sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Portugal, 1947.


 
 
Susan Lowndes (1907-1993)
 
 
 
 
 
 
 
         A génese do livro The Selective Traveller in Portugal encontra-se minuciosamente descrita por Ana Vicente na Introdução à edição portuguesa daquele livro. As escritoras inglesas Ann Bridge (pseudónimo de Mary O’Malley) e Susan Lowndes percorreram o país em 1947, admirando-o nos seus encantos, observando as suas misérias. O livro sairia dois anos depois, em 1949, e foi editado em Portugal, com excelente tradução de Jorge Almeida e Pinho, em 2008, pela Quidnovi. A edição portuguesa é, como se disse, enriquecida pela introdução e pelas notas de Ana Vicente, filha de Susan. Desta última, saiu recentemente um outro belo livro, Catolicismo em Portugal: crónicas de Susan Lowndes, correspondente britânica (1948-1992), de que aqui se falará em breve. Susan Lowndes casaria com um português, o jornalista Luiz Artur de Oliveira Marques, e publicou outras obras sobre o nosso país, como Traveller’s Guide to Portugal, Good Food from Spain and Portugal ou, postumamente, English Art in Portugal. Casada com Owen O’Malley, embaixador do Reino Unido em Lisboa entre 1945 e 1948, Mary O’Malley, por seu turno, publicaria dois romances cujo enredo é situado em Portugal: The Portuguese Escape (1958) e Malady in Madeira (1969).
         Deste The Selective Traveller in Portugal, editado entre nós com o título Duas Inglesas em Portugal. Uma viagem pelo país nos anos 40, escolheu-se um trecho que mantém flagrante actualidade, ao descrever o desprezo português pelo seu património histórico. Recomenda-se, em todo o caso, que este delicioso livro seja lido na íntegra, como merece.
 
        
Sabugal, 1947

 

