terça-feira, 13 de setembro de 2016

Portugal, 1970.

 
 
 
Curt Meyer-Clason (1910-2012)

 
         Director do Instituto Alemão de Lisboa, entre 1969 e 1976, Curt Meyer-Clason (1910-2012) deixou-nos Diários Portugueses, um livro notável, com não menos notáveis tradução, notas e posfácio de João Barrento. O primeiro encontro com Ruben A. e outros vultos da cultura portuguesa da época, retratos de Lisboa no período final da ditadura, as turbulências da revolução, reflexões densas e cortantes, de extrema lucidez, sobre Portugal e o seu povo, Diários Portugueses é, muito provavelmente, o melhor livro que na segunda metade do século XX um estrangeiro escreveu sobre o nosso país.  
 
Fotografia de Gérard Castello-Lopes

 
 
 
         Europa
 
         A Europa é para os Portugueses o outro, que por um lado se deseja a partir da distância, e pelo qual, por outro lado, se quer ser reconhecido, admirado, cortejado. A Europa é acima de tudo a França, ou seja, Paris, é este o único critério para aquilo que vale a pena imitar. Todos querem enfeitar-se de Europa (leia-se: Paris), mas ao mesmo tempo permanecer português, ou seja: uma ilha, protegida de todo o contágio perturbador pelo mar, pelos Pirinéus, pelo voltar de costas a Espanha.
         Solitário, ensimesmado, fruindo uma arcaica forma de nostalgia, a saudade, uma nostalgia de ave migratória, mas sem objectivo nem tempo, um voo para o indefinido, para, a partir dessa altura e ânsia do longe abraçar com piedade e ternura o próprio Eu que se arrasta lá em baixo, na margem do Atlântico; um abraço completado por braços de mulher, filha, esposa, mãe ou amada numa figura una e indistinta. E sempre cultivando a imobilidade, ruminando sem parar o passado grandioso, recorrendo a ele contra a mesquinhez desprezível do presente, reagindo de forma sensível aos apelos do exterior. Sobretudo não se comprometer, não se prender a obrigações, a dependências que possam perturbar a contemplação de si, a representação de si, a dramatização de si. Em suma: há uma vontade de ser coisa antiga, duração num passado que exclui o presente, o ultrapassa e o supera, assim rodeando todos os desafios e confrontações com o que os outros fazem; nada de comparações, nós somos nós, os Lusíadas que fomos e seremos.
         Há qualquer coisa de narcísico e fanée, de imaturo e demodé,  de insatisfeito e blasé neste modo genuíno e saudável de ser português que se dá a ver em belas figuras de homem, corpos quentes de mulheres com olhares húmidos como em tempos romanos, escondidos e desejáveis e disponíveis como corças a pastar. Um modo de ser português que de modo nenhum quer renunciar a si ou dispersar-se, para se conservar da forma mais íntima. Nada de aventuras, nada de mudanças, nada de novidades ou recomeços!
         O último ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, exige que se deixe a Europa, que durante séculos não quis saber de Portugal, entregue aos seus problemas e à sua decadência, e que se volte a olhar definitivamente para África.    
 
Curt Meyer-Clason
 
 
 
 

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