domingo, 6 de novembro de 2016

Portugal, 1969.

 
Caetano Veloso (1942-)
 
 
           Caetano Emanuel Viana Teles Veloso (n. 1942) esteve várias vezes em Portugal, sob o nome «Caetano Veloso». Uma delas, em 1969, quando rumava a Londres, exilado da ditadura militar. Aí, passou por Sesimbra – e por um alquimista. Vem tudo contado em Verdade Tropical (Companhia das Letras, 2002), as memórias do músico, cantor, activista e artista. Não fala muito das paisagens e das gentes, sendo talvez risíveis e até básicas as suas incursões por Pessoa e pelo sebastianismo. Mas, sendo Caetano, o seu nome basta para merecer registo. Ei-lo:
 
 

«Pescador Dormindo»
Sesimbra, 1969
Fotografia de João Mendes de Matos

 
 
 
         Quando, cerca de um ano mais tarde, saímos do Brasil rumo ao exílio londrino, passamos antes em Portugal. Meu amigo Roberto Pinho me pediu que o acompanhasse até Sesimbra, onde ele tinha um encontro com um senhor português que tomava conta do castelo medieval da colina e era tido como alquimista. Lembro de umas ovelhas de chifre revirado que se punham perto do velho como se fossem animais de estimação. E do mar muito azul rodeando de longe as muralhas de pedra. A certa altura, Roberto pediu-me que eu cantasse “Tropicália” para o alquimista ouvir. Não lembro se cantei ou se apenas recitei as palavras da letra. Mas estou seguro de que comuniquei a íntegra do texto ao português. Ao final, este olhou-me com uma expressão exultante e, com uma piscadela cúmplice a Roberto, apresentou a mais insólita interpretação de “Tropicália” de que eu já tivera notícia. Tudo na letra era tomado à letra e valorado positivamente. “Eu organizo o movimento”, por exemplo, significava que, não necessariamente eu, mas alguma força que podia dizer “eu” através de mim, organizava um importante movimento; e “inauguro o monumento no planalto central do país” era clara e meramente uma referência a Brasília como realização da profecia de são João Bosco. E pronto. Nenhum traço de ironia era notado, nenhum desejo de denúncia do horror que vivíamos então. Não lembro se sublinhei o trecho “uma criança sorridente feia e morta estende a mão” quando tentei explicar-lhe que minhas motivações para compor a canção tinham sido o oposto de um ufanismo, mas é certo que tentei discutir o assunto. Ele, que a princípio me parecera não imaginar outra razão possível para que eu escrevesse tal canção a não ser a certeza feliz de um destino grandioso para o Brasil, não se mostrou surpreso diante dos meus protestos e, rindo para Roberto e repetindo “eu sei, eu sei…”, arrematou: “O que sabem as mães sobre os seus filhos?”. Entendi que ele estava certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do que eu. Isso não era novidade: eu já sabia então que as canções têm vida própria e que outros podem revelar-lhes sentidos que seu autor não tinha suspeitado. Tampouco era-me de todo desconhecido o aspecto positivo que aquela canção dava à representação do Brasil. E, mais que isso, eu não era inocente do fato de que toda paródia de patriotismo é uma forma de patriotismo assim mesmo – não eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que satiriza, e não satiriza facilmente o que odeia. Mas que aquele homem não quisesse levar em consideração o fato de na minha canção eu estar descrevendo um monstro, que confirmara sua monstruosidade agredindo-me a mim –, era algo que, à medida que ia acontecendo, ia-se-me tornando mais fascinante do que irritante.
         Mas também eu não era de todo estranho aos interesses que uniam meu amigo Roberto e aquele suposto alquimista. O ponto de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva, o intelectual português que participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de Brasília, e que, como já contei, durante o período dos grandes projetos culturais da Universidade da Bahia no final dos anos 50 e início dos 60, organizou e dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador. Esse pensador heterodoxo disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração pessoana, e com isso atraiu algumas pessoas que me pareceram atraentes. Não foi sem pensar nelas que incluí a declamação do poema de Fernando Pessoa no happening da apresentação do “É proibido proibir”.
         Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas, nem como estudioso nem como, digamos, militante. Apenas me pareceu excitante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul numa época em que todo o mundo tentava falar em mais-valia e em teses científicas de transformar o mundo por meio da classe operária. Eu conhecia o Fernando Pessoa do “Poema em linha reta” e da “Ode marítima”. Também o do poema do outro Menino Jesus e, naturalmente, o do poeminha do “fingidor”. (“O poeta é um fingidor / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”): eram os poemas que as meninas citavam, que muita gente lia em voz alta para mim, cujos trechos eram repetidos de cor e que uma ou outra vez eu mesmo lia no exemplar de algum colega de faculdade. Sabia dos heterónimos e de algum folclore sobre sua vida, e juntava aqueles poemas ao repertório da poesia brasileira moderna (Vinicius, Drummond, Bandeira e Cecília, depois também Cabral) e isso era (com os negros de Castro lves e os índios de Gonçalves Dias mais os ciganos de Lorac) toda a poesia que eu conhecia. Com Mensagem era o Pessoa do poeminha do fingimento que se adensava. Cada peça curta era um labirinto de formas e sentidos, e, mais importante que tudo, não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas. Meu poeta favorito – e o que mais extensamente li – era João Cabral de Melo Neto. E diante dele tudo parecia derramado e desnecessário. Assim também os poemas de Álvaro de Campos – que eram os mais queridos das meninas. Mas com Mensagem eu me sentia em presença de algo mais profundo quanto a tratar com as palavras, por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de ideia parecer estar ali como uma necessidade da existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final.
         Todo o começo é involuntário
         Deus é o agente
         O herói a si assiste vário
         E inconsciente
         À espada em tuas mãos achada
         Teu olhar desce:
         “Que farei eu com esta espada?”
         Ergueste-a e fez-se.
 
         O fato de esse livro – o único que Pessoa publicou em vida na nossa língua – ter como tema a volta de d. Sebastião e da grandiosidade de um adiado destino português, enobrecia, a meus olhos, os interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mitos. De modo que, em Sesimbra, passei gradativamente do espanto de ver minha canção “Tropicália” – e a pensar o tropicalismo – também à luz da minha versão do sebastianismo.
 
 
Caetano Veloso
 

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