segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

Equilíbrio instável.

 

Fotografias de António Araújo


São as sombras de Lisboa.

 
Fotografia de António Araújo

Santa Cruz, Califórnia.

 



Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida
 

Grounds for Sculpture, Hamilton, New Jersey.

 


Fotografias de Onésimo Teotónio de Almeida

Pierre-Auguste Renoir, Le déjeuner des canotiers, 1881

Bosambo, de Edgar Wallace.

 
Edição de 1936

São Cristóvão pela Europa (76)

 



 
Igreja de São Tiago e São Cristóvão de La Villette, Paris, 30 de Setembro de 2018.
 
 
A Igreja de São Tiago e São Cristóvão de Paris foi construída no Século XIX em estilo neo-gótico.
No exterior, dois nichos abrigam os santos patronos da igreja sendo que a estátua de São Cristóvão não exibe os atributos habituais do Santo.
          No interior uma estátua (difícil de fotografar) e um vitral.
  
José Liberato

domingo, 30 de dezembro de 2018

O sol quando nasce

 
Lisboa, 30 de Dezembro de 2018
Fotografia de António Araújo

Mão portuguesa nos jardins de Bomarzo?

 
Bomarzo, fotografia de António Araújo
 


Elefantes no restaurante Abadia, Palácio Foz, Lisboa
 
 
 
 
         Nestas andanças animalescas pelo mundo, é tempo de o dizer sem receio: há uma manada de elefantes no subsolo de Lisboa. Escondidos de olhares indiscretos, tímidos e subterrâneos, conheci-os graças à generosidade da Helena Matos e do Pedro (obrigado!). Estão nos Restauradores, nas caves do Palácio Foz (ou Palácio Castelo Melhor). Aí funcionou em tempos a Pastelaria Foz, inaugurada em Abril de 1917, o Restaurante A Abadia e o Clube dos Makavenkos, tendo este último sido fundado em 1884, ainda no reinado de D. Luís I (ver aqui). Não é esta a altura indicada para falar da maçonaria boémia dos Makavenkos, cabendo tão-só salientar que, na decoração dos interiores, deparamos com as cabeças de alguns elefantes africanos. Talvez isso se deva ao facto de as primeiras reuniões dos Makavenkos terem tido lugar, sob a égide de Francisco Grandella, no palacete do conde das Antas, a Santa Isabel, onde no quintal se encontravam vários animais, pelo que o local era designado de «Jardim Zoológico». Aí jantavam os makavenkos todas as sextas-feiras. Mas também não é improvável que as cabeças dos elefantes estejam lá com um puro intuito decorativo, em harmonia com demais apontamentos vegetalistas e zoológicos que abundam no local. Sem grandes esforços de teorização – e, menos ainda, de competente investigação – fica portanto a nota de mais uns elefantes em Lisboa, desta feita bem escondidos.
 


 



      Mas hoje trazemos ao convívio dos leitores algo mais antigo e sério, Bomarzo. Título de um assombroso livro de Manuel Mujica Lainez, tão da paixão do amigo Diogo Belford, e de que aqui poderemos falar um dia mais detidamente, até a propósito ou despropósito de elefantes & rinocerontes. O livro fala do duque Pier Francesco Orsini (1523-1583), ou Vicino Orsini,  e da sua maneirista  «Villa das Maravilhas» (hoje, «Parque dos Monstros») que edificou nos arredores de Roma, após o seu segundo casamento. Da tarefa, iniciada em 1552, foi encarregue Pirro Ligorio, assessorado no desenho dos jardins por Giacomo da Vignola (1507-1573). Fui lá uns meses, em digressão de puro espanto. De animais no parque a única coisa a recear são as víboras, muito presentes na região do Lácio desde tempos imemoriais – e, mais ainda, na «Villa das Maravilhas», frondosa e de muita água. Terras etruscas.
         Entre as figuras de Bomarzo, monstruosas e fascinantes, surge um portentoso elefante em basalto, que na tromba transporta um legionário romano tombado, porventura morto (inclusive, não é descabido supor que tenha sido morto pelo próprio do elefante ou esteja prestes a sê-lo). Além de o elefante ser símbolo antigo de Eternidade, a alusão aos exércitos de Aníbal é evidente e apontada em qualquer guia turístico do parque, mesmo nos mais simples e básicos (cf. Bomarzo, ed. Soc. Giardino di Bomarzo, s.d., p. 24), devendo lembrar-se que o Cartaginês andou muito perto dali, onde saqueou tesouros etruscos. Deve também recordar-se que Cipião, o Africano, foi proprietário de um dos primeiros e maiores jardins romanos de lazer/prazer e que, na visão italiana do século XVI, Cipião e os elefantes sempre andaram a par.


