quinta-feira, 30 de junho de 2016





impulso!

100 discos de jazz para cativar os leigos e vencer os cépticos !

 

 

# 25 - BUD POWELL

 

 

 

Fotografia de Robert James

 
O jazz como genuína tragédia? Bud Powell é o exemplo perfeito. Para se apresentar em estúdio no dia 23 de Fevereiro de 1949, o pianista implorou ao hospital psiquiátrico onde há 15 meses fora internado contra-vontade, que lhe dessem um dia de soltura, com a promessa de estar de volta à hora do jantar. Semanas antes haviam-lhe concedido autorização para ensaiar no desafinado piano da enfermaria, na condição de dar um recital de beneficência.
O resultado da gravação – com Ray Brown no contrabaixo e Max Roach na bateria, melhores companheiros não poderia haver – é apropriadamente considerado de histórico. Sabendo das trevas emocionais donde aflorou, o tema “Celia”, por exemplo, nas suas oscilações entre melancolia e urgência, na inquieta e precária alegria que desprende, ganha uma doutro modo velada qualidade comovente.
          Duas vezes Bud Powell se envolvera, embriagado, em brigas, duas vezes fora atingido na cabeça e em ambas de tal modo estrebuchou contra a polícia, que esta achou melhor acalmá-lo com internamento psiquiátrico. Nos escassíssimos registos clínicos que se conhecem, os médicos não hesitaram em diagnosticar como mania da perseguição os protestos de Powell contra o racismo a que o sujeitavam. O álcool, isto sabia-se, endiabrava-lhe o juízo, mais do que o vulgar. Mas – e agora ver-se-á melhor dando dois passos atrás – singrava para o final a sofrida década de 40, Bud Powell era negro e insubmisso, uma conjunção alarmante para o siso da época, e a confraria do bebop, com a qual ele afinava, salientava-se como uma notória súcia de intoxicados. A terapia recomendada para o surto de instabilidades mentais nesse pós-guerra (faltariam umas décadas para se “descobrir” o stress traumático) era curta e grossa: uma descarga eléctrica aplicada nas têmporas operava milagres no comportamento dos pacientes. Deste tratamento Powell nunca recuperaria e degradou-lhe a existência até ao fim, resumida a 41 anos.
 
 

Jazz Giant
1956 (2004)
Verve - UCCV-9165
Bud Powell (piano), Ray Brown, Curley Russell (contrabaixo), Max Roach (bateria)
 
 
Quando Powell apareceu no Minton’s o banco do piano parecia já ocupado por Thelonious Monk. Mas a influência do Grande Taciturno era bem maior do que a sua efectiva participação no bebop e, em abono dos factos, refira-se ter sido ele mesmo quem convidou Powell a integrar-se no género. A intuição de Monk provou-o, mais uma vez, como genial, se ele rendilhava puzzles harmónicos que deixavam os músicos a coçar a cabeça de estupefacção, preferindo, por isso, isolar-se ao fim da noite, depois de terem terminado os sets, a experimentar umas linhas que só ele sabia que destino seguiam, já Bud Powell mostrava o condão de transitar, no espaço de um par de compassos, de umas trevas de lua nova para uma sucessão de acordes solares como alguém que se vê subitamente livre. Isto, e uma técnica formidável – um dos raros capazes de acelerar sobre a partitura de “Cherokee” dir-se-ia que até próximo da barreira do som – garantiram-lhe acolhimento e estatuto no selectoclube dos pioneiros do bebop.
A memória de Bud Powell é hoje quase tão precária como foi a sua vida. No início dos anos 90, no dealbar do CD, cada editora por onde ele passou (Verve, Blue Note e RCA) lançou caixas com as gravações completas. Encontrá-las agora, sobretudo na Europa, não é evidente. Imperecível continua “Jazz Giant”, obra que lhe deu vulto, precisamente a que proveio da sessão do dia 23 de Fevereiro de 1949. É pena que nela não conste o tema emblemático (inclusive pelo título) de Powell, “Un Poco Loco” – não se pode ter tudo...
 
 
 
José Navarro de Andrade
 

 

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