárcere, uma barraca imunda nas traseiras do pretório. Fiquei desde então com a ideia de que o Império era uma fantochada triste e que eu nunca viveria ali o resto dos meus dias, assim como aquelas duas humanidades que se defrontavam num tribunal africano simbolizavam uma situação cujo desfecho futuro inevitavelmente acabaria com a expulsão por via armada dos colonizadores europeus.
         Recordo ainda como foi também decisiva para a minha formação intelectual e política uma longa viagem de vários dias que fiz de automóvel com oi meu pai, no interior da região de Montepuez, visitando várias empresas suíças de colheita de sisal, tabaco e algodão, passeata que me levou a perguntar ao meu pai, quando tornávamos a casa, porque é que o poder político luso mantinha a ordem política em Moçambique para proveito exclusivo do capital estrangeiro, sendo, por exemplo, o tabaco que se fumava em Portugal e até naquela colónia da costa oriental comprado depois, na Suíça, ou seja, aos mesmos donos estrangeiros daquelas firmas de proprietários. O meu pai respondeu-me que os nossos capitalistas não queriam investir em Moçambique, de maneira que, muito naturalmente, os suíços aproveitavam-se da situação, comprando fazendas e plantando tabaco ou sisal. E acrescentava que, de qualquer modo, a ele, como administrador, ou seja como autoridade lusa em África, competia assegurar a paz interna, o domínio sobre os nativos e os interesses ligados ao nosso domínio histórico ali, recordando-me que o Império não era uma construção que se justificasse em termo de rendimento económico mas sim na de dever histórico, ao serviço da nossa “missão imperial”.
Seis anos depois, já estudante universitário em Lisboa, dei continuidade lógica às minhas objecções rebeldes quanto à nossa posse colonial africana participando de modo entusiasta numa greve se estudantes que, destinada a combater o poder da ditadura pessoal de Salazar, tinha, antes de mais – estávamos em 1962, no ano seguinte ao início da guerra angolana –, que ver com a recusa do nosso colonialismo, confrontando-nos com a ominosa perspectiva de irmos nós mesmos, depois da recruta em Mafra, combater nas nossas colónias para as mantermos. Foi assim que, chegado a meio do meu curso, no verão desse anos fatídico de 1962, recebi uma convocatória do exército mandando-me apresentar como soldado-cadete no solene convento, para dali seguir, passados seis meses, como oficial miliciano na luta contra a guerrilha africana. Tratava-se, obviamente, de uma sanção que a polícia política do regime aplicava aos jovens que tinham participado na greve universitária desse ano, castigo dado aos estudantes que, como eu, tinham inscrito a nitrato de prata, nas paredes brancas dos edifícios, desde a cidade universitária à praça de Londres e ruas burguesas adjacentes, graffitis contra a ditadura e pedindo o fim da guerra colonial.
Todavia, ao contrário da maioria dos meus colegas convocados também para o serviço militar, horrorizava-me a ideia de desertar e que, ao invés, talvez pudesse utilizar aquela inesperada e tão injusta como odiosa servidão militar para combater a guerra no interior da própria máquina guerreira desse sangrento Behemoth colonial que me ordenava ir para Mafra e, dali, para o combate. E fui mesmo para Mafra, confiante na esperada bondade futura de Adonai, e fi-lo com estóica determinação, crente na astúcia da minha táctica. O facto de ter andado uns anos no Colégio Militar escorava esta opção complexa e porventura quimérica, já que a simples ideia de desertar, mesmo dada por uma instância odiosa como o governo da Ditadura, me parecia inaceitável em termos éticos. E assim, um mês depois, levando ao colo uma espingarda Mauser com a suástica gravada na coronha – tratava-se de armamento oferecido a Portugal pela Alemanha nazi  –, me sucedeu, num  sábado de manhã, quase no final da instrução militar na tapada de Mafra, cair duma ponte de madeira, dando uma queda que provocou a fractura dum osso de articulação do pé direito, o escafóide társico, cujo nome helénico jamais esqueceria…
Resumindo o que se seguiu, direi que fui operado no Hospital Militar Central, à Estrela, posto em situação de adido, em regime de espera com vista a uma decisão médica ulterior e, após uma junta militar que me pediu para atravessar uma sala, primeiro usando a minha inseparável bengala e depois sem ela, finalmente retirado da efémera categoria de soldado-cadete e, por fim, devolvido à vida civil, o que me permitiria retomar e continuar o meu curso na Faculdade de Letras. Quanto à bengala que eu usara com astúcias de Charlot, dei-a à minha avô Ermelinda no mesmo dia em que cheguei a casa dela, vindo em táxi da miraculosamente  junta redentora do Hospital Militar de Lisboa, com a salvífica decisão de me considerar “inapto para o serviço militar”, dispensado de partilhar do destino das hostes portuguesas que durante 13 anos de guerras africanas, iriam defender a duvidosa soberania das nossas condenadas colónias, essas  tristes Baratárias que durante centúrias tínhamos em vão crido ser nossas, quando não passavam, como a falsa ilha ironicamente dada a Sancho Pança (“de barato”) pelos  malévolos duques sem nome - Cervantes optara por os não  nomear, talvez para evitar o escarmento eterno que ganhariam dos seus leitores -,  ilusão que, desde umas férias de verão passadas em Nacala, vendo o meu pai administrar justiça aos nativos e, depois, visitando elegantes e ricas fazendas suíças em terras moçambicanas, permitiram que um quase-país chamado Confederação Helvética pudesse plantar e colher tabaco que, depois, nos vendia para deleite dos nossos pulmões lusíadas, fazendo de nós colonizadores cocus mais contents
 
 
João Medina
 
 
 
 

2 comentários:

  1. Não o fiz porque não precisei mas parece-me mais ético desertar do que arranjar um ardil para não combater.Embora neste caso será sempre melhor não combater de qualquer maneira.Acho.

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  2. Só viu um bocadinho de Moçambique e ainda por cima com a ajuda dos olhos de um pai administrador de posto.
    Havia mais Mundo.
    Não o vou explicar, nunca o compreenderia.
    Cumprimentos.

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