quinta-feira, 27 de agosto de 2015





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

# 68 - HERBIE HANCOCK

 
 

 
“I think of myself as a jazz musician, because that’s my foundation”, afirmou Herbie Hancock em 2010 a propósito do seu último trabalho “The Imagine Project”. Contudo, ele prossegue o raciocínio dizendo que ao definir-se deste modo dá consigo separado do resto da comunidade musical; efectuando o subsequente passo cartesiano, deduz ainda que caso se designasse como “músico”, ficaria apartado da grande parte da humanidade que não pertence a esse grupo. Como é óbvio, Hancock conclui por se afiançar simplesmente como “um ser humano”.
A mais premente inferência que se pode retirar desta reflexão, digamos assim, é que Herbie Hancock, de tanto abrir os braços para que tudo caiba neles, se institucionalizou. Em contrapartida, esta estrénua vontade de consenso ofereceu-lhe, pelo menos desde o final do século passado, um estatuto senatorial e fê-lo receptáculo de sucessivas comendas, cortesias e funções honorárias – além de um Grammy, em 2008.
Há, portanto, que retroceder às fundações para descobrir o Herbie Hancock que importa, aquele que precisamente se distinguiu da restante humanidade, pela obra e pelo génio. Talvez seja mesmo necessário ir ter com o catecúmeno de 23 anos, que irrompeu na cena do jazz em 1963, convocado pela mão segura de Miles Davis a integrar o seu histórico “Segundo Quinteto” – nem a Gata Borralheira teve debute mais feliz… Convêm, no entanto, esclarecer que o viçoso pianista não viera do éter, pois no ano anterior ao seu recrutamento por Davis havia lançado uma obra de inusitada maturidade (“Takin’ Off”), onde ele e o também promissor Freddie Hubbard eram tutelados por Dexter Gordon no saxofone tenor.
 
 

 
Maiden Voyage
1965
Blue Note - 84195
Herbie Hancock (piano), Freddie Hubbard (trompete),
George Coleman (saxofone tenor), Ron Carter (contrabaixo), Tony Williams (bateria).
 
Poderá parecer exorbitante, mas para que o historial do “Segundo Quinteto” de Miles seja completamente narrado, há que acrescentar-lhe o episódio dos dois discos protagonizados por Herbie Hancock: “Empyrean Isles” de 1964 e “Maiden Voyage” de 1965. Gravados com 10 meses de intervalo, são inseparáveis no itinerário conceptual: ambos partilham semelhante inspiração náutica e atmosfera marítima. Só isto seria já novidade na criação do jazz: uma obra, um par delas, com enredo temático. Porém, o mais fascinante desta dupla de discos não é a sua originalidade, como era de regra à época – a fractura como nota dominante da década de 60 – mas a sua insólita forma de continuidade. Neles se inventa uma história alternativa: como seria o jazz modal sem Miles Davis? A pergunta tem mais do que um sentido.
O primeiro nexo é que à imagem dos colegas de trabalho que depois do serviço vão beber um copo juntos, também Herbie Hancock reuniu a formação de Miles… sem Miles. Aliás, “Maiden Voyage” aprimora e completa as propostas de “Empyrean Isles”, pelo simples e nada despiciendo facto de acrescentar mais um sopro ao grupo anterior, o saxofone tenor de George Coleman – o único “milesiano” que não comparecera antes. Isto faz com que à partida a situação de Freddie Hubard seja tão ingrata como a do intruso que penetra numa festa privada. O trompetista resolveu o óbice da forma mais inteligente: em vez de se juntar a eles, contrasta com eles; “Maiden Voyage” desprende uma música macia e graciosa, Hubbard é ressonante.
À interrogação sobre um outro percurso para o jazz modal, encontra-se resposta decisiva na arte de Hancock em inventar inesperadas progressões harmónicas. Mas outra chave, que acabou por determinar a carreira futura do pianista, é o seu insuperável condão para compôr peças trauteáveis, quase como se fossem canções. De modo que boa parte dos temas de “Maiden Voyage” deu logo entrada no cancioneiro do jazz – e com eles Herbie Hancock no galarim.
 
 
José Navarro de Andrade
 
 
 

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