segunda-feira, 13 de junho de 2016

O direito fundamental à habitação (em Alfama, vista rio).

 
 
 
 
Num evento chamado Trienal de Arquitectura, decidiu-se que "urge estancar a sangria do centro histórico da cidade". Compreende-se: sangria é uma coisa mais de praia do que de cidade e mancha a calçada portuguesa quando derrama, e fica ali a fruta toda a apodrecer e inclusive as velhotas podem escorregar e partir o fémur. Mas parece que a sangria que querem parar não é a bebida, é em sentido figurado a desertificação. Bastava o mínimo de coerência e estudo, ou até ir de vez em quanto ao tal centro histórico da cidade, para se perceber que não há qualquer sangria do centro histórico motivada pelo turismo, ou pelos estrangeiros que vêm para cá viver, ou pelo investimento imobiliário. O que há é precisamente o contrário, um vislumbre de vida e de viço. Durante as décadas e décadas em que Alfama perdia população, ninguém quis trocar o conforto de Telheiras pela realidade de Alfama. Alfama estava "esquecida em cada dia que passa", como na música Alfama dos Madredeus, de 1995; ou como cantava Mariza em 2003, uma Alfama "fechada em seu desencanto/ Alfama cheira a saudade/ Alfama não cheira a fado/ Cheira a povo, a solidão/ Cheira a silêncio magoado/ Sabe a tristeza com pão".
E agora que Alfama é mais visível, que está na moda, que aparece na imprensa internacional, que tem franceses com bom aspecto a irem ao pão de manhã e miúdas giras a estender roupa, e casas recuperadas em que apetece viver quando se olha da rua lá para dentro, agora que finalmente os moradores de sempre conseguem rentabilizar as suas casas ou parte delas, melhorar as suas vidas, do que se lembram é de vir pedir a intervenção do Estado e do município para... "estancar a sangria" através de uma espécie de contratos de associação no sector imobiliário para as zonas premium da cidade.
A Trienal (que por acaso começou em 2007 com o tema "Vazios urbanos", em que alertava, então mais acertadamente, para o êxodo de certas zonas da cidade) não é caso isolado neste awakening repentino, este momento-Alfama de que se acometeu subitamente alguma da nossa mais ilustre intelectualidade. A reacção é tão estapafúrdia que só pode explicar-se pelo remorso de termos sido individualmente e como povo cúmplices do que se fez aos centros históricos das nossas cidades: um conjunto de leis de arrendamento urbano criminosas, uma política pública de incentivo à compra de habitação própria mancomunada com o sistema bancário em detrimento do arrendamento e da reabilitação, em conjunto com uma quantidade de factores imateriais como a obsessão pelos dois lugares de garagem e arrecadação, uma preferência pelas tipologias novas a estrear, a ditadura dos acabamentos, o fetiche do elevador. A tudo isto se junta um sistema urbanístico de licenciamento camarário assente em leis até há pouco desfasadas, prazos pornográficos de licenciamento para a reconversão urbana e corrupção.
E como lida com o remorso o movimento Alfama-aos-portugueses? Quer resolver um problema no momento em que ele começa a desaparecer com aquilo que foram as suas causas históricas (rendas controladas, hiper-regulação, distanciamento do mercado). O mais aflitivo é uma incompreensão das dinâmicas urbanas, uma ignorância sobre Lisboa, um desamor pela cidade travestido de messianismo olisiponense, um paroquialismo pretensamente erudito, um cosmopolitismo que se ficou pelos Erasmus em Barcelona.
Fica a sensação de que até há pouco menos de um ano muitos daqueles que hoje reclamam Alfama, a sua Alfama, achavam que Alfama se chamava Santos – e não digo Santos como a antiga freguesia –, achavam que se chamava Santos como na frase "esta noite vou com a malta do atelier ali aos Santos [Populares]" – e eram incapazes de encontrar Alfama sem Google Maps numa manhã de Fevereiro. Alfama é assim uma ideia construída em cima das memórias de um Woodstock anual de sardinha onde se apanhava uma bebedeira de música pimba e de povo, antes de se voltar por mais 364 dias ao eixo Telheiras-Marquês, triangulando pelo Bairro Alto-Lux aos fins-de-semana.
Estrangeiros em Alfama? Liberdade de circulação? Turistas? Visitantes? Sim, mas com regras, não é assim virem à maluca renovar um prédio que os lisboetas deixaram entregue ao mijo de gato e aos ninhos de pombos, com uma viúva encarcerada num fétido quarto andar sem elevador e com uma escada angulosa onde a mortalha só cabe ao alto.
N’A Vida de Brian, Stan quer ser uma mulher e que lhe chamem Loretta porque quer ter bebés. Diz que é o direito de qualquer homem ter bebés. Francis apoia-o, mesmo que um homem não possa ter bebés, tem de ter o direito a ter bebés, e que vão lutar por isso – é simbólico na sua luta contra a opressão. Aqui é igual, não importa que nunca tenham querido viver em Alfama, não importa sequer que não queiram viver em Alfama, nem importa tão-pouco que podem viver em Alfama – o que importa é que se aprove uma lei que lhes dê o direito a poder viver em Alfama e que exclua outros desse direito. Como, porquê, por quanto tempo, para quê, nada disso interessa, nem interessa o que pensam disso os residentes do bairro, nem os senhorios do bairro, nem os proprietários – é uma coisa contra a opressão. É o direito fundamental à habitação, um direito democrático à habitação.
E eu também quero. É inconstitucional que o imóvel em Alfama com a referência D:120611244-178 da Re/Max Expo não seja meu, ou pelo menos que eu não possa lá viver um a dois anos. Não é justo. É que eu nasci em Lisboa, e Lisboa aos lisboetas. E apetece-me mesmo poder viver em Alfama. Não importa que eu nunca tenha feito nada para viver em Alfama. Não importa que o apartamento custe milhão e meio de euros e eu não os tenha. Que culpa tenho eu? Não importa que haja quem dê esse dinheiro pela casa, quem tenha investido naquele prédio, que haja proprietários. O que precisamos é de políticos com coragem, que defendam a Constituição com maiúscula e o direito fundamental à habitação, o meu direito fundamental à habitação. Àquela habitação. É que vinha mesmo a calhar aqui para os oito. São cinco quartos e uma sala, 337 metros quadrados de arquitecto. E vista rio frontal.
 
 
João Taborda da Gama
 
(publicado originalmente no Diário de Notícias; no Malomil com autorização
do João - obrigado, um abraço!)
 
 
 

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