domingo, 2 de outubro de 2016

Estoril, 1942.


 
 
Jules Sauerwein (1880-1967)
 
Nascido em Marselha em Janeiro de 1880, e falecido em Saint-Cloud em 1967, Jules Auguste Sauerwein foi um jornalista francês, sobre o qual pouca informação consegui obter (ver, no entanto, este breve apontamento e esta nota biográfica). Ao que parece, tinha uma atracção pela antroposofia e andou envolvido nesses círculos obscuros, ocultíssimos. Esteve em Portugal diversas vezes e é autor de um livro, Exilados Régios no Estoril, que obteve algum sucesso. As razões são óbvias: a reportagem de Sauerwein, que entrevistou no Estoril os pretendentes aos tronos de França, de Espanha e de Itália, descreve a «Riviera portuguesa» e o quotidiano dos monarcas sem coroa de uma forma deliberadamente glamorosa e suave, visando alimentar o fascínio dos leitores pelas intimidades das realezas. Tendo sido traduzido entre nós por Sílvio Conde e publicado pela Parceria A. M. Pereira, Exilados Régios no Estoril  não será uma obra marcante, mas é interessante. Sauerwein é um adepto do Estado Novo e as suas inclinações monárquicas são patentes – o que, em si mesmo, nada nos diz sobre o valor do livro que escreveu. Este interessa, acima de tudo, como ilustração de uma certa visão da Linha do Estoril, que ao longo dos anos foi acalentada e, em parte, ainda se mantém.
 
 

