terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A Gorongosa.


 
 

 
 
         Pelo final da minha estadia em Moçambique,  no Verão de 1972, foi-me proposta, pelo funcionário do CITMO (Centro de Informação e Turismo de Moçambique), uma visita de dois dias ao Parque Nacional da Gorongosa, situado a Noroeste da Beira, na Província de Sofala, junto da fronteira com a Rodésia, hoje Zimbabwe.
           Tratava-se de uma reserva de animais extraordinária, quase desconhecida do vasto mundo, quando comparada com as congéneres reservas do Quénia e da África do Sul, internacionalmente conhecidas e universalmente celebradas, sobretudo por meio da imprensa, da literatura e do cinema.
         A viagem entre a cidade da Beira e o Parque Nacional da Gorongosa  foi feita numa pequena avioneta, em que eu era o único passageiro, tanto na ida como na volta. Poucos minutos de vôo tinham decorrido, quando o piloto se volta para mim e me pergunta se sou aventureiro, ao que eu respondi que sim, que em princípio me considerava aventureiro. Mas que, naturalmente, dependia do género de aventura. E foi então que o jovem piloto quis saber se eu já alguma vez tinha dado umas cambalhotas no ar. E à minha pergunta sobre que tipo de cambalhotas se tratava, responde-me o piloto, em tom meio brincalhão, que ele, por vezes, gostava de fazer dar umas cambalhotas à avioneta. Quereria eu experimentar? E, sem esperar pela minha resposta, esclareceu que, em questões de segurança, não havia absolutamente perigo nenhum. Que a avioneta em que estávamos viajando já estava acostumada a esse tipo de aventuras. E eu que, desde que me conheço, sempre gostei de experimentar o sabor do exótico e do desconhecido, prontifiquei-me imediatamente para a aventura das cambalhotas.
         E foi assim que, nos vastos céus azuis de Moçambique, sem a mínima presença de nuvens, me vi a rodopiar dentro de uma avioneta, fazendo de conta que o medo natural que se apoderou de mim e o enjoo que me percorria as entranhas estavam a acontecer a um eu que não era meu, pelo que não me atrevia a pedir ao piloto que pusesse ponto final à inédita aventura das cambalhotas. Mas ele que, certamente, estava habituado a detectar os sintomas dos passageiros em circunstâncias dessa natureza, facilmente se deu conta de que tinha chegado o momento de pôr termo à minha aventura. Lida a palidez do meu rosto e o meu ar de agoniado, sugeriu-me que respirasse fundo, ao mesmo tempo que me punha duas crackers nas mãos e me pedia que as mastigasse devagarinho. E eu respirei fundo e mastiguei as crackers devagarinho e recompus-me do susto inédito e voltei à normalidade.
          Pouco tempo tinha passado, quando o piloto me diz que estávamos a aproximar-nos do Parque Nacional da Gorongosa. Que fizesse o favor de  abrir bem os olhos e que começasse a disfrutar de tanta beleza. E à medida que a avioneta ia descendo, as manadas de impalas e de zebras e de búfalos e de elefantes tornavam-se cada vez mais visíveis.
          De repente o piloto chama a minha atenção para uma coisa chamada aeroporto. É que o dito aeroporto do Parque Nacional da Gorongosa consistia apenas numa única pista de aterragem, quase escondida no meio da savana e de uma densa floresta, assim se explicando que quando procurei essa pista de aterragem o que vi foi uma manada de impalas que parecia não ter fim. De maneira que o piloto teve de fazer mais de meia dúzia de voos rasantes para afugentar as centenas de impalas da pista de aterragem, a fim de poder aterrar sem perigo para as impalas e para nós. Que visão deslumbrante e encantadora! De pelo luzidio, de cabeça alta e altaneira, de cauda embandeirada, de uma elegância indescritível, velozes como o vento, as impalas foram-se afastando em todas as direcções para que uma coisa chamada avioneta, com dois ocupantes chamados homens, pudesse atrevidamente apoderar-se do espaço que a elas por direito natural lhes pertencia.
       Ao sair da avioneta, estava à minha espera, como de costume, um representante do CITMO. Levado a uma modesta pousada, chamada Acampamento Chitengo, a condizer com a natureza ambiental, fui imediatamente conduzido a um quarto, onde a um asseio primoroso se aliava um gosto requintado pela simplicidade. Tomado rapidamente um banho, dirigi-me à sala de espera. Depois de me servirem um refresco de coco, se bem me recordo, o guia do CITMO propôs-me um rápido safari, enquanto não chegava a hora do almoço. E foi assim que saímos o guia e eu numa carocha, conduzida por um motorista de origem goesa. Percorrido menos de um quilómetro, já estávamos a ver enormes elefantes e zebras e impalas. Devo dizer que não pude deixar de experimentar um certo medo, aliado a um misto de respeito, ao dar com os olhos, de dentro de uma carocha, de janelas fechadas, nas dimensões gigantescas de três