quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A Rainha e o Comandante.


 

 
No outro dia, no carro para a escola, na rádio, a notícia dos vinte e cinco anos da morte de Freddy Mercury. Estava nevoeiro e frio, como quando cheguei à escola, segunda-feira, há vinte e cinco anos, também com catorze, tinha morrido o Freddy Mercury, na véspera. Com  SIDA. Semanas antes tinha sido Magic Johnson a anunciar que tinha sida. De um dia para o outro, tinham todos SIDA. Não havia internet. Como é que se sabiam as coisas? Como é que se sabia que Freddy tinha morrido? Ou o que queria dizer sida? Os meios de comunicação davam notícias, as pessoas recebiam-nas, acreditavam, e transmitiam-nas umas às outras. Lembro-me de ter ouvido na rádio? Onde? E se não tivesse ouvido, teria ele ficado vivo uns dias mais? Meses, anos? (Um aparte: os Queen eram parte substancial do meu dia, do quarto, da alma).
Não sabiam quem era. Disse-lhes o que sabia, do que fui lendo, alguns poucos factos que retive, um pai austero empregado das alfândegas em Zanzibar (mas podia não ser das alfândegas, podia não ser austero), a compra de uma guitarra em segunda mão em Londres, ténis em Ibiza, o início dos Queen, a recusa inicial dos sintetizadores, os complexos com a aparência física, o sucesso. Não lhes contei aquela que era a minha recordação mais forte de todos os livros e revistas que li, alguns com a idade delas: festas em que anões transportavam na cabeça bandejas de prata com cocaína. Esse facto, que tinha lido num livro mal escrito, orgulhava-me de sabê-lo e achava que poucos o saberiam. Hoje, no Google, há centenas de milhares de referências.
Mas tal como Freddy Mercury tinha morrido, e era verdade, também a vocalista das 4 Non Blondes morreu várias vezes e, vi agora, continua viva com uma carreira de sucesso na produção musical. Como é que se sabia que ela não tinha morrido, se as pessoas diziam que ela tinha morrido?
A confirmação de factos podia ser feita recorrendo a um recorte de jornal, normalmente um instinto de preservação que raramente servia a sua função (onde estavam os recortes, quais, por que ordem, os cantos amarelados a enrolarem, a tinta a esvair-se, porque é que eu recortei isto?). No fundo, toda a confirmação era oral. É impressionante como, até há quinze, vinte anos a cultura era predominantemente oral e paroquial (perguntas em família, em amigos), sim, claro, a prensa de Gutenberg, os livros, as enciclopédias, tudo certo, mas as pessoas não andavam com a enciclopédia luso-brasileira no autocarro, nem tinham a biblioteca de Alexandria na sala. Eu tinha a certeza que uma coisa tinha acontecido porque me lembrava e ou alguém me dizia.
Hoje não é assim. Quando na rádio as minhas filhas ouviram dos vinte e cinco anos da sua morte, podem saber tudo o que quiserem sobre o Freddy Mercury, até enquanto eu lhes conto, na velha tradição oral, quem foi, como morreu, o que fez. Quando explico uma coisa aos meus alunos, ou relato um facto, sei que uma parte está a verificar o que digo no computador ou no telefone. Por um lado, dependemos menos das nossas memórias (que efeitos vai ter no médio prazo?), mas existe aí fora toda a nossa memória, sem lugar ao esquecimento, nem do que está porque foi, nem do que está mas não foi.
Uma cultura que se baseia na possibilidade constante da confirmação de factos, de reputação, é uma sociedade que será menos materialista: sentindo que pode sempre ter tudo, não precisa nunca de ter nada. Começou com a música, os filmes, livros, passará para os automóveis em breve. Mas no conhecimento, no consumo de notícias, a coisa tem o lado negro da notícia falsa, a tal da pós-verdade, que redundará numa escolha entre verdades, se calhar na existência de duas verdades, simultâneas, opostas, ambas com os seus processos de criação, divulgação e confirmação (hoje) permanente.
Em 1984, os Queen lançam, I Want to Break Free, uma música de John Deacon, o discreto baixista, que tinha escrito uma música de revolta e de libertação pessoal (nos Queen também conviviam duas verdades, Freddy excessivo, e John tímido, casado ainda hoje com a mesma mulher, seis filhos). No vídeo de I Want to Break Free, que ficou famoso, os membros da banda, vestidos de mulher numa casa parodiavam a telenovela Coronation Street. Mas a música transformou-se imediatamente num hino da resistência às ditaduras por todo o mundo, da África do Sul à América Latina. Por isso, quando Freddy Mercury subiu ao palco do Rock in Rio em 1985 vestido de mulher para cantar a música, foi assobiado e apedrejado por quem achou isso uma ofensa ao hino de libertação política. A mesma música, duas verdades. E os cubanos, continuarão a ter de cantar I Want to Break Free? Depende de quem lermos hoje. João Taborda da Gama
 
