quarta-feira, 10 de junho de 2015

Terra nullius, a outra Austrália.

 
 
 
 
 
Há já algum tempo, falei aqui de raspão de Sven Lindqvist, a propósito de Alice Seeley, Alice no coração das trevas. Aludi, nessa altura, ao livro de Lindqvist sobre o Congo, Exterminem todas as bestas.
 
 
 
      
      Acaba de sair outro título de Lindqvist. Terra Nullius. Viagem aos Antípodas, editado pela Tinta-da-china, é o relato de um périplo pela Austrália. Bastante diferente da visão edulcorada – e, convenhamos, bem-disposta e tonificante – que Bill Bryson nos apresenta em Na Terra dos Cangurus. A lenta destruição dos aborígenes – que, no fundo, constitui o tema central do livro de Lindqvist, profundamente informado, com uma vasta bibliografia – já dera, de algum modo, o mote a Songlines/O Canto Nómada, de Bruce Chatwin. Ainda assim, onde o tema é tratado de forma mais dolorosa e pungente é num filme de 2002, chamado Rabbit-Proof Fence  no original. Creio que foi traduzido cá com o título A Cerca ou A Vedação. O filme conta a história real de três raparigas que, num certo dia do ano de 1931, decidem fugir da reserva onde estavam internadas, para regressar às suas famílias de origem. Durante nove semanas, percorreram 2.400 quilómetros, ao longo de uma vedação tão vasta como um continente.
 
 
 
 
         A Austrália é dividida por várias redes de arame farpado.  Em 1901, iniciou-se a construção da  Rabbit Proof Fence, e foi essa que as meninas do filme percorreram. Outra, situada no lado oposto do país, é a Dingo Fence. Originalmente, tinha cerca de 8.614 quilómetros. É uma das mais extensas construções algumas vez feitas pelo homem. Foi erguida entre 1880 e 1885 para evitar que a sobrepopulação de lebres e coelhos invadisse o território adjacente.  A partir de 1980, foi substancialmente reduzida, tendo actualmente cerca de  5.614 quilómetros. Com o tempo, a cerca australiana provocou uma catástrofe ambiental, ao criar dois ecossistemas distintos, impedindo a livre passagem de animais e outros seres humanos.  Mais: ao que parece, a biodiversidade é muito maior do lado onde existem dingos, prova provada de que estes predadores são essenciais para o equilíbrio ecológico daquelas planícies áridas.  
 

 
         O livro de Lindqvist fala doutras catástrofes. Sobretudo, daquela que levou a que Uluru tivesse passado a chamar-se Ayers Rock, num cortejo de desgraças, miséria e álcool que acompanhou o extermínio das comunidades autóctones. As coisas mudaram um pouco, mas talvez só na superfície. Actualmente, Ayers Rock voltou a chamar-se oficialmente Uluru, e não é possível escalá-lo sem respeitar as crenças que os aborígenes têm naquela montanha de cores cambiantes.
 
 
 
       
       No belo prefácio que acompanha o livro, Carlos Vaz Marques, o organizador desta magnífica colecção de livros de viagens editada pela Tinta-da-china, diz que Lindqvist se enquadra naquilo a que convencionou chamar-se, a partir do título de um livro de Bruckner, «o remorso do homem branco».  Tenho algumas dúvidas de que Lindqvist aprecie ser assim enquadrado e retratado, uma vez que o livro de Pascal Bruckner, O Remorso do Homem Branco, a par de outras obras saídas mais ou menos na mesma altura, como Pour en finir avec la repentance coloniale, de Daniel Lefeuvre, vem criticar o sentimento de culpa que os ocidentais alimentam face ao seu passado colonial. Ora, Terra Nullius situa-se nos antípodas desse remorso, mesmo que acabe por reflecti-lo, involuntariamente. Pelo contrário, Terra Nullius aborda à saciedade os desastres do passado colonial. De forma empenhada e militante, sem dúvida, mas tremendamente lúcida e informada. Sven Lindqvist vai aos confins do deserto vermelho, atravessando planuras áridas, só entrecortadas por arbustos espinhosos e  densas nuvens de pó. Terra Nullius. Viagem aos antípodas, um livro excepcional.
 
António Araújo  

1 comentário:

  1. Hi Antonio,

    I'm searching pics for an old professor who is going to publish his textbook on the world history of art in China. I was wondering could I use the second photo (the X-ray man) from this article to illustrate the cave paintings in the Oceania. Since there is no budget for this publication, and the book is not profitable, my professor might not be able to pay too much for this pic. I would appreciate if you could give permission to use your photo! There will be credit pages at the end of the book. Thank you!

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