sábado, 31 de dezembro de 2016

Na América, um optimista.

 
 
 
 
O meu Pai falava-me muito da electricidade que sentia nos céus de Nova Iorque, um frémito bizarro que lhe atravessava o corpo, pondo os nervos à flor da pele. Tive exactamente a mesma sensação assim que lá aterrei, no primeiro dia em que andei Manhattan abaixo, Manhattan acima. Pensei que era sugestão, herança do que ouvira do meu Pai. Vejo que estava enganado. Muitos anos antes de mim (e do meu Pai), também Italo Calvino deparou com uma «cidade eléctrica, impregnada de eletricidade», da energia invisível que paira no ar de Nova Iorque. O livro, um percurso pela América, que vai muito além de Nova Iorque, recomenda-se vivamente. Diria mesmo, electricamente.   
 
 
 
 

Perspectivas para 2017.

 
 
Trás-os-Montes, Dezembro de 2016
Fotografia de Francisco Teixeira da Mota


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

 
 
 


 
O ano que passou
saiu para comprar
tabaco de enrolar
e nunca mais voltou.
 
Ricardo Álvaro






 

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

O «Longo Terramoto».

 
 
 
 
 
 
O “LONGO TERRAMOTO”:
A crise da consciência portuguesa durante o final do século XIX
                                                                                                              
 
 
“A República, em verdade, feita primeiro pelos partidos constitucionais dissidentes,
e refeita depois pelos partidos jacobinos, que tendo vivido fora do poder e do seu maquinismo,
a tomam como uma carreira, seria em Portugal uma balbúrdia sanguinolenta.”
Eça de Queiroz, 1880
 
 
 
 
 
 
 
 
1.     A crise finissecular e a surto da literatura decadentista
 
Entre as principais obras que pertencem a essa impressionante seara crescida a partir de finais de oitocentos em redor do tema obsessivo da decadência e da crise que Portugal manifestamente sofria, como maior e candente agressividade e visibilidade no tal “longo terramoto” a que aludia o autor do Portugal contemporâneo após o trauma do Ultimatum britânico, destaquemos uns quantos títulos maiores: Alberto Sampaio, artigo “Ontem e hoje” na Revista de Portugal de Eça, 1892)[1], António Nobre, (Paris, 1892), Teixeira Bastos, A Crise. Estudo sobre a situação política, financeira, económica, social e moral da Nação portuguesa, Porto, 1894), Alberto de Oliveira, Palavras loucas (Coimbra, 1894), Teófilo Braga, A Pátria portuguesa (Porto, 1894),[2]  final da publicação d’Os Gatos de Fialho de Almeida (1888-1894), Silva Cordeiro, A Crise em seus Aspectos morais (Coimbra, 1896), Guerra Junqueiro, A Pátria (Porto, 1896)[3], Augusto Fuschini, Liquidíções políticas (Lisboa, 1896) e O Presente e o Futuro de Portugal (Lisboa, 1899), Júlio Dantas, Nada (1896), José Duro, Fel (1898), Luís de Magalhães, D. Sebastião (1898), Gomes Leal, Fim dum Mundo (1899), Sampaio Bruno, A Ditadura (Porto, 1908), António Patrício, O Fim (1909), etc.
 
 
 