João Taborda da Gama
 
(originalmente publicado no Diário de Notícias; republicado no Malomil graças à generosidade do autor: um abraço, João!)
 

Ribatejo, 1967.

 
 

Cécile Aubry (1928-2010)
 
 
 
 
Cecile Aubry, pseudónimo literário de Anne-José Bénard (1928-2010) é uma personalidade mais interessante do que os seus romances infanto-juvenis podem fazer crer. Escritora, cenógrafa, realizadora de cinema e actriz, foi a autora da celebérrima série televisiva Bela e Sebastião, que muitos de nós ainda recordam. Teve uma carreira promissora no cinema, onde contracenou com Orson Welles e Tyrone Power, mas largou as fitas quando se casou, na mesquita de Paris, com o filho do pachá de Marraquexe, o qual se tornaria realizador e actor. Aubry ganharia fama através das séries televisivas baseadas nas suas obras, com Poly e Bela e Sebastião. Mostrou grande interesse por Portugal, na altura um destino exótico, tendo sido cenógrafa de Poly au Portugal, série de 1965, em sete episódios. Como escritora, escreveu um romance homónimo, mas o trecho que aqui vamos reproduzir, de Poly no Ribatejo, parece  não ser dessa obra, mas antes, como se indica na ficha técnica, de Au Secours Poly! (1967), com ilustrações de Christiane Dufour. Foi traduzido entre nós por Maria Amélia Bárcia e editado pela Empresa Nacional de Publicidade, que já havia publicado, na mesma colecção Poly em Portugal. Pueril, infantil, o que quiserem, mas o que interessa é a visão idílica do país, ou de uma sua região, que dela tinha uma popular autora francesa. Daí este trecho:
 
 

 
 
 
 
 
Naquela manhã, mal nascera o dia, Carlitos, armado com uma escova, dirigia-se para a cavalariça da quinta, na firme intenção de esfregar o pelo, já reluzente, do seu lindo cavalinho Poly.
Poly, que ele devia à amabilidade de Pascal. Ao findarem as férias do ano anterior Pascal tinha visitado o Ribatejo antes de deixar Portugal. O Ribatejo – todos o sabemos – é uma das mais belas regiões do nosso país. Ali, à beira do Tejo, se criam os toiros para as toiradas. Esses bandos de toiros chamam-se – como também sabem – «manadas» e os seus guardas são os «campinos», esses maravilhosos cavaleiros. Noite e dia, armados com os seus longos pampilhos que se assemelham a lanças, rendem-se para manterem a ordem entre os altivos animais, por vezes combativos. Os campinos vivem com suas famílias em vastas herdades isoladas que são verdadeiras aldeias.
Tinha sido numa dessas herdades, talvez a mais bonita, que Pascal e Poly haviam passado perto de uma semana. E assim haviam travado conhecimento com o pequeno Carlitos. Muito moreno, Carlitos era, com os seus dez anos, o mais hábil dos jovens cavaleiros. Seu pai, o Zé Ernesto – chefe dos campinos – orgulhava-se disso. Quanto a Pascal, a sua admiração e a sua amizade por Carlitos foram tais que lhe propôs deixar-lhe Poly até ao Verão seguinte. O cavalinho seria muito mais feliz galopando com Carlitos, do que se ficasse fechado na herdade de Tourelles, muitas vezes fechado na estrebaria. Porque pascal ia entrar num colégio como aluno interno.
Carlitos aceitou satisfeito a proposta. Agora, Poly e ele tinham-se tornado companheiros inseparáveis. Era por isso que, naquela manhã, o rapazito se dirigia alegremente para o estábulo do pónei.
Nesse momento já o pai se encontrava a cavalo, pronto para ir ter com a manada. Carlitos gritou:
 − Pai, posso ir consigo?
− Com certeza – respondeu o pai. – Sela o teu pónei e despacha-te, Vem ter comigo ao pasto, porque não posso esperar por vocês.
         (…)
         Zé Ernesto fez sinal ao filho. Ambos partiram então a trote e foram ter com Afonso, no flanco da manada. Carlitos juntou-se aos campinos que, com o pampilho, incitavam os animais atrasados. Zé Ernesto franziu a testa. Com voz severa, ordenou:
         − Põe-te atrás de nós, Carlitos.
         Um tanto vexado, Carlitos teve no entanto que obedecer. Pôs-se a ver os homens trabalhando sob as ordens de seu pai. Separavam o rebanho em dois grupos: os toiros que ficariam em liberdade na manada e os que seriam escolhidos para a corrida. Os campinos tentavam agrupar-se em volta desses, que seriam uns dez. Tinham de encerrar os dez animais num círculo cada vez mais apertado, até que fosse possível obrigá-los a entrar, um a um, numa espécie de corredor ladeado de altas barreiras que conduzia a um cercado.
         Bruscamente, Carlitos estendeu o braço para um dos touros:
         − O melhor de todos é aquele! – gritou.
         Afonso teve um assobio de admiração.
         − Estás a ver, Zé, o teu filho tem olho! Não há dúvida que o Negro é dos mais fortes e dos mais corajosos.
         Zé Ernesto teve um sorriso de orgulho, mas não quis mostrá-lo ao Carlitos.
         − Agora vai dar um passeio – disse para o filho. – Por hoje já viste bastante.
         (…)
         Poly conduziu Carlitos ao longo dum caminho escavado, com muita sombra. Depois cortou a direito pelo pasto e trotou para o parque de uma casa muito bonita que o pequeno avistava por entre as árvores. Nunca tinha entrado nesse parque, nem na casa toda branca. Zé Ernesto proibia-o formalmente, a todas as crianças da quinta. Era a «casa dos patrões», a bela vivenda de D. Vasco.
 
