terça-feira, 8 de setembro de 2015

O incêndio da Universidade dos Açores e a ficção.

 
 

 
 
Este Verão em Ponta Delgada comprei o livro Memórias e Reflexões, de Machado Pires (Letras Lavadas, 2015), como faço com todos os livros do autor. E, como acontece sempre também, li-o por inteiro. Para mais, gosto de livros de memórias.
Num dos capítulos, Machado Pires aborda o famigerado incêndio da Universidade dos Açores em 1989, procurando – e com justificada razão – deixar limpa a sua própria memória. Nada mais natural.
Ao fazê-lo, porém, escreve a dada altura:
“O agente A. [da Judiciária] que ia contactando comigo, disse-me, após meses de investigação, que estava desapontado com a sua instituição, que era preciso ir mais longe, talvez mesmo do outro lado do Atlântico. O agente A. foi transferido para o Porto. O director da P. J. também mudou. Este novo director veio a minha casa pessoalmente dar-me conta do andamento do processo, pois eu pedira informações, após silêncio prolongado.”
De seguida, Machado Pires assevera não ter recebido mais informações sobre a investigação. “O caso viria a ser arquivado, de acordo com o ofício dirigido ao Reitor [ao próprio Machado Pires, isto é], com data de 21 de Fevereiro de 1991, referindo-se ao Processo Nº 1092/89, classificado de “fogo posto”.
E tenho de continuar a citar:
“Com data de 15 de Fevereiro de 1991, portanto seis dias antes, o Correio da Manhã (Lisboa) trazia informações sobre o incêndio, em artigo intitulado “Querem “apagar” o fogo que destruiu há anos a Universidade dos Açores”, assinado por Valdemar Pinheiro. O texto fala do “guarda atacado”, de “um telefonema misterioso”, de “separatistas treinados na Líbia”, de um “estranho assalto”.
Acrescenta Machado Pires não se pronunciar sobre a validade das informações alegando não conhecer as fontes das mesmas; declara não ser seu objectivo “cultivar sensacionalismos nem acusar ninguém”. E prossegue: (p.84). “Mas fica para a história dos Açores um facto por explicar, envolto em sombras e dúvidas, e que destruíra, consideravelmente, património açoriano. Um facto que foi utilizado contra mim de forma injusta.”
Tudo bem, tudo normal, se não estivessem claramente referidos nas citadas passagens dois factos que levantam uma questão séria, ao menos para mim: o desapontamento do “agente A.” com a sua instituição pois, segundo ele, “era preciso ir mais longe, talvez mesmo do outro lado do Atlântico”; e a reportagem do jornalista Valdemar Pinheiro, no Correio da Manhã, onde se menciona “um telefonema misterioso”.
Ora esses dois elementos, aparentemente inócuos, apontam para mim, como o antigo Reitor da Universidade dos Açores muito bem sabe. O problema resulta claramente e em grande parte do mau jornalismo reflectido nessa reportagem do Correio da Manhã, a que já voltarei. Antes disso, porém, corrigirei Machado Pires num ponto fundamental. Se “o agente A” foi transferido para o Porto, não abandonou o caso. Tanto assim é que solicitou uma audiência comigo que ocorreu precisamente nessa cidade. Telefonou-me ainda em Ponta Delgada a pedir-me uma conversa, mas fê-lo precisamente na véspera de eu deixar os Açores de regresso aos EUA e, por isso, era nesse momento impossível um encontro. Perguntou-me então quando voltaria eu a Portugal. Como eu tinha um colóquio agendado para o Porto dali a meses, ficou o encontro combinado para essa cidade. E agora nova correcção a Machado Pires: foi depois duma entrevista comigo de duas horas que o caso ficou definitivamente arquivado. Mas isso aconteceu – note-se – precisamente porque, quer “o agente A” tivesse sido o autor da teoria do “já está a arder” desse telefonema supostamente “misterioso”, quer ele simplesmente tenha seguido as pistas que lhe foram sugeridas por outrem e em que ele terá posto alguma fé, segundo sugere Machado Pires, na conversa comigo quaisquer laivos conspirativos desmoronaram num ápice. A teoria era tão estapafúrdia, tão baseada em imaginação incrivelmente mal