 
    2.     Recomeçar o liberalismo
 
Uma série de correntes, vogas estético-ideológicas e ismos atravessam, dest’arte, o período que medeia entre o início da Crise nacional dos anos 90 até à revolução de 1910: neogarretismo, simbolismo, decadentismo, sebastianismo – branco (nacionalista), vermelho (republicano) –, pessimismo, misticismos de inspiração católica (mais exactamente neofranciscana ou neotomista), neoromanticismo historicista, além de várias vertentes do nacionalismo – o neogarretismo tem essa feição vincada, mas, como o sublinhou já Óscar Lopes, a apologia dum folclorismo retrógrado e nacionalista ia de par, no livro Palavras loucas (1894) de Alberto de Oliveira, com a apologia do voluntarismo optimista e republicano de José Falcão[4] -, complexo ideológico e tumultuoso lago de concepções e metáforas ao qual toda a intelligentzia lusa de barrete frígio se ia municiar de ideias, lugares-comuns e slogans[5], sobre um fundo de idealismo e positivismo, e que se traduzia, entes de mais, em obras voltadas para uma forte acentuação da visão da história de raiz liberal iluminista, - amplificada pela experiência essencial e determinante da Revolução Francesa (1789-1799), o que levaria João Chagas a garantir que a obra dos republicanos portugueses era simples, já que consistia em corrigir uma falta e remendar um erro: ”O nosso ideal não é construir um mundo – é apenas construir uma casa – a nossa casa – segundo o plano que nos legaram os arquitectos de 89 (...). O que temos a fazer não reclama titãs, reclama pedreiros”,[6] ou seja, assumindo de modo evidente um simples recomeçar do Liberalismo, porque neste vigorara sobretudo a feição “orleanista” da monarquia constitucional brigantina, inclinada a degenerar em sistema autoritário – foi esse o sentido do desvio ditatorial do Franquismo assumido por João Franco e o seu Partido Regenerador Liberal - aliás com o assumido beneplácito de D. Carlos e em consonância com a teorização do “engrandecimento do poder régio” do  antigo socialista e republicano da Geração de 70 chamado Oliveira Martins -, desde os anos 90, com o apoio de algumas franjas parlamentares da “Vida nova” do Partido Progressista encabeçadas pelo citado historiador.
 
 
 
Rua de O Século, Lisboa
Fotografia de Joshua Benoliel
 
 
 
Bem ao contrário, o republicanismo mais aguerrido dos anos 90 constituiria uma inegável acentuação do paradigma vintista ou setembrista do nosso longo e acidentado liberalismo oitocentista, o que é visível  tanto em Basílio Teles como em várias obras de mesmo Chagas,[7]  esta última de forte aposta no revolucionarismo que culminaria no 5 de Outubro com a implantação do regime demoliberal republicano, cuja carreira, todavia, nos dezasseis anos que duraria, ao invés do sonhado e pulcro regime redentor da Res Publica palingenésica enaltecido pelas hostes do barrete frígio lusitano, mostraria antes degradar-se no pesadelo da tal “balbúrdia sanguinolenta” profetizada por Eça de Queiroz, ou seja, essa caótica e sempre atribulada democracia frágil e sectária, entrecortada de golpes militares, intentonas revolucionárias, desordens sociais, conflitos com a classe operária e o mundo católico, vítima este da delirante sanha anticlerical de Afonso Costa –  cujo nome simbólico de “irmão Platão”, no grémio do avental, era no mínimo paradoxal –, regime cambaleando num desfile de governos que permaneceriam em funções numa média de duração de apenas três meses e meio para cada um, degolado pelas durindanas castrenses, em 1926, pelo general Gomes da Costa, prólogo fatal à Ditadura de que Salazar seria o meticuloso obreiro e arquitecto.







Em suma, é evidente que, num campo mais acentuadamente ideológico e político, o ideal republicano, neste final do século, após os dois grandes e traumáticos abalos telúricos institucionais e morais do país, que a Crise económico-financeira viria potenciar até à exasperação total e explosão revolucionária –  do Ultimatum inglês resultaria a precipitada mas fatal revolta portuense de 1891, sua consequência imediata e lógica, com alguns exílios e desterros, na Europa, no Brasil e na “costa-de-África”, para os condenados pelos tribunais militares do Porto) - oscilava entre uma opção moderada ou “girondina” (v.g., João Chagas), por oposição ao republicanismo radical, inspirado no Comité de Salut public no governo da Convenção dominada pelos jacobinos, até ao Thermidor, i.e., a opção “jacobina” (v.g., Basílio Teles), sobretudo, despojada de qualquer inspiração socialista,[8] liquidada com o suicídio de Antero e só realmente regressada ao nosso panorama ideológico e social em 1973, graças aos bons ofícios e argúcia de sagaz político alemão Willy Brandt (1913-1992), que reuniu em Bad Munstereiffel, nos arredores de Colónia, um apressado mas eficiente congresso de portugueses que fundou o nosso Partido Socialista, a tempo de assistir à revolução de 25-V-1974 sem ser devorado pelo furor das mandíbulas estalinistas de Álvaro Cunhal e dos seus sequazes.
Tudo isto derivava, no fundo, do apagamento progressivo e fatal da opção socialista de parte da geração de 70 – na qual participara inicialmente Oliveira Martins, o único socialista que lidara com operários, ainda por cima na bravia Espanha – resultante da “carência entre nós da grande indústria (que levaria o nosso partido socialista a dispersar, sem exercer uma influência proporcional às forças de que chegou a dispor”, como observara Basílio Teles no seu famoso estudo sobre a crise posterior ao Ultimatum britânico.[9]
 
