terça-feira, 14 de junho de 2016

Amesterdão.

 
 
 

 
 
As casas pontiagudas parecem inclinar-se. Dir-se-ia
que elas caem. Os mastros dos barcos que se enredam
no céu estão inclinados como ramos secos
no meio de verdura, de vermelho e de ferrugem,
de arenques maduros, de peles de cordeiros e de carvão.
 
Robinson Crusoé passou por Amesterdão,
(creio pelo menos que passou por ali), ao voltar
da ilha sombreada e verde com cocos maduros.
Que emoção ele deve ter sentido quando viu luzir
as  portas enormes, com pesados martelos, desta cidade!…
 
Olharia ele com curiosidade as sobrelojas
Onde os empregados escrevem os livros de contabilidade?
Teve vontade de chorar ao voltar a sonhar
Com o seu caro papagaio, com o seu pesado guarda-sol
Que o abrigava numa ilha entristecida e clemente?
 
“Ó Eterno, bendito sejas!”, exclamou
diante das arcas pintalgadas com túlipas.
Mas o seu coração entristecido pela alegria do regresso
Tinha saudades do seu cabrito que, nos vinhedos da ilha,
ficara completamente só ou talvez tivesse morrido.
 
E pensei nisso diante dos grandes comércios
onde se imagina Judeus que tocam em balanças
com dedos ossudos cheios de anéis verdes.
Olha! Amesterdão adormece debaixo dos cilícios da neve
num perfume de bruma e de carvão amargo.
 
Ontem à noite os glóbulos brancos das espeluncas iluminadas,
quando se ouve o apelo assobiado por mulheres obesas,
pendiam como frutos que lembravam cabaças.
Azuis, vermelhos, verdes, brilhavam os cartazes.
O amargo formigueiro da cerveja açucarada
raspava-me a língua e fazia-me comichão no nariz.
E nos bairros judeus onde os detritos se acumulavam
sentia-se o odor cru e frio do peixe.
No empedrado pegajoso havia cascas de laranja.
Uma cabeça inchada abria olhos enormes,
um braço que discutia agitava cebolas.
 
Rebeca, tu vendias em mesinhas
alguns rebuçados húmidos pobremente amanhados.
 
Dir-se-ia que o céu, assim como o mar sujo,
Vertia nos canais nuvens de vagas.
Fumo que se não vê, a calma comercial
ascendia dos abençoados telhados em camadas imponentes
e respirava-se a Índia no conforto das casas.
 
Ah! Como eu gostava de ser um grande negociante,
Desses que noutros tempos iam de Amesterdão
Para a China, confiando a administração
da sua casa a fiéis mandatários.
Tal como Robinson, diante dum notário
eu teria assinado pomposamente a minha procuração.
 
Então a minha probidade teria feito a minha fortuna.
O meu negócio teria florido como um raio de luar
sobre a imponente proa do meu navio arredondado.
Teria recebido em casa os senhores de Bombaim
que teriam tentado a minha mulher de bela saúde.
 
Um negro com anéis de oiro teria vindo do Mogol,
traficar, sorridente, debaixo do seu grande guarda-sol,
Teria encantado com histórias selvagens
a minha magra filha mais nova, à qual ofereceria
um vestido tecido de rubis por escravos.
 
Eu teria mandado pintar retratos da minha família
por um qualquer hábil pintor de destino infeliz,
a minha mulher, bela e pesada, de loiras bochechas rosadas,
os meus filhos, cuja beleza teria encantado a cidade,
e a graça diversa e pura das minhas filhas.
 
É assim que, hoje, em vez de ser quem sou,
Teria sido outro e teria visitado
a imponente casa desses séculos passados
 e que, sonhador, teria deixado flutuar a minha alma
diante destas simples palavras: ali viveu Francis Jammes.
 
 
                               Amsterdam (1900),  poema de Francis Jammes,
                                               Choix de Poèmes, Paris,
Mercure de France, 1946, pp.113-116.
 
Tradução de João Medina
 
 
 
Francis Jammes (1868-1938)
 
 
 
Breve nótula biográfica:
Francis Jammes, poeta, dramaturgo, romancista e crítico, nasceu em Tournay (Altos Pirinéus), em 2-XII-1868 e faleceu em Hasparren (hoje Pirinéus atlânticos), em 1-XI-1938, tendo vivido quase sempre no seu Béarn natal, sobretudo em Orthez, onde a sua mãe lhe publicou (1894) o seu primeiro livro de versos, Six Sonnets, cidade onde existe hoje a casa-museu Francis Jammes. Leitor de Virgílio (escreveu três volumes de Geórgicas cristãs, 1911-12), Lamartine e de Baudelaire, foi apreciado e encorajado por Mallarmé, André Gide e Paul Claudel, que o incentivaram a editar a sua obra e a colaborar em revistas literárias, publicando na editora Mercure de France. Convertido ao catolicismo em 1905 – um “catolicismo pagão”, sublinhou acertadamente um dos seus críticos .Cl.iouarad)–, foi sempre acentuada a sua índole religiosa franciscana de crer e ver o mundo, tanto escrevendo poesia como prosa. A sua obra era, ao mesmo tempo, duma enorme simplicidade natural, partilhando o amor rural pelos animais como o burro ou a lebre, aos quais dedicou várias obras, enaltecendo a vida simples, mantendo-se um escritor rural, um “provinciano” que nunca acedeu aos grandes círculos parisienses nem ingressou na Academia Francesa. “O amor do poeta pela vida e pelos homens, pelos animais e as flores dos campos, pelos pobres e pelos deserdados, por todas as dores animais a que ele se abria como um hospício, não foi um amor literário, foi um amor  minucioso, informado, curioso e instruído, um amor de  naturalista e de botanista”, escreve Henri Clouard (1889-1974) na sua Histoire de la Littérature française du Symbolisme à nos Jours (1959, vol. I). Francis Jammes foi admirado por grandes autores tão diversos como Rainer Maria Rilke e Kafka.

 

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