quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Sena e Pessoa. Cirurgião e Camões.




Cervejaria Solmar, Lisboa



Jorge de Sena no Martinho da Arcada com Fernando Pessoa,
e o Cirurgião na Ilha de Moçambique com Camões
 
 
 

         Certo dia, no Verão de 1975, Jorge de Sena, Luís Amaro e eu almoçámos no restaurante e cervejaria Solmar, em Lisboa, a convite de Luís Amaro. No fim do almoço, Luís Amaro disse que tinha de voltar para o trabalho, na Gulbenkian, e despediu-se. (Luís Amaro era então o Secretário da Redacção da Revista Colóquio- Letras, como depois viria a ser Consultor editorial, como depois não viria a ser nada na dita revista, mesmo apesar de continuar a trabalhar nela e para ela. Sucediam-se os directores e ele continuava sempre como secretário da redacção ou como consultor editorial ou como nada, apesar de ser ele o verdadeiro fazedor da revista, desde a primeira hora. A raiva que a D. Mécia mais de uma vez tem manifestado – raiva que era também a de Jorge de Sena  e que é também a minha - por não terem promovido o Luís Amaro a director da revista, logo a seguir à morte do primeiro director, o Prof. Hernâni Cidade! Unicamente – lamenta com justa razão a D. Mécia – por o Luís Amaro não ter o título de Dr..) Foi nesse momento que Jorge de Sena me propôs que fôssemos tomar o café ao Martinho da Arcada. E enquanto tomávamos o café, Jorge de Sena, voltado para o Tejo, falou-me, meio alucinado  e transfigurado, de Fernando Pessoa e da sua “Ode Marítima”, assim como me falou do que já tinha escrito e tencionava vir a escrever sobre ele. E outrossim me falou, sibilinamente, da sua velha e irresistível atracção e paixão pelo mar e da sua vocação nunca realizada, facto que ele cripticamente resumira nestes quatro versos de “’La cathédrale engloutie’ de Debussy”: “Submersa catedral inacessível! Como perdoarei / aquele momento em que do rádio vieste, / solene e vaga e grave, de sob as águas que / marinhas me seriam meu destino perdido?”.

          À distância de tantos anos, só tenho pena de não ter gravado as palavras do Mestre, ou pelo menos tê-las entregado ao diário que de longe em longe, muito esporadicamente, porém, eu escrevia, mas, infelizmente, não por essa época.

         Tivesse havido oportunidade e não estranho que Jorge de Sena, tal como me tinha convidado a tomar café com ele no Martinho da Arcada, me tivesse convidado a sentar-me com ele à mesa em Creta, para em sua companhia tomar café com o Minotauro, e sobretudo para Jorge de Sena ter uma testemunha ocular desse memorável e mítico encontro.

         Poderia ter acontecido isso na Ilha de Moçambique,  em convívio com Luís Vaz de Camões, carente de dinheiro e de amigos, com excepção do seu matalote Diogo do Couto (mai-los que este não cita). Mas, infelizmente, após um breve encontro em Lourenço Marques, no verão camoniano de 72, os nossos respectivos anfitriões levaram-nos à Ilha de Moçambique em datas diferentes, o que para sempre lamentarei, pois ter convivido com os manes de Camões, na muito real e mítica Ilha de Moçambique, em companhia de Jorge de Sena, primaz dos camonistas do seu tempo, teria sido para mim o sonho dos sonhos.
 
        Verdade é que Jorge de Sena não precisava de testemunhas oculares, para dar a conhecer aos seus contemporâneos e aos seus vindouros as romagens e as peregrinações que fazia aos templos dos vates e dos deuses e também “ad loca infecta”. Tudo era registado, ao pormenor, no armazém da sua memória prodigiosa e nas cartas diárias (“diárias”, repare-se bem) que ele escrevia à esposa, quando viajava, para já não falar das cartas aos amigos e confrades e das entradas no diário, dos poemas ou prosas celebratórias, que poderiam chegar até ao conto ou à novela, como de facto chegaram. 

          Aliás, por falar no meu convívio com Camões, a mais de quatro séculos de distância, na Ilha de Moçambique, devo referir que durante quase três semanas do verão de 72 visitei, como convidado inesperado do Governo Português, a assim chamada Província Ultramarina Portuguesa de Moçambique, com tratamento de VIP (como nas semanas anteriores visitara a chamada Província Ultramarina Portuguesa de Angola). E, no decorrer dessa visita, chegou o dia em que o meu guia me levou de carro da cidade da Beira à Ilha de Moçambique, onde passei dois dias inesquecíveis.