 
 
 
 
 
3.     O fundo económico-social da crise oitocentista
 
Em suma, quando a Crise dos anos 90 começa deveras, o nosso país, nas suas débeis e frágeis dimensões das estruturas socioprofissionais economicamente activas,  distribuía-se, em 1890, em 61 % no sector primário (agricultura), 18,4 % no secundário (actividades industriais) e 20,6 % no terciário (serviços), com um analfabetismo geral da ordem dos 74,1 % duma população que contava com 4.660.095 habitantes, sendo este o Portugal profundo e real da nossa tosca pirâmide social de actividades e alfabetização, com uma  minoria burguesa, citadina e culta, e uma esmagadora massa rural – donde o significado realista do Zé Povinho, labrego e sem escolaridade, como nosso perfeito totem ou emblema sociológico[10] –,  com um quinto da população activa nos serviços e, como cúpula do edifício arcaizante que éramos neste periférico recanto do sudoeste europeu, empenhados na defesa e manutenção na nossa Baratária africana, e essa massa enorme de gente iletrada. Uma vintena de anos depois, em 1930, os números mostravam uma progressiva terciarização do país (37%), um ligeiro recuo do primário (46%) e um avanço do sector secundário (17%), assim como no início da década de 30, baixando ligeiramente o sector primário (21%), embora este se mantivesse o mais expressivo. Seria preciso esperar pelo começo da década de 70 para que o país deixasse de ser agrário, estando então o primário em 32,6%, o secundário em 33,2% e o terciário em 34,2%. Só em 1991, já depois da revolução do 25 de Abril o censo revelaria que o terciário era então a categoria socioprofissional mais forte, com 46,7%, o primário reduzia-se a 19,2% e o secundário (indústria) ficando em 34,1%.
 
 
 