Pier Francesco Orsini (Retrato de um gentil-homem no seu estúdio, por Lorenzo Lottto,
Galeria da Academia, Veneza)


 
O que não se fala tanto é que o duque Orsini era parente do Papa Leão X e foi a este pontífice com nome de felídeo que D. Manuel, além de um rinoceronte naufragado à vista de La Spezia (perto das famosas e mui turísticas Cinqueterre), enviou um célebre elefante, Hanno (ou Annone).
Sobre Hanno há um livro inultrapassável, dos melhores que li em vida. Já falei dele bastas vezes, suplicando uma vez mais, até ora debalde, que os editores portugueses o traduzam e publiquem cá: de Silvio A. Bedini, The Pope’s Elephant (Carcanet Press, 1997). O volume de informação que Bedini reuniu em arquivos de todo o mundo é coisa de estarrecer – e a escrita em que tudo vai escrito é tão cativante e envolvente que, repito, é dos melhores livros que li em dias de vida. Feito o elogio, uma reserva: parece-me que Bedini, tão escrupuloso e atento a pormenores, descartou com pressa excessiva a hipótese de o elefante de Bomarzo ter algo a ver com o paquiderme Hanno. A hipótese é arriscada, mas de tomo: significaria que houve mão portuguesa nos jardins do duque de Orsini, no fantástico parque de Bomarzo que – é bom lembrá-lo – até há um par de décadas esteve votado ao abandono, sendo pasto de cabras e de ovelhas, sendo salvo da destruição, em larga medida, devido aos esforços de um casal extraordinário, Giovanni Bettini e Tina Severi, que o adquiriram na década de 1950 e o restauraram com desvelo e carinho (cf. Marco Maria Melardi, Bomarzo i suo imiti, Folklore, storia, letteratura e cultura di massa, Viterbo, Sette Città, 2015, em esp. p. 11). Cocteau deixou-se fascinar por ele, Antonioni filmou-o, Dalí visitou-o, em deambulação surrealista que até está registada em vídeo e, anos depois, em 1980, faria uma escultura, Elefante Espacial, que está defronte da gare de Florença, como sabeis (e há outro igualzinho em Hamburgo, já agora):  
 
 

 
Salvador Dalí, Elefante Espacial, Florença
          
 
       Segundo Silvio Bedini, o elefante de Bomarzo nada tem a ver com Hanno, enviado por D. Manuel I de Portugal, pela singela razão de que se trata de um elefante africano. Para alicerçar tal afirmação baseia-se em dois brevíssimos artigos surgidos na década de 1950 nas páginas da Architectural Review: um, de S. Lang, «Bomarzo», Architectural Review, Junho de 1957, pp. 427-430; outro, de Collin Davidson, «Bomarzo», Architectural Review, Setembro de 1954, pp. 178-180. Com o devido respeito, é pouco, muito pouco. Sobre Bomarzo têm-se escrito dezenas e dezenas de obras, há um livro de referência de H. Bredekamp, Vicino Orsino und der Heilige Wald von Bomarzo, Worms, 1985 (de que existe tradução italiana de 1989). Tirando esse livro, que é caríssimo, existem obras de grande qualidade e bastante desenvolvidas sobre o tema. Entre elas, o informadíssimo estudo de Enrico Guidoni, Il Sacro Bosco di Bomarzo nella Cultura Europea, inserido na colecção Quaderni di Bomarzo, Vetralla, David Ghaleb Editore, 2006. Posterior à obra de Bedini, é certo, mas os dados que avança, neste particular, não são propriamente desconhecidos.
         O que afirma Enrico Guidoni?
- desde logo, que a ideia de esculpir um elefante em tamanho natural, foi directamente inspirada num modelo indiano, em particular no Templo do Sol de Konark em Orissa, onde até a figuração de um guerreiro tombado se assemelha à do Parque dos Monstros (sobre aquele templo, cf. José Carlos Gomes da Silva, Orissa. Antropologia e literatura de viagens, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, s.d., em esp. pp. 105ss);
 
 
Elefantes do Templo de Orissa, Índia
 
Bomarzo, fotografia de António Araújo
      
 
       - ainda assim, e apesar dessa fonte inspiradora, a referência histórica mais evidente do elefante de Bomarzo é ocidental, o qual constitui muito provavelmente uma alusão ao vício da soberba. O elefante que mata o soldado de Roma é protagonista de uma «vitória de Pirro», sucesso ilusório que em breve se esfumará;
         - o motivo do elefante com a torrinha encontra-se noutros lugares, como nas armas da família Fantuzzi, cuja data não conseguimos identificar, e na decoração exterior do palácio desta família em Bolonha, cuja construção começou em 1517, com a fachada iniciada em 1521, ou seja, anterior mas muito próxima do início dos trabalhos de edificação dos jardins de Bomarzo;
 