         Era sábado ou era domingo? Faço-me esta pergunta porque, a caminho da Ilha, dei de repente com um grande agrupamento de pessoas, reunidas à volta de uma espécie de ermida. Sentadas umas e outras de pé, à sombra de frondosas árvores, estavam todas vestidas de festa, com roupas muito vistosas e coloridas e a piquenicar. Curioso, perguntei ao meu guia do que se tratava. Nada de especial – respondeu–me ele. Tinham todos acorrido ali porque era dia de pagamento de impostos. – Meu Deus! – exclamei eu. Se fosse comigo, vestia-me de luto, não de festa e ainda por cima de roupa tão garrida. Razão tinha quem criou o brocardo latino (ou apotegma jurídico?): “Distingue tempora et concordabis jura.”

             As primeiras horas na Ilha foram passadas em companhia do meu guia oficial, visitando os principais monumentos turísticos. Ao passar por uma mesquita, perguntei ao guia se se tratava também de um monumento oficial e ele respondeu-me que não. Entretanto eu, que nunca entrara numa mesquita em nenhuma parte do mundo, manifestei interesse em visitar essa. Tendo compreendido o meu interesse, o guia pediu-me que esperasse um momento, que ele voltava logo. Que aconteceu então? Ele entrou na mesquita e, passados uns breves momentos, apareceu-me acompanhado de um senhor. Feitas as devidas apresentações e os devidos cumprimentos, entrámos. Os primeiros momentos foram de recolhimento, quase de silêncio total, apesar de haver um número razoável de pessoas – todos homens – dentro da mesquita. Porém, quando ia para sair, vi-me rodeado de vários muçulmanos, quase todos de túnica e de turbante. E, para espanto meu, noto que se aproximam de mim e começam a implorar-me que me faça eco junto do Governo Português de várias carências deles. É que se tinham convencido, não sei bem por quê, que eu devia ser uma pessoa importante e com influência junto do Governo de Lisboa. E no momento em que ia para sair, quase em coro, gritam bem alto: nós não somos católicos, mas somos portugueses. Viva Portugal e viva Salazar (e a verdade é que já havia quatro anos que Salazar caíra da cadeira, no Forte de São João do Estoril, e que Marcello Caetano era o primeiro ministro de Portugal. O que me faz lembrar o que cheguei a ouvir, em criança, da boca dos portugueses de algumas aldeias transmontanas, por ocasião de uma das frequentes visitas do Presidente da República Portuguesa, o Marechal António Fragoso Carmona,  a Chaves, de onde era oriunda a sua esposa, Madame Carmona: -  Viva sua Majestade El-Rei).

        Tendo chegado ainda antes do meio dia, fiz questão de ver e rever monumento a monumento, pedra a pedra, desde a primeira igreja construída pelos portugueses na costa oriental da África até ao Palácio do Governador. Por volta da meia noite, recolhi ao hotel, onde creio ter sido o único hóspede, com excepção de um casalinho em lua de mel – ela da Rodésia e ele dos Estados Unidos -, e fui deitar-me. Mas, como o tempo passava, e eu não conseguia adormecer, levantei-me, saí do hotel e pus-me a percorrer sozinho toda a Ilha. No meio do maior silêncio de uma noite estrelada de Agosto, apenas quebrado pelo doce, manso e misterioso marulhar das ondas, nunca na minha vida tinha sentido tanta emoção como português. Cada pedra falava-me de uma gesta cometida pelos portugueses de antanho! Possuído de uma espécie de intoxicação mística, com a mente a transbordar de caravelas e de guerreiros e de missionários e de aventureiros, sei que houve um momento em que me vi impelido a sentar-me numa rocha debruçada sobre o mar e em que senti os olhos marejados de lágrimas.

        Quando, pela vida fora, à distância dos anos, revivo esses momentos mágicos, sinto dentro de mim uma raiva indescritível por não ser poeta para poder atirar para o papel com algumas das emoções experimentadas nessa noite inolvidável, passada, vivida e sofrida “na muito real e mítica Ilha de Moçambique”.
 
 
António Cirurgião
 

 

 

1 comentário:

  1. Quem consegue transmitir aos outros o seu fascínio, é um artista e um artista, é um poeta!

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