São um povo de trato fácil, com grande naturalidade e simplicidade. Os camponeses trabalham de forma extremamente árdua, mas não se nota qualquer exibição violenta de energia por mais ninguém, e absolutamente nenhuma noção anglo-saxónica de fazer as coisas a tempo e horas. O tempo não significa nada.
         É porventura significativo notar que, durante uma estada casual em Lisboa, é difícil descobrir mais do que quatro relógios públicos nas ruas… e dois deles não funcionam! As mulheres sentam-se serenamente durante uma hora ou mais nos cabeleireiros, à espera de uma marcação. Nas lojas, não se nota qualquer ansiedade para vender os objectos, pelo contrário, é necessária a maior pertinácia por parte do comprador para que lhe seja permitido comprar o que pretende e se por acaso o produto estiver numa prateleira mais alta provavelmente não o conseguirá obter. (Um americano de passagem disse uma vez que nunca vira uma tal «resistência às vendas» como a que lhe fora levantada pelos lojistas em Portugal.) De certo modo, esta indiferença é bastante agradável, especialmente em período de férias; e ainda mais agradável é a alegria que faz do trabalho uma festa, o espírito feliz que se transforma em canção em todas as ocasiões, a alegre satisfação por uma vida de trabalho, acima de tudo, a amabilidade calorosa, uns para com os outros ou para com os estrangeiros. Os Portugueses tratam bem os animais: não se nota a falta de cuidado ou a crueldade que muitas vezes fazem as viagens a Itália um horror para os cidadãos do Norte da Europa. Além disso, regra geral, os Portugueses são um povo honesto. Muito raramente roubam. É verdade que se devem verificar cuidadosamente as contas nos hotéis, até mesmo nas pousadas que são propriedade do Estado, caso contrário paga-se muito mais do que o devido: e até mesmo nas melhores lojas, caso se tenha escolhido, por exemplo, um par de meias de pura seda, e se solicitar mais cinco pares da mesma qualidade e tamanho, é inevitável ter de examinar pormenorizadamente cada um dos pares, tal como o fazem os próprios portugueses, senão podemos acabar por receber meias da mesma cor mas de tamanhos diferentes e com a parte dos pés e a parte de cima em algodão. Contudo, não será muito provavelmente uma atitude de desonestidade intencional porque, no segundo caso, a vendedora é demasiado preguiçosa para ver aquilo que está a vender e, no primeiro caso, o empregado do hotel estava a falar com alguém enquanto entregava a sua conta, ou enquanto entregava a conta de uma outra pessoa, conforme lhe dirão, candidamente, quando confrontados com a situação.
         Um outro curioso contraste em Portugal é aquele que se verifica entre o nível extremamente elevado de conhecimentos académicos individuais e de capacidade crítica no que diz respeito a questões artísticas, que deu fruto numa série de livros e monografias admiráveis de peritos como o Dr. João Couto, do Museu Nacional de Arte Antiga, o Dr. Reinaldo dos Santos e o Dr. João M. dos Santos Simões (para mencionar apenas algumas das muitas pessoas com grandes conhecimentos nessa área) e a trágica combinação de energia e teoria arquitectónica erradas reveladas pela Comissão Portuguesa para os Monumentos Antigos, que é responsável pela manutenção dos monumentos nacionais. Os Portugueses têm uma paixão por derrubar e construir (que fazem muito bem e com grande rapidez), e a face de metade das ruas de Lisboa parece mudar em poucos meses. Contudo, se aplicado a edifícios antigos, este processo é desastroso. Praticamente todos os castelos do país com alterações diversas foram gravemente restaurados em demasia; e em quantas igrejas não foram os acrescentos, aumentos normais e naturais ao longo dos séculos desde o primeiro momento em que foram construídas, impiedosamente destruídos nos últimos anos? Tanto histórica como esteticamente, esta situação é seguramente um erro de conservação. Por toda a Europa, as igrejas sempre receberam acrescentos provenientes dos impulsos inovadores de génio ou religiosidade das gerações subsequentes; muitas vezes estes acrescentos são tão bonitos quanto o edifício original; e removê-los para reproduzir, de uma forma falsa e arbitrária, a estrutura primitiva é negar a história e repudiar os factos. Poderá parecer inconveniente a um estrangeiro intrometer-se com a sua opinião em tais questões, mas o património artístico de qualquer país não é uma preocupação unicamente desse país, já que faz parte da herança comum da humanidade, e os danos que continuam a ser produzidos são de tal modo graves, e o desânimo e a angústia dos portugueses mais viajados e instruídos são tão profundos, que considerámos adequado referir aqui esta infeliz situação. Muitos casos concretos deverão, em benefício da exactidão, ser mencionados em capítulos posteriores; e talvez, afinal de contas, os amantes da arte e de Portugal tenham o direito de manifestar a sua angústia.
         Uma situação em que a indiferença nacional é verdadeiramente dilacerante é aquela que afecta o turista com pouco tempo à sua disposição. As igrejas portuguesas, estranhamente, não se mantêm abertas para aqueles que assim o desejarem possam fazer em privado o seu culto. Talvez por causa dos tesouros que albergam, as igrejas mantêm-se encerradas, excepto durante as horas de serviço religioso. Não é legítimo esperar que o sacristão tenha a chave, que poderá estar antes nas mãos de uma velhota, que vive a cerca de meio quilómetro de distância. Esta questão de encontrar a chave acaba por se tornar um pesadelo. Podem ser necessários entre dez minutos e uma hora até que a chave apareça. (O recorde é de uma hora e cinquenta minutos, que ainda por cima redundaram num fracasso!) O viajante experimentado, assim que entra numa cidade, escolhe três ou quatro igrejas e enquanto admira o exterior da primeira, envia o motorista ou uma série de mensageiros em busca das chaves das restantes; deste modo, apesar de ter de esperar vinte minutos para entrar na igreja A, as igrejas B, C e D provavelmente já estarão preparadas para o receber. Deve levar consigo muitos trocos; moedas prateadas para dar à criança ou à velhota que efectivamente traz a chave, moedas de cobre para os pedintes e bandos de crianças que se reúnem para assistir à diversão. É realmente descortês e pouco amável não dar uma esmola às pessoas que pedem em Portugal, onde a caridade cristã voluntária é muito mais apreciada do que a assistência governamental organizada. Mas não é fácil ter no bolso moedas suficientes de cobre! No caso das crianças, um bom plano consiste em acalmar a agitação e ordenar que façam uma fila, dizendo a irmãos e irmãs que se mantenham juntos, e depois dar uma moeda ao elemento mais jovem de cada família; esta atitude diverte-os muito e evita que os mais barulhentos e mais activos recebam repetidamente moedas, como certamente acontecerá se não for feito desta forma.
 
Ann Bridge e Susan Lowndes

 


 

 

       

           

1 comentário:

  1. O post deu-me muita vontade de comprar o livro, mas infelizmente no site ele aparece como indisponível.

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