terça-feira, 7 de abril de 2015

A Constituição Colonial (1911-1974) em dez tópicos.


 




A CONSTITUIÇÃO COLONIAL (1911-1974)
EM DEZ TÓPICOS
 
(Homenagem a Manuel de Lucena)
 
I
         Pelo menos até ao período liberal, isto é, durante os séculos XVI a XVIII, faltou uma constituição colonial unificada. Podem apontar-se, sinteticamente, quatro razões: i) –  a heterogeneidade dos estatutos dos vassalos; ii) – a inexistência de um corpo geral de direito; iii) –  a inconsistência do sistema político-jurídico; iv) –  a inviabilidade de um Império centrado, dirigido e drenado unilateralmente pela metrópole[1].
Por sua vez, na primeira metade do século XIX prevalecera a ideia de que o constitucionalismo liberal abrangia todo o Reino ou Nação e que a Constituição e seus direitos também se aplicavam ao Ultramar. Porém, apesar de assimilacionista e de aplicação directa, a legislação era nominal e o benefício da cidadania pelos nativos não passava de mera “ficção constitucional”[2].
 
II
Foram poucas as normas que integraram o Direito Constitucional Colonial português, em sentido estrito e formal:
  1. ) –  a norma do artigo 67.º da Constituição de 1911 – que enunciava, para as províncias ultramarinas, os princípios da descentralização administrativa e da especialidade das leis -, desdobrado em sete novos artigos pela revisão de 1920, onde se criou o regime dos Altos Comissários;
  2. ) – as normas do Acto Colonial (uma mescla de 47 artigos, de teor organicista, nacionalista, integracionista e centralizador), emitido em 1930 como Acto Adicional à (suspensa) Constituição de 1911, iniciativa de Salazar enquanto Ministro das Colónias interino e  recebido “materialmente” pela Constituição de 1933;
  3. ) – as normas dos artigos 133.º a 175.º da Constituição de 1933 aditados pela revisão de 1951 (quase todas provindas do Acto Colonial), consagrando um regime de “unidade nacional”;
  4. ) – as normas dos artigos 135.º a 138.º após a revisão constitucional de 1971, instituindo uma “autonomia progressiva e participada” das províncias ultramarinas,  organizadas em (pseudo) “regiões autónomas”;
  5. ) – os três artigos da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho (Lei da Descolonização), esclarecendo que a solução política das guerras no ultramar implicava o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação.
 III
       A terminologia colonial só entrou na Constituição de 1911 com a revisão constitucional de 1920, embora fosse indiferenciadamente utilizada na legislação ordinária, a qual, porém, não usava a terminologia imperial. Criado em 1926 pelo Ministro João Belo como associação política dividida administrativamente em oito colónias, o Império Colonial Português será um caso típico de “invenção da tradição”. No texto da Constituição de 1933 só era citado numa epígrafe e quando nela foi incorporado em 1951 converteu-se em Ultramar Português, mera designação geográfica para resumir uma unidade político-administrativa.
IV
As colónias estiveram sempre totalmente submetidas à Metrópole (com eventual excepção do regime dos Altos Comissários).
Na Primeira República a legislação básica teve origem parlamentar: constou das “Leis Almeida Ribeiro” de 1914, da revisão constitucional de 1920 e de legislação complementar. A partir de 1926, o principal legislador colonial passou a ser o Ministro das Colónias. A partir de 1951, o poder constituinte passou para a Assembleia Nacional. Com o “25 de Abril de 1974” coube ao Conselho de Estado (e foi exercido, derivadamente, pelo Presidente da República). Salvo na Primeira República, o Ministro das Colónias era o órgão fulcral do poder colonial (político, legislativo, executivo, mesmo judicial e militar), ou seja, como dizia a lei, ele era «o principal orientador e dirigente da política colonial».
 
