quarta-feira, 3 de junho de 2015




impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

 
# 51, 52, 53 - THELONIOUS MONK




Fotografia de Lawrence Shustak



 
Monk e a baronesa Pannonica de Koenigswarter (Nica) no seu Bentley

 

 

Os óculos com aros de bambu de Monk. Os chapéus de Monk: a boina basca; o gorro de astrakan; um barrete de lã com borla; ora a calote de mandarim, ora o cone de palha dos tancareiros chineses, até mesmo – oh heresia – o pork pie hat de Lester. A perna de Monk a pedalar com espasmos de cão pulguento; Monk a levantar-se a meio dos solos de Charlie Rouse para dar uns volteios de dança esquisitos – é sabido à saciedade que Thelonious Monk era um excêntrico e se fosse hoje não faltariam diagnósticos patológicos para etiquetá-lo e comiserá-lo.

Actual, e quem sabe se eternamente, entronizado como um dos ídolos supremos do tabernáculo do jazz, custa compreender como foi tão estranhada e desacreditada toda a década inicial da trajectória de Thelonious Monk. Do grupo de subversivos que desde a alvorada dos anos 40 se acoitava no marginal Minton’s Playhouse, (lá longe, na rua 118, bem encastrado no Harlem) a conspirar jam sessions de um novo jazz – o bebop – Monk foi aquele que sempre se pôs de lado. Só se sentava ao piano depois de todos irem embora até que, já raiando o sol, o paciente Teddy Hill, dono da casa, lhe suplicasse que queria ir dormir.

Fácil seria invectivar a suposta surdez dos coevos, reputando Monk como um génio incompreendido. Incompreendidos seriam então todos os beboppers, de modo que o busílis era efectivamente o pianista, a sua presença taciturna e o solipsismo da sua música, capazes de o categorizar como a mais misteriosa figura do jazz. “Misterioso” é, aliás, o apropriadíssimo título de uma das composições de Monk que, tal como as restantes peças concebidas pelo seu engenho, tem o condão de confundir os leigos, para quem estas obras são tão fáceis de ouvir e trautear, face às complicações de relojoeiro que nelas intrigam os seus intérpretes. 

Demorou, por isso, Thelonious Monk a convencer o jazz em particular e mundo em geral que “o intervalo de segunda menor era um recurso e não num defeito” tal como sintetiza o crítico Gary Giddins. Para esta dificuldade contribuiu o facto de as suas partituras serem harmonicamente erráticas, às vezes aparentarem ter notas a menos ou fora de lugar, de apresentarem estranhas quebras entre compassos ou uma progressão hesitante. Depois ouvia-se Monk explana-las ao piano e o caso agravava-se, dado o a sua abordagem pouco fluente, o seu estilo bastante percussivo, chegando a bater nas teclas de dedo esticado, que qualquer estudante julgaria de tosco.

Mas há uma atitude no jazz que é raríssima fora dele, que é a de os veteranos darem a mão aos debutantes capazes de os suplantarem; assim foi que Coleman Hawkins, o pai-de-todos do saxofone tenor, integrou Thelonious Monk no seu quarteto, em 1944. Depois veio o contrato com a Blue Note – comprovando a insuperável intuição de Alfred Lyon – que lhe permitiu liderar as suas formações. Estava, pois, a carreira de Monk a descolar quando as autoridades nova-iorquinas, com a contumaz solicitude com que puniam os negros, sobretudo esses junkies do jazz, o castigaram pela eventual posse de uns charros da maneira que mais feria os músicos: retirar-lhes a licença de cabaret, impedindo-o assim de actuar em estabelecimentos com venda de álcool.


 

 

Brilliant Corners

1957
Riverside / Universal Distribution
Thelonious Monk (piano), Sonny Rollins (saxofone tenor), Ernie Henry (saxophone alto), Clark Terry (trompete), Oscar Pettiford (contrabaixo), Paul Chambers (contrabaixo), Max Roach (bateria).

 

 
 
Durante este longo período de 1951 a 1957, embora permanecesse quase secreto para o público, o prestígio de Thelonious Monk aumentou junto dos pares. De tal modo que em 1956 a Riverside edita “Brilliant Corners”, onde o pianista se rodeia de uma corte de notáveis. Só alguém com a robustez psicológica de Sonny Rollins sobreviveria às 25 tentativas, nenhuma perfeita, de resolver o tema que dá nome ao disco, sem se abespinhar com o seu compositor. Também só um baterista de “braço às armas feito” como Max Roach rolaria sem infortúnio pelos boqueirões rítmicos de “Bemsha swing”, onde um Clark Terry, aparente peixe fora de água, se faz à vida com denodo. Antes deste tema, como calmaria que antecede a procela, Monk comete “I Surrender, Dear” a solo; em 5 minutos e meio foi como se refundasse a história do piano no jazz. O disco calou fundo e ainda hoje, lá para a quarta ou quinta audição mais atenta, é quando começam a vir à superfície melódica, aparentemente plácida, os assombros harmónicos escondidos nas suas profundezas.
 