 
 
 

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Na morte de Fidel (poema).














Na morte de Fidel



É urgente um verso vermelho
que suspenda a animação deste desastre
pensado para durar depois do inverno


É urgente um verso vermelho
com todas as cores do arco iris
e o vento natural do universo


É urgente um verso vermelho
que ponha de novo em movimento os comboios da imaginação
azeite puro em manivelas de razão quente
o peso da história de novo levíssimo
a rodar sobre perguntas livres e ruínas vivas
a paisagem mudar primeiro lentamente
enquanto vão entrando vozes ainda submersas
e corpos mal refeitos da desfiguração da guerra e do comércio
das crateras e promoções


É urgente um verso vermelho
que desate os nós da memória e do medo
e resgate os rios da rebeldia
a palavra cristalina inabalável
inconfundível com as mordaças sonoras
à venda nos supermercados da ordem


É urgente um verso vermelho
para anunciar barco polifónico da dignidade
pronto a navegar
os rios libertos das barragens calcinadas
dos sistemas de irrigação industrial da alma


É urgente um verso vermelho
uma luz manual portátil que vá connosco
sem esperar a que virá no fundo do túnel se vier
porque a cegueira da viagem é sempre mais perigosa
que a da chegada
talvez só entrega
talvez só paragem


É urgente um verso vermelho
que trace um território inacessível
aos vendedores de mobílias espirituais
e turismo de acomodação


É urgente um verso vermelho
vinho de bom ano para acompanhar
sonhos sãos e saborosos
preparados em brasas de raiva e a brisa da alegria


É urgente um verso vermelho
sem solenidades nem códigos especiais
para devolver as cores ao mundo
e as deixar combinar com a criatividade própria dos vendavais







Boaventura de Sousa Santos, aqui



 




 

Roupa de marca.

 
 
 












 
 