elefantes, a movimentar-se pesadamente, a trote lento, à beira da estreita estrada de terra batida, por onde deslizava a nossa carocha. Quisessem eles, e uma pequena trombada bastava para fazer ir pelos ares o nosso minúsculo veículo. Como se lesse o meu pensamento, o nosso motorista, certamente adestrado para peripécias dessa natureza, fez um movimento tal, que os três elefantes embandeiraram as caudas e as trombas e deram um rincho tão ensurdecedor, que me fizeram arrepiar os cabelos e tremer as minhas pobres carnes. Perante essa minha reacção instantânea, o guia e o motorista disseram que não me assustasse, ao mesmo tempo que sorriam. Que os elefantes faziam sempre assim para provar a valentia dos turistas noviços. Por outro lado, quando depois do almoço fôssemos fazer um safari mais a sério, eu podia ter a certeza que os elefantes iam manifestar mais respeito por nós: é que, em vez da carocha, iríamos viajar de jipe.
             Esse primeiro contacto com o mundo animal do Parque Nacional da Gorongosa era como que um aperitivo para o grande banquete que nos esperava a seguir ao almoço. E de facto assim aconteceu. É que não foi preciso andar muito para deparar com três leões, preguiçosamente deitados à sombra de uns arbustos, quase à beira da picada, a fazer o quilo de uma farta refeição, feita à base de carnice fresca e fumegante de zebra. E digo de zebra porque no dia seguinte, a conselho do guia, dirigimo-nos, muito antes do nascer do sol,  para junto do lago aonde as zebras iam beber. Acocorados no meio dos arbustos, rente ao carreiro por onde viriam a caminhar as zebras, em direcção ao lago, estavam dois corpulentos leões, de olhos bem arregalados e de orelhas bem abertas, preparados para darem as boas vindas às suas futuras presas. No momento em que duas zebras se aproximam, no seu andar normal, saltam-lhes os dois leões aos respectivos pescoços, com as fauces escancaradas. Resistência baldada. Em breves segundos, cada um dos leões enfia-se no coração da mata com a sua respectiva zebra atravessada nas adestradas e radiantes fauces. Como se fosse disso que estavam à espera, aos dois leões e às suas respectivas presas junta-se quase uma dezena de leões de vários tamanhos. Após uma breve escaramuça, parece terem chegado à conclusão que a caça dava para todos. De modo que todos se acomodaram à mesa do banquete matutino, refastelando-se opiparamente e principescamente nas carnes ainda fumegantes das zebras.
         Saboreada a cena do hábito alimentício dos leões, dirigimo-nos para junto do lago. Que majestoso espectáculo! Enquanto centenas de crocodilos e de hipopótamos nadavam e mergulhavam no meio do lago, à procura de peixes para o mata-bicho, centenas de búfalos, zebras e impalas abeiravam-se das margens do lago, baixavam sofregamente o pescoço e bebiam no meio da maior harmonia, como se se tratasse de uma confraria requintadamente civilizada. Isto para não falar, naturalmente, dos milhares de aves, de todo o tamanho, cor e feitio, que se regalavam com os insectos do mato e com os carrapatos entranhados no pelo de vários dos animais selvagens.
         Regressávamos à pousada na maior das calmas, com o jipe a velocidade mínima, quando deparámos com uma cena impressionante, pelo que tinha de inédito para mim. Deitados à sombra de uma árvore, de olhos fechados, estavam 17 (dezassete) leões. Tendo-se empanturrado com a carne saborosa das zebras, faziam a digestão e dormiam a sesta. Quase fazia pena e dava raiva ver o rei da selva, e dos animais, nessa postura escandalosamente preguiçosa.
         Muitos e memoráveis têm sido os meus rendez-vous com a madre natureza (refiro entre parêntesis, à guisa de exemplo, os inúmeros voos de avião feitos por sobre as nuvens multifacetadas e multicoloridas de três continentes, as várias visitas às Cataratas do Niágara e às da Foz do Iguassú, a viagem de barco pelo rio Nilo, entre Cairo e Assuão, as viagens de carro pelo Vale da Morte, pelo Salt Lake de Utah, pelas montanhas do Colorado, pelo Gran Canyon, pelas intermináveis planícies douradas e ondulantes de Kansas e pelas planícies verdes de Nebraska, a viagem de barco pelo Lago Titicaca, com uma visita à ilha de Uros, com a sua escola evangélica, a viagem de comboio através dos Andes, entre Cuzco e Macchu Picchu), mas poucos desses rendez-vous com a madre natureza me encheram tanto os olhos e me deslumbraram tanto e me calaram tão fundo na mente e no coração como o meu convívio de dois dias com as maravilhas indescritíveis, sobretudo as do mundo animal, do Parque Nacional da Gorongosa. 
 
 
António Cirurgião

 

1 comentário:

  1. ""junto da fronteira com a Rodésia, hoje Zimbabwe.""

    É mais ou menos como dizer que o Parque Florestal de Monsanto em Lisboa está nas proximidades de Sevilha.

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