quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Lisboa, 1950.

 
 
Alan Villiers (1903-1982) 
 
 
A Campanha do «Argus» é um livro mítico – e bem merece esse estatuto. Escrito por Alan John Villiers (1903-1982), um australiano aventureiro, escritor, fotógrafo e lobo dos mares, autor de inúmeras obras sobre viagens oceânicas, o livro partiu de um convite feito, em 1949, pelo então embaixador de Portugal em Washington, Pedro Theotónio Pereira. No ano seguinte, Villiers embarcava a bordo do Argus, tendo The Quest for the Schooner Argus sido publicado em 1952. Traduzido para português por José da Natividade Gaspar, seria publicado pela Livraria Clássica Editora, com o título A Campanha do «Argus». Uma viagem aos bancos da Terra Nova e à Groenlândia. Felizmente, o bom senso e o bom gosto da Cavalo de Ferro devolveram-no ao nosso convívio (aqui). Publicar-se-á, em duas partes, o capítulo de abertura do livro, relativo aos preparativos da epopeia.
 
Fotografia de Alan Villiers
Museu de Ílhavo

 
 
 
 

O Embaixador tinha-me escrito dizendo que o meu navio seria o lugre Argus, esclarecendo que se tratava dum belo veleiro de quatro mastros, construído havia pouco mais de dez anos. Largaria de Lisboa, para os bancos e a Groenlândia, nos princípios de Abril. Se as coisas lhe corressem bem, estaria carregado de peixe e pronto a regressar aí por fins de Agosto. Se eu não quisesse efectuar a viagem completa, podia ir-me embora quando quisesse, embarcando no Gil Eanes, navio de assistência, que me levaria à Terra Nova, de onde era fácil tomar o avião e regressar a Inglaterra, via Gander. O Gil Eanes passaria todo o Verão dando assistência à frota.
Vi logo o Argus, quando meu paquete subia o Tejo, naquela luminosa manhã de Março. Estava ancorado, com outros lugres, em frente de Belém, no fundeadoiro a par da torre de onde partiram tantos ilustres navegadores portugueses.
Fiquei encantado à primeira vista. Era um belíssimo navio de aço com quatro mastros, maravilhosamente lançado, de mastreação alta, robusto de casco e de aparelho e com uma proa tão fina como a de um yacht de regatas oceânicas. Era pois aquela beleza de lugre, pintado de branco, um pescador de bacalhau? Até custava a acreditar! Ali estava, tranquilamente, rodeado por uma dúzia de navios semelhantes, de três e quatro mastros, alguns de madeira e outros de aço. As colinas verdes de Lisboa formavam um lindo pano de fundo à frota, que poisava levemente sobre as amplas águas do doirado Tejo, nessa luminosa manhã em que o paquete Andes me trouxe de Inglaterra.
Vi o Argus na doca seca, um ou dois dias depois, quando estava limpando o fundo e recebendo pintura para a campanha. A sua robustez e graciosidade de linhas patenteavam-se bem ali na doca e encantou-me a curva airosa do longo convés. O navio devia ser rápido, seguro e capaz em todo o sentido para aquela vida a que estava destinado.
Os lugres bacalhoeiros portugueses pescavam agora também no estreito de Davis, bem dentro do círculo árctico, desde que o bacalhau começara a faltar nos bancos da Terra Nova e que os barcos de arrasto tinham entrado em acção. Em 1950, uma campanha bacalhoeira consistia numa viagem, primeiro ao Grande Banco e, depois, ao estreito de Davis, onde a pesca demorava tanto tempo quanto o permitiam as condições do Oceano Árctico. Se o navio não estava, nessa altura, ainda cheio, ia pescar, uma vez mais, ao largo da Terra Nova, nos tempestuosos meses do Outono. Não era brincadeira nenhuma seis ou sete meses a bordo dum veleiro, em tais condições. O novo Argus tinha cerca de 700 toneladas, o que não era muito para as paragens da Groenlândia, nem para qualquer outro ponto do feroz Atlântico Norte.
Alguns homens, delgados, ágeis e queimados do sol, estavam ocupados a dobrar pesadas velas de lona de algodão. Reparei que executavam o trabalho a preceito.
Diariamente, durante o mês de Março, iam chegando a Lisboa mais lugres, reunindo-se para aprontarem para a campanha que ia começar e também com o fim de estar presentes à cerimónia da bênção. Eram trinta e dois veleiros, ainda assim, os que se preparavam para tomar parte naquela árdua empresa – trinta e um lugres, de panos latinos, todos de três ou quatro mastros, e um último e único lugre-patacho. Estava ali a última frota mercante à vela de toda a Europa. Eram estes os últimos puros e autênticos veleiros fazendo vida no alto-mar, aguentando o seu trabalho sem subsídios nem artifícios, e pescando à maneira tradicional, com linhas e anzóis, por meio daqueles barquitos de remos, chamados dóris.
(…)