Rua de São José, Lisboa
Finais do século XIX
 
4.     A crise diagnosticada por Silva Cordeiro (1896)
 
Neste acervo de correntes distintas e, por vezes, entrecruzadas, a obra de Silva Cordeiro merece especial atenção, até porque sendo escrita por um antigo deputado – que fora eleito pelo Partido Progressista, no Porto, tal como Oliveira Martins, nas eleições de 1887, sendo de presumir que se tivessem conhecido na câmara durante esse convívio partidário, detalhe que o autor d’A Crise em seus Aspectos morais (Coimbra, 1896),[11] todavia, nunca menciona –, transcende as baias partidárias e afirma-se, no panorama finissecular, como um dos monumentos mais relevantes do pensamento dessa época e, no que aqui mais nos interessa, como uma análise de enorme lucidez acerca do pensamento e da acção do nosso historiador, intimamente conexionados neste obra de penetrante lucidez. Nessa medida, podemos garantir que estamos diante duma obra extraordinária que goza dum estatuto em que atinge um nível que transcende as habituais e até compreensíveis limitações ou debilidades conceptuais de análise ou juízo historiográfico que embaciam a pureza dos espelhos que intentam reproduzir a realidade envolvente, até porque o estudo saiu apenas dois anos após o falecimento de Martins.
Esta obra constitui, acima de tudo, uma original análise de três vultos da nossa cultura, Herculano, “o primeiro iconoclasta”,[12] o renegado Oliveira Martins e o incoerente Teófilo Braga, acabando por ser, essencialmente, uma análise detalhada e muito completa do segundo vulto, tanto na sua acção como no seu pensamento, estilo e simbolismo, procedendo ainda a um exame atento das várias crises que se abateram sobre Portugal, os seus mecanismos, raízes e efeitos (crise financeira, bancária e política, atitude colonial da Grã-Bretanha e revolta do 31-I-1891 no Porto).
A obra inclui balancetes bancários e mapas bancários (p.79), passando depois a considerar o famoso “sindicato de Salamanca”( p.91 e ss), o grupo financeiro que detém os caminhos de ferro, e suas vicissitudes ), com atenção ao caso do financeiro Henry Burnay[13] os escândalos da bancarrota do marquês da Foz e do Banco lusitano (p. 127 e ss), a crise generalizada dos nossos bancos (pp.151 e ss), a crise brasileira e os eu impacto na nossas finanças (p.179 e ss). Encerrado este longo e fastidioso prólogo técnico-financeiro e bancário sobre a nossa crise, entra Silva Cordeiro no exame da sua segunda personagem central desta obra, o homem que foi ministro da Fazenda em 1892, em pleno fragor do terramoto nacional, aquele que agitou o fundo das nossas almas e as estreito perímetro geográfico onde tínhamos a nossa “metrópole” colonialista: “Oliveira Martins e o germanismo na política”[14]  se chama este texto medular, cuja extensão mostra bem até que ponto se está a tratar de um ponto fulcral quanto ao ideário martiniano, pois este germanismo é, de certo modo, a sua qualité maîtresse, a sua mola real, uma vez que a Ditadura como produto da orientação cesarista do nosso historiador “pertence à história pessoal e política de Oliveira Martins, pois foi ele quem deu “a essas tendências vagas uma definição literária e  expressão consciente”.[15]
 Entrámos, em suma, no vif du sujet. Todas as longas e um tanto áridas considerações anteriores sobre contas, sindicatos, grupos económicos, crise das companhias de caminhos-de-ferro e escândalos das empresas envolvidas nessas operações não passam do prólogo no céu desta drama nacional que vai envolver o ingénuo Dr. Fausto, até ali, sobretudo, ao serviço de Clio, agora ministro da Fazenda do gabinete Dias Ferreira, o seu sombrio Mefisto, e o Rei estouvadamente temerário que queria ter um partido seu, assumindo  a tarefa, a glória e o martírio final do processo do Engrandecimento do Poder Real pregado pelo ex-socialista e republicano que dirigira, nos longínquos tempos das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense (Maio-Junho de 1871), uma exploração mineira em Espanha e, agora, ainda há pouco deputado do Partido Progressista, ia descer á Cova dos Leões, onde o esperam todas as feras do rotativismno e até as da Liga Liberal e de outras camarilhas apostadas na mesma revisão radical dos cânones liberais inscritos no lábaro azul e branco da Carta, aquela que fora bandeira dos mindeleiros em 1832 – depois, na cidade sitiada do porto, cercada pelas Oitenta Mil Baionetas de que falava Herculano n’A Voz do Profeta, numa metáfora expressiva sobre a dificuldade dos combatentes cartistas, dizendo que muitos dos nossos liberais  “tinham visto de perto a face da democracia (...) por entre a selva” dessas lâminas miguelistas que tinham tido que as “partir uma a uma nas mãos, para a liberdade triunfar.”[16]
Silva Cordeiro, sublinhando no seu estudo que a acção e os escritos de Oliveira Martins tinham sido de enorme importância no sentido de fazer vingar na esfera política mais influente e na orientação régia a convicção de que o país estava perdido e que só a criação dum “governo forte que restabelecesse a ordem na sociedade portuguesa anarquizada, saltando por cima das fórmulas até onde fosse necessário”, conclui que tal ideia não seria exclusivamente do autor do Portugal contemporâneo, mas que ninguém contribuira mais do que ele, após uma “longa odisseia pela história e pelos partidos”, escrevendo o Príncipe perfeito – D. João II - que queria oferecer a D. Carlos como exemplo do que devia ser “hoje um rei português”.[17] Em suma, Martins não inventara a fórmula ou a solução do partido do rei, mas ninguém contribuira tanto para que ela “se definisse e impusesse aos governantes”.[18] A oportunidade fora o ministério extrapartidário de Dias Ferreira, assim como no especial e lógico destaque que lhe dá Silva Cordeiro, sublinhando que a ideologia e a postura políticas de Martins, esse “Cícero do novo reinado”,[19] representara um momento importante no drama da consciência colectiva e de que a ditadura Hintze/Franco, vigente na altura em que o livro de Cordeiro era publicado, não passaria de ser, diz ele, “apenas o prefácio”.[20] Este ponto é crucial para quem examine a descalabro do nosso sistema libero-capitalista e a deriva do liberalismo, desde 1832 e 1851 para a forma ditatorial que ele iria lenta e progressivamente assumir, sobretudo desde o início da década de 90, de modo cada vez mais consciente, vincado e imperativo, prosseguindo nessa rota liberticida para além de 1910 a sua insidiosa caminhada em direcção à quase completa extirpação dos ideais de Liberdade no nosso país, culminando na autoritária “República corporativa” de matriz integralista lusitana, instituída por Salazar. [21]
 