Não, não são conselhos de moda & lifestyle nem é a próxima colecção Outono/Inverno de uma marca qualquer. São roupas, roupas vulgaríssimas. As roupas de vítimas de violação. Well, What Were You Wearing?, um projecto da fotógrafa norte-americana  Katherine Cambareri, que parte da noção, acertadíssima (basta recordar um famigerado acórdão do SupremoTribunal de Justiça sobre o «macho ibérico»), de que existe um preconceito ou estereótipo segundo o qual  muitas agressões sexuais são motivadas pelo facto de as vítimas usarem roupas provocantes e sensuais, irresistíveis para os predadores brutais. Como se lhes não assistisse o direito de se vestirem como quisessem... A questão é juridicamente complexa, mas só caso a caso poderemos aferir da existência, ou não, de «consentimento» para relações sexuais. Aqui, o que impressiona, nestas imagens de fundo escuro, é a «banalidade» das roupas das vítimas. Em alguns sites, chega-se a dizer que estas eram as roupas dos agressores, não das agredidas… Roupas de todos os dias, normalíssimas, nada apelativas ou especialmente sensuais (e, repete-se, mesmo que o fossem nada justificaria o crime, que fique bem claro). Para desenvolver este projecto, que continua a aceitar contributos, Katherine inspirou-se num livro sobre agressões sexuais nos campuses das universidades dos Estados Unidos. Segundo um estudo do Departamento de Justiça dos EUA, realizado em nove campus universitários, cerca de 21% das mulheres sofreram alguma espécie de agressão sexual ao longo da sua permanência na academia. Katherine contactou algumas vítimas – vítimas de violação – e pediu-lhes tão-só que mostrassem a roupa que usavam no momento em que foram brutalizadas. As imagens, só por si, nada dizem; são roupas banais, usadas e rasgadas. Quase tão banais, usadas e rasgadas como as mulheres que as vestiam. Num dia de sol ou chuva, algures perto de si.
 
 
 
 

 

Portugal Sensacional.

 
 
 
 

The New York Times, 31 de Janeiro de 1931


segunda-feira, 28 de novembro de 2016

Açores, 1836.

 
 
 
Charles Darwin (1809-1882)

 
A passagem de Charles Darwin pelos Açores em 1836, a bordo do Beagle, é bem conhecida e tem sido amplamente estudada, assim como a correspondência mantida com o cientista português Francisco de Arruda Furtado (1854-1887). O diário que Darwin escreveu no Beagle já foi publicado entre nós, existindo mesmo um livrinho, profusamente anotado, com o título Darwin nos Açores. Diário pessoal com comentários, organizado por José Nuno G. Pereira e Verónica Neves, igualmente autores da tradução que a seguir se transcreve, tendo sido selecionados apenas alguns trechos.
 