As pequenas fragatas do porto de Lisboa, com um só mastro, curiosamente caído à ré, levavam-lhe o sal e os mantimentos em fartas quantidades, e homens descalços, de cestos à cabeça, despejavam o sal no seu enorme porão. Âncoras sobresselentes, cabos, velas, massame, tintas, óleo, novelos de linha de pesca e caixotes com anzóis do melhor aço, madeira para fazer bancos nos dóris, varas para mastros e retrancas, atados de remos, fardos de luvas de borracha e de nepas para o manejo das linhas, caixas de facas, botas de mar, tabaco, barris de carne salgada, farinha, feijão, azeite, azeitonas, chispes de porco, vinagre, vinho tinto, aguardente – todas estas coisas o navio carregou e outras mais. Todos os dias, chegavam mais aprestos a bordo. A sua arrumação não era fácil tarefa para a pequena tripulação fixa, porque a maioria dos pescadores ainda não chegara. Só apareceriam quando o navio estivesse pronto, um ou dois dias antes de larga, e precisamente a tempo de receberem a bênção.
Um dia, o Argus moveu-se no Tejo para regular as agulhas, assunto de importância capital para qualquer navio de pesca do Árctico. Acompanharam-no os seus navios-gémeos Creoula e Santa Maria Manuela, ambos tão robustos, airosos e bem carregados como ele o estava. Naquela manhã, soprava uma aragem fresca. Os três belos lugres dançavam um pouco no Tejo, enquanto faziam proa para cada ponto da agulha, até ao máximo de precisão, levando içados os sinais do código a pedir aos outros navios que não estorvassem tal manobra. Brilhava um sol esplêndido que fazia reluzir os costados brancos dos lugres.
Cada dia que passava, iam-se aprontando mais e mais os navios para o momento da largada. E as ruas de Lisboa viam, outra vez, os pescadores do Árctico, nos seus característicos trajos – a camisa de flanela aos quadrados – e quanto mais garrida, melhor! –, calças escuras às riscas (às vezes, também de xadrez), alpercatas, ou botas de mar até à coxa, com o cano virado pelo joelho, e boné de fazenda, ou sueste e barrete preto, como os que os homens da Nazaré usam a vida inteira. Esta era a indumentária. Alguns traziam casacos, sempre às riscas, e de fazenda escura. Com tais calças de fantasia e os jaquetões escuros, alguns pareciam, à primeira vista, vestidos mais à moda de banqueiros do que de pescadores do Grande Banco! Mas bastava atentar neles um momento para se saber quem eram. Ombros largos, maxilares fortes e decididos e o rude olhar dos homens desacostumados da rotina da cidade; o andar despreocupado e bamboleante e um certo jeito de encarar de frente; tais particularidades tornavam-nos tão facilmente diferentes de toda a outra gente como o eram só pelo trajar as suas próprias mulheres.
Durante uma ou duas semanas, os vestidos característicos das mulheres das povoações do norte e do sul de Portugal viam-se, ao entardecer, pelas ruas de Lisboa. Porque, de dia, as mulheres deixavam-se estar a bordo dos navios, ao pé dos maridos e, amiúde, com os filhos também, pois isso é privilégio concedido àqueles bons homens, que levam metade do ano separados das famílias. Os pescadores do Árctico e suas mulheres davam facilmente nas vistas, em terra, tal qual como os seus navios eram diferentes de todos os outros ancorados no rio.
Entretanto, em cinquenta lugarejos e aldeias disseminados pela costa portuguesa, esposas, mães e irmãs carinhosas davam afanosamente os últimos pontos nas roupas de mar dos seus homens. As vistosas camisas de xadrez e toda a garrida roupa interior não são produtos comprados na loja. Tais peças são feitas nos próprios lares dos pescadores, com material comprado no armazém da sua cooperativa, na Casa dos Pescadores.
Em milhares de lares, mulheres carinhosas preparam diligentemente essas roupas, que já sabem que não tornarão a ver tão depressa. Nas casas brancas e ornadas de flores, do povoado de pescadores da Nazaré, onde os rapazes, ainda pequenos, despem as roupas infantis para envergar o traje dos pescadores – camisas de xadrez, calças tufadas e barretes iguais aos dos seus pais –; em centenas de casas da distante Fuzeta, no encantador Algarve, a ensoalhada província das amendoeiras, do sul de Portugal, que nos tempos em que havia reis em Portugal tinha a categoria de um reino à parte; nos grandes portos de pesca de Lisboa, Porto, Aveiro, Figueira da Foz, e Viana do Castelo; nas habitações dos capitães em Ílhavo, vila próxima de Aveiro, de onde vão mais capitães para os bancos do que de qualquer outra parte do mundo; nas aldeias de Furadouro, Murtosa, S. Martinho do Porto – em todas estas e em muitas outras mais, as mulheres trabalhavam concentradas na sua tarefa. Um homem precisa de bom agasalho, na pesca do Árctico. Os armadores fornecem botas de mar, suestes e alguns pares de luvas de lã, mas um pescador, que não pode contar com nenhumas facilidades para a lavagem de roupa, precisa de uma boa reserva de camisas, peúgas e mais roupa de baixo.
Encanta-os o uso da flanela aos quadrados e usam-na em tudo: até nas quentes toucas, com buracos para as orelhas, que eles trazem debaixo dos suestes. Para as mulheres dos pescadores, dos oficiais, dos mestres, dos cozinheiros, as mães dos moços de convés – para todas, o mês de Março é a época de costuras sem parar, o momento de equipar os navios e as tripulações.
 
Alain Villiers   
 
 
(Continua)
 
 
 
 

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