 
 
 
 
O recurso à obra de Silva Cordeiro, que tanto nos tem amparado nesta nossa interpretação critica do sistema de pensamento martiniano, justifica-se como auxiliar da nossa própria pesquisa na medida em que, precedendo algumas raras reticências diante dele que depois seriam feitas por alguns estudiosos da sua obra, como António Sérgio, e isso por duas razões evidentes. por um lado, porque o autor da Crise em seus Aspectos morais descortinou com clareza o pendor autoritário e antiliberal ( em sentido mais amplo desta expressão) de Martins, e o seu cariz cesarista, de que a sua falhada experiência como reformador das Finanças no governo extra-partidário mas igualmente votado a estabelecer o tal “partido do rei” – bastará pensar na sua invenção da lei iníqua estabelecendo a eliminação das liberdades da imprensa e o desterro colonial para os “anarquistas”, a lei de 21-IV-1892, numa altura em que o nosso historiador fazia ainda parte do elenco desse ministério que aprovou essa monstruosidade jurídica -, o que permite que Silva Cordeiro insista no facto da reacção politica de D. Carlos à monarquia constitucional se conter implícita nas obras de Oliveira Martins.[22] Depois, Silva Cordeiro viu com meridiana clareza que o franquismo – mola real da ditadura então vigente quando publicava o seu livro – provinha do pensamento e da acção de Martins, cuja ligação directa com a acção do deputado e futuro dirigente político era não só natural mas lógica, já o franquismo remata na prática tudo quanto o martinismo concebera como teoria. E, sobretudo agora, que esta dementada figura autoritária da nossa história, o ridicularizado o Xuão das troças jornalísticas,  parece reencontrar quem o defenda e aplauda com positiva e até louvável, parece-nos importante lembrar que no termo do século XIX já havia quem tivesse percebido que os cegos alcatruzes da tirania avançavam no sentido de desviar os portugueses das águas vivas dos ideais de Liberdade para os sombrios atalhos da longeva ditadura salazarista que nos frustraria o crescimento de Portugal como país europeu de homens livres, sendo necessária uma longa e criminosa guerra colonial , desde 1961 a 1974, para que a nossa Baratária colapsasse e, com ela, se desmoronasse o instrumento estatal e político que a justificara e prolongara, arredando Portugal da construção de uma Europa unida que desde o Tratado de Roma (22-III-1957), se vinha erguendo, enquanto o nosso autismo ultramarino nos divorciava dessa comunidade tão urgente como necessária.
                                                                          
Monte Estoril, 11-XII-2016
 
João Medina
 






[1] Sobre este ensaio de A. Sampaio (1841-1908), veja-se “O historiador Alberto Sampaio crítico da expansão portuguesa”, no nosso Eça de Queiroz e a Geração de 70, Lisboa, Moraes, 1980, pp.205-219, com um a bibliografia sobre este autor, pp.217-219.