 
O Estoril é o verdadeiro centro de toda esta região paradisíaca. Recordo-me de aqui ter vindo em 1910, no momento em que os republicanos conspiravam contra a Monarquia e em que se previa a próxima partida do rei D. Manuel, cujo pai e irmão tinham sido assassinados, dois anos antes, em plena Lisboa, por um bando de fanáticos. Era uma época agitada. Nem nesse momento, nem durante os dezasseis anos de motins e desordem que se seguiram, nenhum príncipe, nenhum monarca de ontem ou de amanhã, teria tido a tentação de vir aqui instalar-se, num país de moeda desvalorizada onde as revoluções populares e os golpes de Estado militares alternavam lamentavelmente.
Nesse tempo não existiam as maravilhosas auto-estradas nem os tabuleiros de relva coroados pelo Casino e ladeados pelos grandes hotéis. Uma noite depois dum banquete, um dos mais fogosos republicanos propôs reconduzir-me a Lisboa no seu pequeno carro. O ágape tinha sido opíparo e muitos convivas haviam trazido garrafas de velho Madeira ou Porto, de modo que reinara a alegria e o festim terminara com hinos sonoros cantados em coro. Fosse consequência dessas libações ou do mau estado da antiga estrada, o que é certo é que fomos violentamente sacudidos. Mas o meu condutor dizia-me:
- Venha cá, passados dois anos de República. Garanto-lhe que terá uma estrada lisa como um bilhar, em vez deste mau caminho, obra do desleixo da Monarquia.
Voltei seis anos mais tarde e de novo passados oito anos, e a estrada do Estoril ainda continuava na mesma. Em compensação, a verdade obriga-me a dizer que, após alguns anos de revolução, mas revolução nacional desta vez, tudo mudou, e hoje não há no mundo inteiro nenhuma Riviera dotada de melhores comunicações do que a Costa do Sol portuguesa. Eis porque tantas famílias abastadas ou modestas habitam esta praia, mesmo quando os homens têm ocupações quotidianas em Lisboa. Mais depressa e mais agradavelmente do que muitos londrinos, vão em 25 minutos da residência ao escritório e gozam de um entardecer tranquilo, respirando bom ar.
Li um dia num jornal francês uma série de artigos sobre os três príncipes, sob o título geral de «Purgatório de Príncipes». Não pude deixar de rir. Se é em semelhante cenário que os pecadores deste mundo devem expiar as suas culpas, bem pode dizer-se que a Providência é misericordiosa. Não vejo lugar algum, nem na Europa nem na América, onde conseguissem viver melhor do que aqui, a menos que estivessem sentados nos tronos de seus pais, o que por vezes, para alguns deles, representaria – então sim – uma espécie de purgatório. Se um dia voltarem a encontrar na sua Pátria, com o esplendor duma vida própria, o paraíso das suas nostalgias, talvez que lhes suceda ter saudades do «purgatório» do Estoril.
Passam a vida entre os desportos preferidos. Uns têm o «golf», outros o ténis. Um picadeiro com belos cavalos oferece-se aos apaixonados da equitação. O rei Humberto pode dedicar-se à natação na água gelada das proximidades, em pequenas praias solitárias. Dom João vê, da sua janela, baloiçar-se na baía o Saltillo, que o conduzirá ao largo da costa, por vezes até à Madeira ou à Cornualha. Para os descendentes do conde de Paris fazerem as suas excursões e piqueniques, a única dificuldade é a escolha dum sítio aprazível entre tantos e tão belos que os rodeiam. Mais longe, para os lados do Ribatejo, estendem-se bons terrenos de caça para os atiradores exercitados no Tiro aos Pombos do Estoril, e há até matilhas para os apreciadores da caça a cavalo. Se tiverdes sorte, podereis ver a condessa de Paris sair, um pouco ofegante, duma corrida de esqui náutico ou o pretendente espanhol, estendido numa cadeira de bordo, repousando duma fatigante partida de ténis.
         Várias vezes por semana vêm à noite ao cinema do casino. Aí encontram frequentemente o rei Carol com a esposa e os Habsburgos dos arredores. É uma verdadeira colónia de majestades e de altezas. Entrai no Palácio Hotel do Estoril e podereis, conforme as horas, ver espectáculos interessantes. No bar, essa bela senhora espanhola tomando Xerez com uns compatriotas, é Dona Maria de Bourbon, que passa um momento em companhia duns desses casais de Grandes de Espanha que, de mês a mês, vêm à Villa Giralda desempenhar as suas funções junto das pessoas reais. No grande salão, esse homem dotado de belo porte e cabelos dourados que joga atentamente uma partida de bridge, não é outro senão o ex-rei Carol da Roménia que, durante a guerra, abdicou em favor de seu filho Miguel e agora, em círculo íntimo, vive tranquilamente no Estoril. Um pouco mais tarde, na sala de jantar, vereis o rei Humberto presidir a um banquete oferecido por um ex-embaixador da Roménia em Paris, e a outro canto da sala, convidados por uns barões austríacos semi-americanos, apercebereis os arquiduques Ana de Áustria e seu marido José de Habsburgo. Terei ocasião de tornar a falar deste casal imensamente simpático e de seus filhos, quando descrever a vida social levada por cada um dos príncipes, hóspedes de Portugal. A sua existência pareceu-me tão romanesca que os convenci a escreverem as suas memórias. Também não é raro avistar-se nos salões do Palácio Hotel um ancião de perfil aristocrático. É o almirante Horthy que, durante mais de vinte anos, governou a Hungria e a quem os nazis forçaram a entrar na guerra pelo seu lado. Às vezes aparece acompanhado pela nora, viúva dum filho morto na guerra. Figura delicada e loura, possui um encanto excepcional que se irradia dos seus grandes olhos misteriosos.
         Os príncipes que vivem na Riviera portuguesa têm entre si, na sua própria «corporação», grandes oportunidades de se distraírem à sua vontade. Sendo todos parentes, embora seus títulos difiram, tratam-se todos por tu. Entre eles não há rivalidades nem competições. Pelo contrário, possuem interesses comuns. Não desconfiam uns dos outros e, quando se encontram para comer, beber ou dançar, esquecem o protocolo que os rodeia, que é bem fatigante se é rigorosamente cumprido e bem desagradável se é totalmente olvidado. Em todo este mundo de majestades e de altezas, que se reúnem no Estoril para os seus prazeres e desportos, agita-se uma juventude alegre e descuidada, e os pais associam-se com prazer às excursões dos filhos. Eu que, por várias antigas razões derivadas da minha profissão e também do gosto pela música, frequentei assiduamente estas Famílias, pude sempre verificar que, no fundo, pouca semelhança existe entre esta «corporação» de príncipes, essencialmente internacional, e a alta nobreza de cada país. Nas famílias reais, mesmo protocolares por tradição, reina mais liberdade e alegria do que nas famílias da velha nobreza, que passam a vida entre o palacete hereditário da cidade e o castelo dos antepassados no camo. Os reis e os filhos de reis, esses, são muito mais independentes de trato que os duques e os marqueses e são bem mais fáceis de frequentar. Os que a sorte, boa ou má, reuniu em Portugal, tornaram-se verdadeiros amigos da arte e das paisagens portuguesas.
  
Jules Sauerwein
 
  
 

 

 

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