quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Portugal, 1866.

 
 
Hans Christian Andersen (1805-1875) 
 
 
 
            A vinda de Hans Christian Andersen (1805-1875) a Portugal, em 1866, é sobejamente conhecida (ver esta notícia, por exemplo). O «diário» dessa visita já foi, inclusivamente, publicado em Portugal, pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, com tradução e notas de Silva Duarte (sendo mais tarde reeditado numa excepcional colecção de livros do jornal O Independente). Mas, como creio, esse livro está esgotado, justifica-se a transcrição desta breve passagem:  
 

Sintra, 1866

 
 
 
Que transição, ao entrar em Portugal, vindo de Espanha! Era como sair da Idade Média para entrar no presente. Via à minha volta casas acolhedoras caiadas de branco, matas cercadas por sebes, campos cultivados e nas grandes estações podia-se sempre tomar qualquer refresco. Aqui haviam chegado também, como uma brisa, as comodidades dos tempos modernos da Inglaterra, ou do restante mundo civilizado. De uma beleza pitoresca, com lindas casas brancas no meio da verdura, luzia ao alto, na nossa frente, a primeira cidade portuguesa, Elvas.
         Fez-se noite escura e chuvosa. Perto da meia-noite passámos por Abrantes e pouco depois chegávamos à vila do Entroncamento, onde o comboio vindo da fronteira tem ligação com a linha principal entre Lisboa e Coimbra. Na estação encontrámos um hotel verdadeiramente luxuoso e moderno. Pelo menos, assim me pareceu, pois na viagem desde Madrid havia perdido o hábito de todas as comodidades. O Rei de Portugal, no regresso da sua viagem a Espanha, aí havia pernoitado. Tinha uma grande e bonita sala de jantar e servia boa comida e bebidas frescas. Até chá e vinho do Porto se podia tomar. Estávamos, pois, no meio da civilização.
         Depois de uma excelente ceia, o meu companheiro e eu arranjámos lugares para dormir, o melhor que pudemos. Toda a carruagem estava à nossa disposição e durante a viagem não fomos incomodados pela entrada de mais nenhum outro passageiro. Lá fora caía a chuva mas em breve deixámos de a ouvir, mergulhando em profundo sono. De madrugada estávamos nas proximidades de Lisboa. O rio Tejo alargava-se, formando como que um grande lago. Seguíamos ao longo das suas margens, o céu aclarou e o sol ia romper.
         Cerca das quatro horas chegámos a Lisboa, onde o meu prestimoso companheiro de viagem me arranjou uma carruagem e pediu ao cocheiro que me conduzisse ao Hotel Durand, na praça perto da Rua das Flores, precisamente em frente dos escritórios da casa Torlades O’Neill, àquela hora cedo de mais para bater à porta.
         As ruas estavam ainda completamente desertas. No hotel toda a gente dormia, e quando, depois de muito martelar a aldrava, consegui falar com um criado, este informou-me que todos os quartos estavam ocupados, mas que na sala de estar poderia, entretanto, repousar numa cadeira. Não me agradou tal coisa, como também não me agradou ter sabido que ninguém havia na casa e nos escritórios de O’Neill na cidade. Estava a residir a meia milha de Lisboa, na «Quinta do Pinheiro». Era domingo e não viria com certeza à cidade, informaram-me ainda.  
         Tive, pois, mesmo fatigado como estava, de procurar o mais depressa uma carruagem que lá me levasse. Arranjada esta, seguimos por praças e ruelas com casas de aspecto pobre, para fora de portas, entre muros em ruínas, pela estrada de Sintra. O grande aqueduto sobre o vale de Alcântara e os muitos pomares frondosos prestavam beleza aos arredores, Camponeses e camponesas montados em burros, carros chiando sob o peso das cargas, mendigos pedindo em altos gritos à borda da estrada, davam-lhe animação.
         Por fim, virámos de uma estrada entre muros estreitos para um caminho íngreme e difícil, conduzindo a uma casa de campo de aspecto antigo e isolada, numa das elevações mais altas. Era «Pinheiro», «Pinitraeet», como se poderá traduzir em dinamarquês.

 

 

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