[2] Sobre esta obra de Teófilo Braga (e a resposta acerada que lhe deu o crítico brasileiro Sílvio Romero), veja-se o que dizemos no nosso capítulo “O Sebastianismo - exame crítico dum mito português”, na nossa História de Portugal, vol.VI (“Judaísmo, Inquisição e Sebastianismo”), pp.251-356, maxime pp.312-318 e 381 (inclusjve, no mesmo, a polémica de Sílvio Romero com Teófilo).


[3] Neste poema faccioso e de estilo bombástico, espécie de “Dies Irae” trovejado contra a monarquia e o monarca que a encarnava, obra culminante da retórica do ódio republicano contra o pessoal e a cúspide corada do sistema constitucional, o estridente versejador Guerra Junqueiro faz entrar D. Carlos e Oliveira Martins, além de outras figuras da corte, porventura João Franco (Ciganus) e Carlos Lobo de Ávila (Veneno). Martins é designado neste drama em verso como o cronista Astrologus, definido como uma alma dupla, “contraditória, ondeante, incerta, ambígua, obscura” e, ao mesmo tempo um ambicioso, “um lunático, imbecil, místico iluminado”, embora a verdadeira face seja a “ambiciosa, a gulosa, a mesquinha,/ A refalsada”(p.51), explicando ao Rei quem é aquele doido que lhes aparece e delira: é Portugal, cuja história Astrologus narra em tons ao mesmo tempo heróicos e idílicos (pp.55-63). O Doido exclama: “O reino é podre...O rei é podre./O, que fedor! Oh, que fedor!”(p.134), exclamação que repete obsessivamente. Surge o espectro de Nun´Álvares (pp.137ss), espécie de encarnaçãoa Encoberto, ele e o Doido olham-se, e, por fim, o drama encerra com o Doido a gritar enquanto vê o castelo real arder (pp.157 ss):. “Foi Deus que deitou fogo àquilo tudo.../Quem no há-de apagar?”(p.167). Tudo é consumido pelo fogo, da corte  restam apenas os cães e das cinzas nasce um corpo angélico de mulher, que é a alma mesma do Doido (p.168), e que se lhe une  (p.170). O poema remata num apocalipse de mau gosto, muito à maneira espalhafatosa de Junqueiro. Custa a crer que esta obra, incessantemente reeditada desde 1896, tenha tido tantos leitores entusiastas e que o seu autor passasse por um grande lírico e um profeta. António Patrício (1878-1930) publicaria em 1909 um “Dies Irae” apocalíptico bastante mais interessante, descrevendo em tons trágicos a queda da monarquia: O Fim. História dramática em dois quadros, Porto, Livraria Chardron de Lello & Irmão, 1909. Em 1906, um poeta panfletário, Edo Metzner, poetastro anarquista, editaria um poema de veia semelhante, No Agonizar da Monarquia. Ao último dinasta de Bragança, Lisboa, 1906. Eduardo Henrique Metzner (Lisboa, 1886 – 1922), casapiano, jornalista e tuberculoso, escreveria ainda Deportados (1906), contra o degredo dos marinheiros revoltados da literatura apocalíptica antimonárquica dizemos no nosso estudo “Oh!...A República!...”, maxime pp.25 e ss (capítulo “O Ódio santo: Apóstolos, Messias e Mártires”). Quanto à carreira política de Junqueiro, inicialmente feita debaixo do lábaro do Partido Progressista, que ele representou nas cortes por alguns anos, leia-se o seu relato justificativo da sua evolução no extenso artigo que publicaria, poucos meses antes da revolução de 1910, no jornal A Pátria (Porto), de 23-IV-1910, intitulado “A execução duma quadrilha”, extenso documento reproduzido no seu livro Horas de Luta (pref. de Mayer Garção), Porto, Livraria  Lello,  s.d., pp.135-193, ao qual, noutro local deste presente livro, prestamos atenção  porque nele G.J. refere explicitamente O. Martins e D. Luís I. Ainda sobre esta obra poético-política de G.J., veja-se o que escrevemos no nosso livro A Caricatura em Portugal. Rafael Bordalo Pinheiro, pai do Zé Povinho, Lisboa, Edições Colibri, 2008, pp.152-3.