informada que eu me diverti à brava a corrigir o senhor Inspector e a esclarecê-lo sobre dados básicos de que ele não fazia a menor ideia. Foram de tal ordem os esclarecimentos que lhe prestei que ele nem se deu ao trabalho de transcrever o meu longo depoimento e simplesmente encerrou a investigação. Foi o inventivo jornalista do Correio da Manhã que fez deduções (ou reproduziu informações ouvidas mas não verificadas) que chumbariam qualquer aluno num exame do primeiro ano de jornalismo. A parte que a mim se refere nesse artigo (sempre sem mencionar o nome, mas claramente levantando  suspeitas a meu respeito) é um chorrilho de asneiras. Ele poderia ter seguido as regras mais elementares da investigação jornalística ouvindo-me simplesmente. Eu, como é óbvio, ter-me-ia disposto a esclarecer-lhe as confusões por trás dessa fantasiosa teoria do “já”, tal como fizera perante “o agente A” que, depois de me escutar, não hesitou em recomendar que o processo fosse arquivado. Todavia o Sr. Valdemar Pinheiro não fez isso. E só não o levei a tribunal porque achei não valer a pena. Um dia teria o meu ajuste de contas. Vim a fazer esse ajuste contando tudo tintim por tintim numa narrativa de quase 80 páginas (“O ja…to, ou There she blows!) que abre o meu livro Quando os Bobos Uivam. Pareceu-me - e continuo a pensar ter sido a opção correcta - que a melhor maneira de lidar com o caso seria expor o ridículo de quem se meteu a lançar suspeitas sobre mim sem uma base minimamente sustentável. Diverti-me a escrever porque, para quem tiver a paciência de ler tudo, essa narrativa acaba esboçando um retrato de como as pessoas armadas em inteligentes Sherlock Holmes são capazes de repetir e deformar dados, imaginar cenários macabros e tomá-los como realidade, levantar aleivos sem qualquer escrúpulo, cair enfim nos maiores absurdos.
Num regresso a esse assunto do incêndio da Reitoria da Universidade dos Açores, a jornalista Ana Carvalho Melo, no Açoriano Oriental de 9 de Junho de 2014, refere muito resumidamente essa minha narrativa. Todavia, ou a leu demasiado depressa ou não se apercebeu de que ela merecia muito mais atenção do que lhe concedeu. E não creio estar a exigir muito. O mais curioso é que, embora Machado Pires mencione esse artigo da jornalista, parece no entanto não ter tido a curiosidade de ler o meu próprio relato. Caso contrário, teria completado e corrigido importantes informações e dispensar-me-ia de vir eu agora de novo a público. Não o faço por gosto mas, tal como Machado Pires quis limpar a sua memória – e, como eu disse acima, com razão suficiente –, também me acho com direito de manter a minha limpa. Creio, porém, que Machado Pires poderia ter conseguido o seu objectivo sem sentir necessidade de recorrer a renovadas, mesmo se apenas implícitas, insinuações sobre um colega “no outro lado do Atlântico”.
Os leitores interessados em entreter-se um pouco neste final de Verão podem deslindar o “misterioso telefonema” lendo esse meu “conto realista” com princípio meio e fim no livro Quando os Bobos Uivam (Clube do Autor, 2013). Inteirar-se-ão de como tudo acaba com “o agente A”, algo embaraçado, pedindo-me desculpa por me ter envolvido no caso e reconhecendo explicitamente que por aquela pista do “outro lado do Atlântico” se não chegaria a nada.
E isto é apenas um resumo de uma divertidíssima conversa, que chega a ter ares de surrealista.
Admito, claro que estou a publicitar o meu livro, mas convenhamos que bons motivos a tanto me induzem. Não tenho espaço para mais neste artiguinho de jornal e, de qualquer modo, não iria repetir aqui as 78 páginas de um escrito meu já publicado. Ah! Pensando bem, talvez devesse agradecer a Machado Pires a oportunidade de lembrar um pouco esse livro, algo que nunca na vida fiz com qualquer outro da minha autoria.
 
                                               Onésimo Teotónio de Almeida
 
(também publicado no Diário dos Açores)
 
 

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