O H.M.S. Beagle
 

De manhã estávamos ao largo da ponta Este da ilha Terceira, e ao início da tarde alcançámos a cidade de Angra.
A ilha é moderadamente elevada e possui um contorno arredondado, com colinas cónicas dispersas, de evidente origem vulcânica. A terra está bem cultivada e dividida em campos rectangulares separados por paredes de pedra, que se estendem da beira-mar até bem alto nas colinas centrais.
Há poucas ou nenhumas árvores, e nesta altura do ano a terra amarelada pelo restolho dá um aspecto queimado e desagradável a este cenário. Encontram-se pequenas povoações e casas caiadas isoladas dispersas por toda a parte.
À tarde alguns de nós foram a terra; achámos a pequena cidade muito cuidada, com perto de 10.000 habitantes, cerca de um quarto total da ilha.
Não existem lojas e são poucos os sinais de actividade, com excepção do intolerável ranger de um ocasional carro-de-bois.
As igrejas são muito respeitáveis e existiam antigamente muitos conventos, mas Dom Pedro destruiu vários; mandou arrasar três conventos de freiras e concedeu permissão às freiras para se casarem, o que, exceptuando algumas das mais velhas, foi aceite com agrado.
Angra foi inicialmente a capital de todo o Arquipélago, mas actualmente possui apenas uma divisão de ilhas sob seu governo, e a sua glória desapareceu.
A cidade é defendida por um forte castelo e uma linha de canhões que circunda a base do Monte Brasil: um vulcão extinto com flancos inclinados, com vista para a cidade.
(…)
No dia seguinte, o Cônsul cedeu-me gentilmente o seu cavalo e forneceu-me guias para nos deslocarmos a um local, no centro da ilha, que era descrito como uma cratera activa.
(…)
Gostei do passeio do dia, apesar de não ter visto muitas coisas que valham a pena: foi agradável conhecer um tão grande número de camponeses encantadores; não me lembro de ter estado perante um grupo de homens mais elegantes, com tantas expressões agradáveis e bem-humoradas.
Os homens e os rapazes estavam todos vestidos com casacos e calças simples, sem sapatos nem meias; as suas cabeças parcialmente cobertas por uma pequena carapuça de pano azul com duas orelhas e uma bordadura vermelha, que levantavam da forma mais cortês à passagem de cada estranho.
As suas roupas, apesar de muito esfarrapadas, estavam particularmente limpas, assim como as suas pessoas; foi-me dito que, em quase todas as casas de campo, um visitante dorme em lençóis brancos e janta com um guardanapo limpo.
Cada homem traz na sua mão um bordão de cerca de 6 pés de altura [2 metros]; colocando uma faca comprida em cada extremidade, podem transformá-lo numa arma formidável.
O seu aspecto rosado, olhos brilhantes e postura erecta, dava-lhes uma imagem de elegantes camponeses; quão diferentes dos portugueses do Brasil.
Grande parte dos que hoje conhecemos trabalha nas montanhas, recolhendo lenha.
Uma família inteira, do pai ao rapaz mais novo, pode ser vista carregando o seu molho à cabeça para vender na cidade. Os seus fardos eram muito pesados; este trabalho árduo e o aspecto esfarrapado das suas roupas sugeriam claramente pobreza. Contudo, disseram-me que não é pela necessidade de comida, mas de todos os luxos, um caso paralelo ao do Chile.
Por este motivo, apesar da terra não estar toda cultivada, muitos estão a emigrar para o Brasil, onde o contrato a que estão sujeitos difere pouco da escravatura.
É de lamentar que uma população tão encantadora deva sentir-se compelida a deixar uma terra de abundância, onde todo o tipo de alimento – carne, vegetais e fruta – é extremamente barato e muito abundante; mas o trabalhador apercebe-se que o seu trabalho é proporcionalmente pouco valorizado.
(…)
A ilha de São Miguel é consideravelmente maior e três vezes mais populosa, gozando de um sistema de trocas mais extenso que a Terceira.
A principal exportação é a fruta, para a qual chega anualmente uma frota de navios; apesar de várias centenas de navios estarem carregados com laranjas, em nenhuma das ilhas estas árvores aparecem em grandes números. Ninguém adivinharia que seria este o grande mercado [produtor] das inúmeras laranjas importadas por Inglaterra.
São Miguel tem muito o mesmo aspecto de campos abertos semi-verdes e retalhados de cultivos que a Terceira. A cidade é mais dispersa; as casas e igrejas, ali e ao longo dos campos, estão caiadas de branco, e à distância parecem arrumadas e bonitas.
A terra por detrás da cidade é menos elevada que na Terceira, mas mesmo assim eleva-se consideravelmente; é espessamente salpicada, ou mais exactamente, composta por pequenos montes mamiformes, cada qual um vulcão activo em tempos idos.
No espaço de uma hora, o barco regressou sem cartas; então colocámo-nos bem ao largo de terra, e rumámos, graças a Deus, directamente a Inglaterra.

 

 


Portugal Sensacional.

 
 
 
 




The New York Times, 11 de Fevereiro de 1931




domingo, 27 de novembro de 2016

Memórias Perdidas - 3

 
 
 