[4] Veja-se o capítulo sobre A. Oliveira no estudo de Óscar Lopes, Entre Fialho e Nemésio, Lisboa, INCM, vol. I, 1987, pp.66 e ss (maxime p.69: José Falcão). Estes dois volumes de O. Lopes são, sem dúvida, uma das mais primorosas e atentas histórias da cultura portuguesa nos sécs. XIX/XX. Deve-se a Augusto da Costa Dias um estudo, A Crise da Consciência pequeno-burguesa – I. O Nacionalismo literário da Geração de 90, Lisboa, Portugália, 1969 (2ª ed.: 1978), infelizmente eivada duma visão sectária marxista de cepa estalinista.


[5] Embora quase sempre perdendo o seu tempo em anticlericalismo de “faca e navalha”, a propaganda republicana, como no caso dos livrinhos em geral de divulgação panfletária da Propaganda. tem, a seu lado, a acção de sólida formação político-ideológica e inegável talento literário dum grande jornalista como João Chagas (1863-1925), cujos dois livros resultantes do degredo em Angola, Diário de um Condenado político  (1892-3) e Trabalhos forçados (1900), constituiriam uma das arcas onde os adeptos da República iam alimentar-se de pão ideal, sem esquecer uma imprensa partidária de enorme vitalidade e coragem, na qual avultavam aguerridos títulos como A República portuguesa, A Marselhesa, O Século, A Vanguarda, A Voz Púbica, etc., além das revistas satíricas de grande impacto, como as de Rafael Bordalo Pinheiro e do seu filho Manuel Gustavo, Pontos no ii e A Paródia ou os órgãos satíricos mais novos como, v.g.,  A Garra de Celso Hermínio.


[6] João Chagas, Diário de um Condenado político. 1892-93,  2ª ed., 1913. p.79.  A primeira edição desta obra saíra em 1894. Ela é, no campo republicano fin de siècle, uma das mais importantes reflexões político-ideológicas sobre o ideário do nosso republicanismo, assim como a reivindicação da herança liberal por parte dos nossos republicanos.  Não deixa de ser lamentável que a nossa historiografia nunca tenha dado a João Chagas – o brilhante panfletário, o fino crítico literário, o excelente jornalista, o aguerrido militante deportado para Angola após o fracasso das revolução republicana de 1891, no Porto, e por fim, o nosso embaixador em Paris após a curtíssima permanência no primeiro ministério do regime implantado em 1910, de 3-IX-1911 a 12-XI-1911, voltando a ser designado como presidente do ministério após a revolução de 1915 que derrubou a ditadura de Pimenta de Castro, num governo que não chegou a tomar posse, já que Chagas seria alvejado no comboio que o trazia do Porto para a capital, com vista a tomar conta do seu gabinete ministerial, acabando por ser substituído pelo ministério presidido interinamente por José de Castro, em funções desde 19-VI-1915, também efémero, pois terminaria a 22-VII-1915. Restabelecido dos seus ferimentos, Chagas voltaria ao seu posto diplomático em Paris, do qual se demitiria em Dezembro de 1917 devido ao triunfo do putsch de Sidónio Pais.


[7] Veja-se o folheto, de nossa iniciativa, dedicado a João Chagas e à sua carreira política, editada por ocasião do descerramento duma placa de bronze na rua com os eu nome em S. Pedro do Estoril, dedicada a este escritor, jornalista e diplomata que faleceu no Estoril em 28-V-1925: João Chagas – de Conspirador a Diplomata, C. M. Cascais, 2006, ilustr. (incluindo-se nele o folheto de Vasco Pereira, A Vida de João Chagas, de Degredado de 1ª classe a Primeiro Ministro). Veja-se ainda a bem documentada tese de mestrado de autoria de Álvaro Belmar Esteves, João Chagas jornalista e republicano, Faculdade de Letras da Univ. do Porto, 1999, ilustr., infelizmente não editada em livro.


