terça-feira, 14 de abril de 2015

Tempos sombrios.

 
 
 
 

Por afazeres vários e indesculpável distracção, levei tempo demais a ler o extenso artigo de Graeme Wood sobre o Estado Islâmico, que saiu com estrondo na Atlantic  e depois foi traduzido cá (uma bela tradução, note-se) pelo jornal Público (aqui, na íntegra). O «resumo» que é feito aqui, com o devido respeito, parece-me simples demais e não faz justiça à investigação extraordinária de Graeme Wood. Sem preconceitos nem complexos, Wood desfaz a retórica politicamente correcta dos que dizem que o EI «não é islâmico» (o que, muita atenção, não significa, de modo algum, dizer que todos os muçulmanos são apoiantes do ISIS – pelo contrário!).
 
Wood mostra ainda as diferenças profundas entre a Al-Qaeda e o ISIS, e até que ponto as pretensões deste podem converter-se nas suas maiores debilidades. Por exemplo, o facto de querer afirmar-se como «califado» implica a existência e o domínio sobre um território, o que retira ao ISIS a flexibilidade operacional que constitui uma das principais armas da Al-Qaeda. Por outro lado, o facto de não admitir sequer a existência de «diplomacia» e «embaixadores» pode contribuir para o seu isolamento.
 
A implosão do ISIS é um cenário optimista, que Wood tem como possível. Não deixa, todavia, de alertar para um risco, o mais terrível de todos: uma aliança entre a Al-Qaeda e o EI. Isso pode ocorrer, por exemplo (hipótese que Wood não explora), se a liderança de al-Zarqawi for posta em causa ou se este se vir forçado, por razões de sobrevivência, a pactuar com al-Baghdadi. O texto de Wood – que deve ser lido na íntegra, atentamente – pode levar a crer, se mal interpretado, que o ISIS não é uma ameaça imediata para o Ocidente, no sentido em que daí não virão atentados em Londres, Paris ou – porque não? – Lisboa. O facto de os que aderem ao ISIS, vindos de todo o mundo, queimarem os seus passaportes é um sinal de que, de acordo com a doutrina do Estado Islâmico, será lá, na Síria e nos territórios limítrofes, que se travará a primeira batalha. No entanto, nada nos diz que (1) não venha a forjar-se uma aliança entre o ISIS e a al-Qaeda, com esta a actuar como «exército» do primeiro, agindo no exterior; (2) mesmo sem uma aliança com a al-Qaeda, o ISIS não venha a exercer, pontualmente, acções terroristas fora daquela zona. Há uma razão para que essa hipótese não possa ser descartada. Como salienta Graeme Wood, com o passar do tempo as debilidades do Estado Islâmico podem tornar-se cada vez mais evidentes. Daí que, num gesto de desespero, e para iludir essas fraquezas e continuar a recrutar seguidores em tudo o mundo, a hipótese de o Estado Islâmico se lançar no «mercado» do terrorismo global não deve ser arredada. Não sou especialista nem estudei o assunto, pelo que muito provavelmente estou a dizer uma barbaridade tão bárbara como as atrocidades cometidas pelo ISIS. Foi apenas o que me ocorreu após ter lido o texto de Graeme Wood que, esse sim, fala do que sabe e nos ajuda, como poucos, a compreender o que é e o que quer o Estado Islâmico do Iraque e do Levante. 

Em todo o caso, há alguns dados perturbantes, de que Wood não fala e que podem pôr em causa a sua tese segundo a qual o ISIS, configurando-se como «califado», não tem a pretensão de exportar os seus métodos de acção ou estabelecer alianças fora do território onde actua e onde tem, primeiro, de consolidar a sua presença. Sei que há quem duvide da autenticidade desta manobra, e pode não passar de um oportunismo propagandístico, mas o certo é que o Boko Haram fez uma promessa de aliança, uma bayat, ao ISIS e este aceitou-a, publicitando amplamente este pacto de sangue. Pode ser propaganda, mas nestas guerras não existe mera propaganda. A propaganda não é acessória ou instrumental. É substantiva, faz parte da essência do movimento, é ela que cativa e mobiliza a ida de dezenas de jovens ocidentais para a Síria (ou, se o ISIS falhar, para a Nigéria).

Na Nigéria, o Boko Haram pretende implantar a sharia recorrendo a actos de uma barbaridade inaudita. Vão a escolas raptar meninas, que são violadas pelos guerreiros. Às vezes, segundo se diz, são levada para aldeias onde são violadas por toda a população muçulmana que aí habita. Às que, apesar disso, continuam a recusar-se a obedecer à lei islâmica são libertadas. Mas, antes de partirem, esfregam o seu mamilo direito nas ombreiras das da casa, até aquele desaparecer. Cortam-lhe o sexo ou o peito. Em Abril do ano passado, a população de Chibok foi dizimada. Sobraram 200 meninas, alunas de uma escola, com idades entre os 7 e os 15 anos. Foram raptadas, ninguém sabe o que lhes aconteceu. Ainda hoje, passado um ano, há orações para que regressem. Segundo um relatório da UNICEF, divulgado há poucas horas, a acção do Boko Haram está a colocar em risco a vida de 800 mil crianças na Nigéria. A tragédia nigeriana foi há pouco exposta de uma forma imprevista, terrível, através de desenhos de crianças que assistiram aos massacres. Meninos que sobreviveram e que, nos campos de refúgio da UNICEF, desenharam o que viram e viveram. Retratos de tempos sombrios.







    

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