Tenho a sorte – e o privilégio – de ser amigo de um dos filhos do autor, o João (que, aliás, já escreveu aqui no Malomil sobre o histórico duelo xadrezístico Spassky/Fischer). Foi através dele que soube da existência destas memórias pessoais e familiares, que Luís Borges de Assunção pretendeu deixar ao círculo restrito dos seus mais próximos, dedicando-o aos netos e oferecendo-o a uns quantos privilegiados. Da Serra para a Cidade – Exemplo Biografado de um Estudante não está, portanto, à venda no «circuito comercial», o que é pena, pois constitui um extraordinário testemunho de vida, além de um retrato de um tempo pretérito, a fotografia escrita de um movimento de êxodo rural que marcou, como poucos, o século XX português.  
O que maravilha e enternece nesta obra é a sua simplicidade, a singeleza com que o autor apresenta o seu percurso de vida, da infância à conclusão do curso de Finanças no Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras. Natural de Travancinha, uma aldeia situada no concelho de Seia, Luís Borges de Assunção descreve, com alguma nostalgia, a infância aí passada, e as primícias da juventude, onde o sabor das «tibornas» compensava a falta de luz eléctrica. O seu pai, agricultor e sapateiro, viera para Lisboa aperfeiçoar a aprendizagem do ofício, recordando-se que, à época, o rei D. Carlos era um dos poucos proprietários de automóvel do país, sendo conhecido por «Arreda», dada a velocidade vertiginosa com que conduzia o veículo pelas ruas da capital. A memória nem sempre acerta, pois a alcunha era dada, isso sim, ao infante D. Afonso. Mas deixemos de lado este pormenor automobilístico, concentrando-nos no essencial: tendo regressado à sua terra natal, o pai abriu um estabelecimento comercial de venda vinhos, mercearias e miudezas. As suas qualidades de carácter levaram-no a exercer cargos de responsabilidade na aldeia de Travancinha, como regedor e presidente da junta de freguesia. Homem de fé profunda, pertencia à Irmandade do Coração de Jesus. Foi neste ambiente que Luís cresceu, uma atmosfera que hoje evocamos como bucólica e sadia, na companhia de cabras de estimação – e «Bonita» e a «Jolie» –, mas cuja agrura da terra fazia com que muitos ambicionassem de lá partir, em busca de melhor destino. O irmão Manuel viera para Lisboa estudar, tendo abandonado o curso, facto de que se arrependeria para o resto da vida. Outro irmão, Francisco, seguiu a carreira eclesiástica, sendo ordenado sacerdote em 1946. Para o governo da loja, sobrava portanto Luís, que não quis. Foi difícil vencer o destino de comerciante de aldeia. O que mais impressiona, na narrativa dos seus tempos de estudante, é a dimensão do esforço que Luís teve de fazer para concluir o curso. Enquanto isso, na terra, assistia às discussões sobre a guerra que dilacerava o coração de uma Europa atormentada. O primo Clemente mostrou a sua clarividência telúrica: «tu vais ver que esta invasão vai ser o fim da Alemanha porque os soldados alemães não conseguem aguentar os frios de Moscovo e serão derrotados. Nessa altura vai ser o fim da amizade da Rússia com os aliados e vai ser a nossa safa».
Enquanto estudava em Travancinha, Luís ia tirar dúvidas junto do meu irmão, que dava aulas no colégio de Oliveira do Hospital. Eram 15 quilómetros para lá, outros tantos para cá, feitos a pé. Por alturas do exame, dormia num quarto improvisado, num anexo da casa dos seus pais, para não incomodar quem dormia o sono dos justos. Chegado o dia da prova, pôs o despertador para as quatro da manhã e, entre atalhos nas matas, noite escura, com a sacola às costas, apanhou uma camioneta em Meruge. Chegou a Coimbra eram 9 da manhã, fez o exame, foi aprovado. Contudo, só mais tarde convenceria os pais a autorizarem-no a vir para Lisboa. Para tanto, foi decisivo um acaso: num belo dia de Maio de 1946, recebera uma carta do irmão, já instalado na capital, a comunicar-lhe que mudara de emprego, pelo que havia uma possibilidade de trabalho, ocupando o seu lugar no Instituto Sidónio Pais. Ao chegar a Lisboa, após a viagem mais longa que até então fizera na vida, Luís tinha a aguardá-lo o irmão Manuel, na estação do Rossio. «Tudo para mim constituía uma maravilha», diz o jovem de Travancinha, concelho de Seia.
Luís iniciou funções como vigilante dos alunos internos do Instituto Sidónio Pais, o monumental edifício que ainda hoje vemos em Xabregas. Nas férias grandes, os alunos iam para a terra, excepto os dos Açores e da Madeira, devido ao que hoje chamaríamos os «custos da insularidade»; também Luís regressava a Travancinha, para voltar a Lisboa no início de Outubro, como prefeito do Instituto, acompanhando os alunos ao Liceu Gil Vicente, à Escola Comercial Patrício Prazeres, à Escola Industrial Afonso Domingues. A caminho para o Gil Vicente, Luís Assunção não perdia a passagem pela Feira da Ladra, começando a conhecer as graças da Lisboa oriental, da Penha de França à Senhora do Monte. Uns vestígios da boémia possível, na Ginjinha, na Tendinha, no Café Chave d’Ouro, até no Parque Mayer. Incomodou-o sobremaneira o facto de, nos alvores da década de 1950, terem arrasado uma parte da Mouraria e do Martim Moniz, «um verdadeiro disparate e um atropelo à conservação do património do país», diz, acrescentando: «os interesses capitalistas têm segredos deveras insondáveis».
A vida foi prosseguindo, como acontece com todos. As férias em Travancinha, o regresso de comboio a Lisboa já tarde na noite. Sempre que se apeava na estação do Rossio, Luís tinha um ritual: ir comer um «Bife à Suíça», na pastelaria com o mesmo nome. Mais tarde, passou a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia, estudando à noite. Em 1948, fez exame de admissão no Instituto Comercial de Lisboa, mas o tempo escasseava para o estudo, feito já depois das aulas, ou aos domingos, o dia de folga. Ao tempo, não havia quaisquer facilidades para estudantes-trabalhadores; quando muito, a condescendência de um chefe mais generoso. De segunda a sábado, às 7h30, Luís ia a pé da Rua da Rosa ao ISCEF, onde entretanto fora admitido; às 9h45, tomava o eléctrico ao fundo da Calçada da Estrela, parando no Largo Camões, de onde subia a pé a Rua da Misericórdia, e assinava o ponto às 10h15. Encerrado o expediente, por volta das 18h00, jantava e estudava com os colegas, no Café Chiado. Os alunos que trabalhavam já estavam cansados a essas horas, beneficiando da ajuda de um ou outro estudante ordinário, que assistira às aulas teóricas e lhes poderia dizer que matérias foram aí versadas. «Não havia nenhum incentivo para auxiliar quem desejasse estudar e sair da mediania», lamenta-se Luís, sem amarguras nem ressentimentos. As suas memórias, aliás, são um exemplo de reconciliação com a vida, sem mágoas, só saudades. Luís Borges Assunção, entretanto, casou, na Capelinha das Aparições, em Fátima, sendo o matrimónio celebrado pelo irmão do novo, o Pde. Francisco. Foram viver para uma casa de renda limitada, na Avenida de Roma, e não fizeram lua-de-mel, tanto mais que nenhum dos membros do casal tinha automóvel, um luxo inacessível a quem começara a trabalhar no Metropolitano de Lisboa.
Aos 32 anos, ao fazer a última prova do seu curso, uma oral com Adérito Sedas Nunes, Luís Borges de Assunção foi aprovado no exame. Saiu dali a correr até uma cabine telefónica, para fazer duas chamadas: uma, para o seu chefe no serviço, que o ajudara a concluir a licenciatura; outro, para a mulher, Maria de Lourdes, que obteve essa tarde dispensa ao emprego. E assim, numa tarde de Julho de 1957, um casal foi de comboio na linha do Estoril. Alegres, a celebrar. Lancharam em Paço de Arcos.
 