V
Só no século XX surgiu a constituição colonial portuguesa, em sentido material e formal. Também só então o Império e o Direito colonial português, enquanto exercício de poder, obedeceram a uma teorização política. Na Primeira República, a concepção dominante foi maçónica e parlamentar, assentou no projecto da “nação una” e o seu mais importante ideólogo foi Norton de Matos. Na Ditadura Militar prevaleceu o nacionalismo imperial dos “monárquicos africanistas”. A filosofia colonial de Salazar provinha do século XIX e do nacionalismo católico; o seu “impulso imperial” mudou em 1951. Quirino de Jesus serviu-lhe de “eminência parda” e legislador de serviço. Como Ministros das Colónias no período do apogeu colonial português do século XX distinguiram-se Armindo Monteiro e Marcelo Caetano. O primeiro, entre 1931 e 1935, construiu o Império Colonial Português; o segundo, entre 1944 e 1947, modernizou-o sem o reformar. Ambos foram derrotados em 1951.
 
VI
A revisão constitucional de 1951 substituiu a perspectiva imperialista do Acto Colonial por uma concepção assimilacionista, transformando as colónias em meras províncias ultramarinas. Mas a revogação do Acto Colonial iria ter importantes consequências estratégicas. Amarrando-se ao princípio da unidade nacional, impediria qualquer renúncia à mínima fracção de soberania (como comprovou o caso de Goa) e, portanto, qualquer transição constitucional. Por outro lado, quanto ao sistema de alianças e de apoio ao regime, rompeu o equilíbrio até então prevalecente, passando a opor, no interior do regime, os partidários da integração ou assimilação aos partidários da autonomia político-administrativa[3]. Enquanto construção ideológica e jurídica, Portugal definido ad hoc como «uma unidade indivisível, unitária e permanente»[4] vinda da independência da nação e estendendo-se do Minho a Timor, durou um quarto de século, metade do qual em guerra.
 
VII
Em 1919 a Sociedade das Nações legitimara os Impérios Coloniais. Em 1941 a Carta do Atlântico reconhecera o princípio da autodeterminação dos povos, mas, em 1945, a Carta das Nações Unidas, embora condenando a ideia e a terminologia coloniais, limitou-se a organizar juridicamente o colonialismo. Em 1952, quando ainda não se falava em “independências africanas”, surgiu em França a expressão “processo de descolonização”, tradução do neologismo decolonization.
Até à segunda metade dos anos cinquenta, não existiram movimentos nacionalistas nas colónias portuguesas nem movimento anticolonialista em Portugal. Então chegou «o vento de agitações ou de subversão que vai pelo mundo»[5].
         A abolição do indigenato - primeira reivindicação dos nacionalistas - e a generalização da cidadania portuguesa, em Setembro de 1961, embora, para o seu mentor, tivesse sido «tão importante na história da evolução legislativa portuguesa» como o termo da escravidão e do tráfego de escravos[6], tem sido, por tardia e por não ter impedido a dissolução do Império, comparada ao Édito de Caracala, do ano 212 (comparação, aliás, também invocada em França a propósito de medida idêntica, tomada em 1946).
 
VIII
«Aguentar! Aguentar! E nada mais é preciso para que amaine a tempestade e se nos faça justiça», proclamara Salazar em 1959[7].
Depois, no extenso e «imperioso» discurso de 12 de Agosto de 1963, repensou a política ultramarina portuguesa. Não mudou. Considerou esclarecedora a fórmula constitucional que definia «a Nação portuguesa como um estado unitário na complexidade dos territórios que a constituem e dos povos que os habitam», pois essa fórmula surgia como inequívoca «declaração de um estado de consciência estratificado em séculos de história, e, através desses séculos, pelo trabalho dos portugueses e pelo humanitarismo cristão de que foram portadores». O conceito de nação era, pois, inseparável da noção de missão civilizadora, já que em função da história de Portugal «também somos, além do mais, e a melhor título que outros, uma nação africana». Visto que – acrescentou – a libertação dos povos de África era reivindicada mesmo contra a vontade dos próprios, então não restava «senão o direito natural de defender-se e de defender os seus. Assim começam as guerras». Quanto ao fenómeno da descolonização, parecia-lhe reinar o equívoco e estarem estabelecidas duas grandes confusões: por um lado, que autodeterminação era sinónimo de independência e plebiscito; por outro, que a essência da descolonização residia apenas na imediata e incondicional «transferência do poder do branco, onde o detém, para o negro que o reivindica e deve exercê-lo por ser mais numeroso»[8].
Ora, terá sido precisamente por não «passar de um crente fanático do dogma da superioridade do europeu e da inferioridade do africano», que Salazar terá morrido «como se sabe, doente da África»[9].
 
