quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Ingagi: o fim da macacada.

 
 
 
 
Ontem escrevi sobre o acaso feliz de se ter resgatado Atrás da Porta do fim de uma cassete que Francis Hime deu a Roberto Menescal, com músicas para Elis.
Outro acaso feliz foi o nascimento da Lego, que segundo parece foi criada por um dinamarquês fabricante de móveis que, devido à escassez de madeira nos tempos da Grande Depressão, se pôs a fazer peças de plástico, corria o ano de 1934. Hoje é a marca comercial mais conhecida do mundo. Um acaso feliz.
Um outro acaso ainda mais feliz foi ter conhecido o Ico, há muitos e muitos anos, longe de qualquer depressão, grande ou pequena. No outro dia, mandou-me programas de cinema, chamando-me a atenção para o mais feliz dos acasos: o filme Ingagi, da autoria de William Campbell (um realizador tão marcante que nem sequer tem direito a uma entrada na Wikipedia) 
Ingagi foi o acaso feliz da Grande Depressão, muito mais do que as infantilidades da Lego. Bem, Ingagi é uma infantilidade pegada do princípio ao fim. Mas foi um sucesso de bilheteira, fazendo a brincadeira de 4 milhões de dólares no ano seguinte ao crash de 1929, ou seja, em 1930. A história da produção desta película é uma maravilha, metendo burlas maiores do que as do Alves dos Reis, que o Ico biografou num dia (particularmente) feliz. O filme foi apresentado como uma película «etnográfica», rodada na própria da África. Mais precisamente, no Congo. A fita, apesar de puxadota, foi exibida entre nós, com a indicação de que as filmagens decorreram nos Congos, belga e lusitano.
 
 
 
Na verdade, a equipa de filmagem nunca saiu de Los Angeles. Foi aí, juntando pedaços de outros filmes (entre 1915 e os anos 20, não sei porquê, houve uma tara por filmes com macacos), que despacharam a coisa. A par do copianço, fizeram-se algumas, poucas, filmagens originais, o Congo na Califórnia. Numa das cenas, entra um leão, ferocíssimo, que mais tarde se veio a descobrir ser «Jackie», o leão da Metro, alugado para a feitura de Ingagi. A fita, já se disse, apresentava-se como o documentário de uma expedição ao Congo, aventura de Sir Hubert Winstead, da Royal Geological Society. Mais tarde, uma investigação topou que não havia nenhum Sir Hubert… A aldrabice do filme, verdadeiramente monumental, e descrita aqui ao pormenor, passou por colocar no papel de pigmeus africanos crianças negras dos subúrbios de Los Angeles, entre outras manigâncias. Mas o que notabilizará Ingagi, para todo o sempre, é a sua marotice sexual. Apesar de ter quase cem anitos, estamos em crer que Ingagi jamais passaria no Avante!  É que a grande atracção do filme consiste num tema que ainda hoje atrai e fascina os cientistas e outros tarados: sexo entre mulheres e animais, ou vice-versa. No caso, era uma jovem negra (melhor: uma actriz branca com o corpo pintado de negro…) que se envolvia intimamente com um gorilão peludo. Os cartazes promocionais apresentavam a fita como "an authentic incontestable celluloid document showing the sacrifice of a living woman to mammoth gorillas!"
 




Fósforos Ingagi, um filme incendiário
 
 
Choveram processos sobre a empresa produtora de Ingagi, a Congo Pictures. Não por causa da mulher e do macaco mas devido às inúmeras traficâncias feitas na realização deste mono-mento cinematográfico (por exemplo, todas as cenas dos gorilas foram filmadas num jardim zoológico…). A relação amorosa entre a bela e a fera não causou censura, pois os tempos eram bem mais liberais do que por vezes se pensa. Muito provavelmente, o público, sempre ávido destas lubricidades, encheu salas só por causa da macacada erótica, bastante mais inventiva e original do que as patéticas Sombras de Grey.
Obviamente, esta paródia animalesca tinha que acabar mal. Por causa da brincadeira fílmica, as autoridades intervieram. Foi aprovada legislação censória, e apertada, para acabar com novas perversões literalmente selváticas. Mas o êxito de Ingagi desbravou, a golpes de catana, caminhos novos na cinematografia exótica e florestal. Diz-se que King Kong só viu a luz do dia graças a Ingagi – e também em King Kong, ainda que mais veladamente, o amor simiesco é uma temática assaz explorada.
Actualmente, King Kong é recordado, objecto de remakes, visto como um marco da 7ª Arte. A obra seminal, Ingagi, caiu no esquecimento. Lembramo-la aqui justamente por isso. Na Internet, mais precisamente no YouTube, é possível ver alguns trechos – e perceber ao fim de segundos que o filme é pouco melhor que horrível. Até por isso, merece ser recordado.
 
António Araujo
 

          

 

 

 

 

4 comentários:

  1. Não foi Hollywood que introduziu os macacos no imaginário erótico. Os ibéricos dos séculos XVI e XVII, incluindo um jesuíta, deram um contributo fundamental. Não demos só novos mundos ao mundo, demos também macacos à ficção. É de ler um artigo recente do El País sobre o assunto. «Nuestros Hermananos» não brincam quando se trata de valorizar o seu património cultural:

    http://elpais.com/elpais/2015/08/17/eps/1439807835_497538.html

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    1. Muito obrigado, vou ver esse artigo!

      Cordialmente,

      AA

      António Araújo

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  2. Fui pesquisar o IMDB.
    Pois este está lá e também está o "Son of Ingagi".

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    1. Exacto, era para dizer isso no texto, pois frequentemente se confunde «Ingagi» com «Son of Ingagi», um filme bastante posterior. Obrigado!

      Um abraço cordial,

      AA

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