António Araújo  

sábado, 26 de novembro de 2016

As Grandes Lições da Crise.

 
 
 






  Desde 1929 que o mundo inteiro é flagelado pela mais formidável crise económica que jamais se presenciou. Durante meses e meses quási se não tem ouvido falar de outra cousa que não sejam os maus negócios, o desemprego, a sobreprodução, o grande mal-estar e os sofrimentos por que se está passando. Milhões e milhões de homens têm a pouco e pouco ficado sem trabalho, arrastando consigo muitos mais milhões de seres, que deles dependem, a privações incríveis.

 

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Lisboa, 1987.

 
 

Antonio Muñoz Molina (n. 1956)
 
 
 
          Não é fácil escrever sobre Lisboa, como o comprova este livro. O Inverno em Lisboa, de Antonio Muñoz Molina (n. 1956), publicado entre nós em 1988, com tradução de Carlos Martins Pereira, não é, definitivamente, um grande livro. Para mais, torna-se difícil situar a acção; a dado passo, fala-se em 1984, mas não estou certo de que seja esse o ano em que o Inverno de Molina passou pela capital portuguesa. Dar-se-á, a título indicativo, a data da primeira edição espanhola, 1987. Vamos agora a alguns trechos, onde se adivinha o Terreiro do Paço e o Cais do Sodré.
 
 
 