IX
Marcelo Caetano, exilado no Brasil, defendeu em declarações sob forma de “entrevista”[10] a política de “autonomia progressiva e participada”, consagrada como solução portuguesa na revisão de 1971 - que «talvez» conduzisse à independência dos antigos territórios coloniais, sua vocação histórica e exigência do mundo contemporâneo[11]. Tal independência política «impor-se-ia por si na altura própria»; caso contrário, se fizesse qualquer prévio anúncio de independência, «mesmo a longo prazo, o Governo português perderia o controle dos acontecimentos […]»[12]. Quer dizer, na conjuntura, a colonização como “condução dos povos” devera ter continuado.
 
X
O reconhecimento dos movimentos de libertação nacional como únicos e legítimos representantes - que decorreu da Lei n.º 7/74, de 27 de Julho (Lei da Descolonização) e de uma Comunicação do Governo português à ONU, de 4 de Agosto de 1974 - resume a descolonização portuguesa e distingue-a das demais (salvo, nessa perspectiva, a da Argélia). Determinou uma descolonização rápida, essencialmente política e conforme ao direito internacional.
Juridicamente, a descolonização portuguesa concluiu-se por via de acordos internacionais e bilaterais com os movimentos de libertação nacional (excepto Timor). Porém, tais acordos, omitindo regular o regime da sucessão de Estados, limitaram-se a dois efeitos: (i) transferir o poder e (ii) reconhecer os novos Estados.
 
António Duarte Silva
 
 





[1] António Manuel Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes”, in João Fragoso, Maria Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouvêa (org.), O Antigo Regime nos trópicos - A dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, pp. 163 e segs.  


[2] Cfr. Cristina Nogueira da Silva, “Nação, territórios e populações nos textos constitucionais portugueses do século XIX”, in Themis, Ano III, n.º 5, 2002.


[3] Manuel de Lucena, “Nationalisme impérial et Union européenne”, in AAVV, L’Europe des Nations, Arquivos do Centro Cultural Calouste Gulbenkian, Vol. XL, 2000 (Separata).


[4] Afonso Rodrigues Queiró, Ultramar: direito à independência?, Coimbra, Atlântida, 1974, p. 41.


[5]  Oliveira Salazar, “A atmosfera a mundial e os problemas nacionais”, in Discursos e Notas Políticas – V – 1951/1958, Coimbra Editora, 1959, p. 431.


[6] Adriano Moreira, Saneamento Nacional, Lisboa, Torres e Abreu Editores, 1976, p. 47.


[7]  Oliveira Salazar, “A posição de Portugal em face da Europa, da América e da África”, in Discursos e Notas Políticas – VI – 1959/1966, Coimbra Editora, 1967, p. 60.


[8] Oliveira Salazar, “Política Ultramarina”, in Discursos e Notas Políticas, Vol. VI, Coimbra Editora, 1967, pp. 287 e segs.


[9] Amílcar Cabral, “Intervenção perante a Quarta Comissão da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Outubro de 1972”, in Obras Escolhidas de Amílcar Cabral, Vol. II, Lisboa, Seara Nova, 1977, p. 196.


[10] Marcello Caetano, O 25 de Abril e o Ultramar – Três entrevistas e alguns documentos, Verbo. s. d.


[11] Idem, op.cit., “Terceira entrevista”, inédita,


[12] Idem, op.cit., “Primeira entrevista”, in O Mundo Português, de 25/6/1976, Rio de Janeiro.





2 comentários:

  1. Interessante. Vou ler com mais calma. Pequeno reparo : "Pelo menos até ao período liberal, isto é, durante os séculos XVI a XVIII, faltou uma constituição colonial unificada"... o que parece razoavelmente natural, na medida em que não havia constituição "tout court", ou não ?

    Boas

    ResponderEliminar