[8] Veja-se o estudo de António Ventura Anarquistas, Republicanos e Socialistas em Portugal. As convergências possíveis (1892-1910), Lisboa, Edições Cosmos, 200O, maxime pp.15 e ss (o Partido republicano após 1891), pp.79 e ss (o anarquismo intervencionista), pp.138 e ss (a Federação Socialista Livre). Esta obra inclui ainda uma boa bibliografia sobre a matéria em causa.


[9] B. Teles, Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, p.42. Teles menciona Oliveira Martins entre os criadores deste socialismo luso que morreu de míngua num país agrário, sem operários. Sobre o tópico em causa, veja-se o nosso livro A Geração de 70: uma Geração revolucionária e europeísta, Cascais,  Instituto de Cultura e Estudos Sociais, 1999, ilustr., maxime pp.23-29 e 49-66


[10] Dos diversos estudos nossos sobre o nosso estereótipo nacional, vejam-se:  Portuguesismo(s). Acerca da Identidade nacional. Ensaio sobre as imagens de marca identitárias, os emblemas, os mitos e outros símbolos nacionais seguido de o Zé Povinho, Estereótipo nacional e autocaricatura do Português desde 1875, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2006, ilustr.., maxime pp.205-15 e 507-24; e ainda Caricatura em Portugal. Rafael Bordalo Pinheiro, Pai do Zé Povinho (2008), maxime pp.81-133.


[11] Joaquim António da Silva Cordeiro (1859-1915), A Crise em seus aspectos morais. Introdução a uma biblioteca de psicologia indiovidual e colectiva, Coimbra, F.Amado Editor, 1896. Sobre este autor veja-se o estudo que lhe dedica Sérgio Campos Matos, “Joaquim António da Silva Cordeiro”, no vol. IX (A. Monarquia constitucional), da nossa História de Portugal, Alfragide, 1993, p.181-88.


[12] Sobre Alexandre Herculano, veja-se. Silva Cordeiro, op. cit., p.16-52,  um interessante, embora às vezes caótico resumo dos ideais  e polémicas (p.e., a questão do milagre de Ourique) em que o autor de Eurico o Presbítero se envolveu, este primeiro “iconoclasta” a que sucederiam outros dois, que mais adiante S. Cordeiro estuda nesta obra, i.e., Martins e Teófilo Braga (este nas p.369 e ss).


[13] Vide S. Cordeiro, op. cit., v.g., pp.96, 99, 100, 108, 117, 123, etc.


[14] Silva Cordeiro, A Crise…, pp.229-329.


[15] Ibidem, p.239.


[16] Alexandre Herculano, A Voz do Profeta (1837), in Opúsculos. t. I, Questões públicas, Lisboa, Casa Bertrand, 1873, pp.28-29..


[17] S. Cordeiro, A Crise…, pp.240-1.


[18] Ibidem, p.240.


[19] Ibidem, p.241.


[20] Ibidem, p.240.


[21] Sobre a natureza peculiar do autoritarismo salazarista, nomeadamente a sua medula diferente dos sistemas fascistas coevos em vigor na Europa, veja-se o nosso livro Salazar, Hitler e Franco. Estudo sobre Salazar e a Ditadura, Lisboa, Livros Horizonte, 2000, maxime pp.90-184 (ideologia e mentalidade do salazarismo, autoritarismo versus fascismo, o autoritarismo organicista, católico e conservador do Estado Novo e, por fim, a síntese da doutrina e prática de Salazar).


[22] Ibidem, p.242 (“Pois todo o pensamento político do actual reinado, que se esboça contra o laissez aller do reinado precedente, não só se contém implícito nas obras de Oliveira Martins, mas proveio, nos autores que o inspiraram, dum série de causas em tudo congéneres das que em Portugal explicam semelhante retrocesso.”). Temos um estudo inédito sobre os pendores autoritaristas e cesaristas do martinismo, intitulado Oliveira Martins na Cova dos Leões.