Tinha imaginado uma cidade tão enevoada como San Sebastian ou Paris. Ficou surpreendido com a transparência do ar, a exactidão do cor-de-rosa e do ocre nas fachadas das casas, a uniforme cor avermelhada dos telhados, a estática luz dourada que perdurava nas colinas da cidade com um esplendor de chuva recente. Da janela do seu quarto, num hotel de corredores sombrios onde toda a gente falava em voz baixa, via uma praça de janelas iguais e o perfil da estátua de um rei a cavalo que enfaticamente apontava para o Sul. Comprovou que, quando lhe falavam depressa, o português era tão indecifrável como o sueco. E também que os outros o compreendiam facilmente a ele: disseram-lhe que o sítio onde queria ir era muito perto de Lisboa. Numa estação grande e antiga, apanhou um comboio que logo entrou por um túnel muito comprido: quando saiu dele começava a anoitecer. Viu bairros de prédios altos onde começavam a acender-se luzes e que depois não o apanhavam. Às vezes, passava junto da janela o clarão de luz de outros comboios que iam para Lisboa. Exaltado pela solidão e pelo silêncio, olhava para rostos desconhecidos e lugares estranhos como se contemplasse aqueles pontinhos amarelos que aparecem na escuridão quando fechamos os olhos.
(…)
Uma tarde, Biralbo deu por si fatigado e perdido num arrabalde de que não poderia voltar a pé antes que se fizesse noite. Hangares de tijolo vermelho, abandonados, alinhavam-se junto ao rio. Nas margens, sujas como esterqueiras, havia, atiradas para as ervas, velhas maquinarias que pareciam ossadas de animais extintos. Biralbo ouviu um ruído familiar e distante como de metal a arrastar-se. Um eléctrico aproximava-se devagar, alto e amarelo, oscilando entre os carris, entre os muros enegrecidos e os pedaços de sucata. Subiu para ele: não entendeu o que lhe explicava o condutor, mas, para onde quer que fosse, tanto lhe fazia. Lá longe, sobre a cidade, brilhava nebulosamente o sol do Inverno, mas a paisagem que Biralbo atravessava tinha um cinzento de entardecer chuvoso. Ao fim de uma viagem que lhe pareceu enorme, o eléctrico parou numa praça aberta ao estuário do rio. Tinha fundas arcadas encimadas de estátuas e frontões de mármore e uma escadaria que entrava pela água. Sobre um pedestal com elefantes brancos e anjos que levantavam trombetas de bronze, um rei cujo nome Biralbo nunca chegou a saber segurava as rédeas do seu cavalo, levantando-se com a serenidade de um herói contra o vento do mar, que cheirava a porto e a chuva.
Ainda era dia, mas as luzes começavam a acender-se na alta e húmida penumbra das arcadas. Biralbo passou por um arco com alegorias e escudos e a seguir perdeu-se por ruas que não tinha a certeza de ter visto antes. Mas isso acontecia-lhe sempre em Lisboa: não conseguia distinguir entre o desconhecido e a recordação. Eram ruas mais estreitas e escuras, cheias de fundos armazéns e fortes cheiros portuários. Caminhando por uma praça grande e gelada como um sarcófago de mármore em que brilhavam sobre o pavimento os carris curvados dos eléctricos, por uma rua em que não havia nem uma única porta, apenas um muro ocre com janelas gradeadas. Entrou numa ruela como um túnel que cheirava a cave e a sacos de café e andou mais depressa ao ouvir nas suas costas os passos de outro homem.
Tornou a dar voltas, possuído pelo medo de que o estivessem a seguir. Deu uma moeda a um mendigo sentado num degrau que tinha junto de si uma perna ortopédica, perfeitamente digna, cor de laranja, com uma peúga aos quadrados, com correias e fivelas de metal e um sapato apenas, muito limpo, quase melancólico. Viu tabernas sujas com marinheiros e portas de pensões ou indubitáveis prostíbulos. Como se descesse por um poço, sentia que o ar se tornava mais espesso: via mais bares e mais rostos, máscaras escuras, olhos rasgados, de pupilas frias, faces pálidas e imóveis em pátios de lâmpadas vermelhas, pálpebras azuis, sorrisos de lábios crispados que seguravam cigarros, que se curvavam para o chamar das esquinas, dos umbrais dos clubes com portas acolchoadas e cortinas de veludo púrpura, debaixo dos letreiros luminosos que se acendiam e apagavam embora ainda não fosse noite, desejando a sua chegada, anunciando-a.
Nomes de cidades ou de países, de portos, de regiões longínquas, de filmes, nomes que brilhavam, desconhecidos e convidativos, como as luzes de uma cidade contemplada de um avião à noite, agrupadas em florações de coral ou cristais de gelo. Texas, leu ele, Hamburgo, palavras vermelhas e azuis, amarelas, violeta-pálido, finos traços de néon, Ásia, Jacarta, Mogambo, Goa, cada um dos bares e das mulheres oferecia-se-lhe sob uma invocação corrompida e sagrada, e ele caminhava como se percorresse com o dedo indicador os mapas-mundo da sua imaginação e da sua memória, com o antigo instinto de medo e perdição que sempre tinha reconhecido nesses nomes.
 
Antonio Muñoz Molina