 

Thelonious Monk Quartet With John Coltrane at Carnegie Hall
1957 (2005)
Blue Note - 35173
Thelonious Monk (piano), John Coltrane (saxofone tenor), Ahmed Abdul-Malik (contrabaixo), Shadow Wilson (bateria).

 


No ano seguinte, 1957, Thelonious Monk participou em quarteto com John Coltrane em vários trabalhos, nomeadamente num evento no Carnegie Hall em celebração do Dia de Acção de Graças. Da sociedade entre estes dois titãs só havia uma edição de 1961 que compilava o material remanescente de três sessões de estúdio e de uma pequena parte dos recitais no Five Spot Café. Em 2005 o arquivista Larry Appelbaum, reparou numa caixa entre as mais de 50.000 fitas magnéticas da coleção da Voice of America doada à Library of the Congress – havia finalmente sido achada a mítica gravação daquele concerto. Não bastou que Appelbaum tivesse cometido feito equivalente à descoberta da câmara dos faraós que se diz escondida na Grande Pirâmide: o tesouro estava intacto e incorrupto.

Por esta altura Coltrane acabava de gravar o seu primeiro disco decisivo: “Blue Trane”, depois de ter participado no primeiro grande quinteto de Miles Davis para a Prestige; em menos de um ano envolver-se-ia com Davis no portentoso “Kind of Blue” e gravaria “Giant Steps” em nome próprio – é deste estofo que se originam os mitos… Monk por seu lado havia regressado às actuações ao vivo após a malvada interdição, e com a tardia idade de 40 anos talvez fosse, naquele momento, o músico mais adorado na cidade. A resolução do jovem e a bem-aventurança do mestre produzem uma concordância musical que se aproxima magnificamente do êxtase. A índole introspectiva de Coltrane combina com as arestas harmónicas de Monk, como se cada um tivesse encontrado no outro a tradução exacta da sua linguagem. Nunca o jazz seria tão instantâneo e fulminante como nestes anos!

 

 

Criss-Cross
1962 (2003)
Legacy / Columbia – 63537
Thelonious Monk (piano), Charlie Rouse (saxofone tenor), John Ore (contrabaixo), Frankie Dunlop (bateria).

 

 

Em 1963 não era só entre os adeptos mais fervorosos de Thelonious Monk que se fomentava a convicção de que ele teria lugar entre Debussy e Bartok e ao lado de Ellington na história das composições para piano do séc. XX. Durante a década de 40 criara uma constelação de temas que não tardaram a ser elevados ao estatuto de standards, no final dos anos 50 impusera-se na cena do jazz como uma voz ao mesmo tempo idiossincrática e propicia a fazer escola. Nada lhe faltava, portanto, quando entrou em estúdio para “Criss-Cross”, o segundo disco do seu contrato com a Columbia.

Pessoalmente cada vez mais ensimesmado, Monk não se entregava porém aos delíquios de intransigência do artista maldito, cedendo portanto aos pedidos da Columbia para enxertar temas mais consensuais no alinhamento da obra. Eis então um Monk descontraído que mescla reinterpretações de clássicos de sua autoria com outros do cancioneiro popular americano como “Tea For Two” ou “Don’t Blame Me” – em nenhum deles, no entanto, se ouve um acorde de cedência. Charlie Rouse, saxofonista que não chegou a ter pedestal, há-de ter fornecido à música de Thelonious Monk melhor e mais persistente complemento do que qualquer outro, acompanhando o pianista no decurso de 10 anos. Aqui ele responde às interpelações com sensatez mas sem subserviência, num equilíbrio que só uma certa intimidade musical logra alcançar. Mas o que surpreende em “Criss-Cross” é consistência do swing, intenso e leve, à maneira da melhor tradição, como se Monk fechasse a cúpula da sua obra de forma circular, ou seja, retomando umas origens nunca dantes reivindicadas.

As notas originais do disco são da autoria de Nica de Koenigswarter, a baronesa do jazz, que mereceria um capítulo na história do género. Foi ela quem acolheu e protegeu Monk na fase final da sua vida, quando as nuvens da melancolia lhe adensaram a misantropia e quando a sua realção com a realidade (o que quer que isso seja) se foi tornando ainda mais volátil que o habitual. Com licença poética pode-se dizer que Thelonious Monk não conheceu a decadência porque foi desaparecendo num silencioso fade out.

 


 

José Navarro de Andrade






1 comentário:

  1. Deste, todos têm tudo.
    Vou colocar o 52 pode ser que de Marte alguém ainda não o tenha.

    ResponderEliminar