Armas da família Fantuzzi
Palácio Fantuzzi, Bolonha

    
     - a par disso, e como já se referiu, há uma alusão clara a Aníbal e aos seus elefantes, aqui convocado a vários títulos: um dos amigos, conselheiros e confidentes de Orsini era Annibal Caro; por outro lado, o irmão rival de Vicino, Maerbale Orsini, tomava em combate o nome de Aníbal. E a alusão a um episódio da Antiguidade romana, claro está, é óbvia numa obra arquitectónica italiana de meados do século XVI.
         O facto de, a crer em Enrico Guidoni (ob. cit., p. 61) e em M. Berberi (Bomarzo un giardino alchemico del cinquecento, Bolonha, 1999, pp. 222-229), a estátua ter sido inspirada num templo da Índia (desconhece-se que bases têm estes autores para tal afirmação) põe significativamente em causa a tese de que aquele elefante é africano. Aliás, se o elefante está figurado em tamanho natural – e eu vi-o, com estes olhos – o seu tamanho deveria ser muito maior tratando-se de um elefante africano. Quem o observe conclui, com grande probabilidade, que o elefante de Bomarzo tem muito mais parecenças com os paquidermes de Oriente do que com os africanos.
         Mas há mais. Segundo Guidoni (ob. cit., p. 10), a estátua do elefante de Bomarzo deve ser confrontada com uma gravura existente na Storia di Milano, de S. Corio, de 1565, e com uma gravura de Francisco de Hollanda (ou d’Olanda) datada de 1539. Guidoni não o especifica mas tudo indicia tratar-se de uma gravura constante do Álbum dos Desenhos das Antigualhas, que está no Escorial mas de que existe uma edição portuguesa, com introdução e notas de José da Felicidade Alves (Lisboa, Livros Horizonte, 1989, pág. 42; sobre este ponto, cf. Maria Teresa Viana Lousa, Francisco de Holanda e a Ascensão do Pintor, doutoramento em Belas Artes, 2013, pág. 39, disponível aqui, e Rogéria Olimpio dos Santos, O Álbum das Antigualhas de Francisco de Holanda, 2015, pp. 75ss, disponível aqui). 
 
 
Desenho de Francisco de Hollanda
 
 
 
Pois bem, a gravura do português Francisco de Hollanda que Guidoni refere, elaborada em 1539 ou 1540, é, nada mais nada menos, do que o esboço de epitáfio que o Papa Leão X compôs, do seu próprio punho, para o seu amado Hanno, que lhe fora enviado por D. Manuel I: Sob este ingente monte estou sepultado eu, ingente elefante, que o Rei D. Manuel, depois de ter vencido o Oriente, a Leão Décimo enviou cativo… Agora repare-se, com olhos de ver, no elefante de Bomarzo e no desenho de Francisco de Hollanda. As orelhas do elefante, em especial as suas pregas. As semelhanças entre ambos são flagrantes (mesmo que tenhamos de reconhecer que as orelhas do elefante de Bomarzo, pela sua dimensão e formato, também poderiam ser as de um elefante africano, mas repare-se igualmente na dimensão e formato da cabeça).




 
Bomarzo, fotografias de António Araújo


 
Daí que não seja temerário propor a ideia de que uma das fontes inspiradoras do elefante de Bomarzo foi o desenho de Francisco de Hollanda e que o elefante, ao invés de ser africano, é possivelmente baseado no histórico Hanno, do qual se fizeram na época dezenas de desenhos, poemas, mil e uma coisas. O elefante fazia parte da paisagem visual, política e cultural de Roma quando Francisco de Hollanda por lá andou, poucos anos antes de Orsini iniciar a construção do seu sacro bosco (cf. Giulio Cesare Maggi, Leggende e mito del sacro bosco, 2ª ed., Milão, La Vita Felice, 2011, pp. 49ss).
 

Desenhos do elefante Hanno, originalmente atribuídos a Rafael
mas actualmente atribuídos a Giulio Romano
Ashmolean Museum, Oxford



      Não é nova, nem original, a tese de que o elefante de Bomarzo seria Hanno, enviado por D. Manuel na histórica embaixada chefiada por Tristão da Cunha. Até a bendita Wikipedia o refere (aqui), ainda que num artigo pejado de erros, como a atribuição a Rafael da autoria deste desenho (actualmente, pensa-se ser de Giulio Romano) ou a confusão entre o elefante Hanno e o elefante Salomão, que só posteriormente deu entrada na cena da História (e mereceu livro de Saramago). Ou ainda a referência a uma «Fonte do Elefante» em Bomarzo, quando o que ali existe é um monólito em forma de estátua, jamais uma fonte. Quem quiser ter a ficha de Hanno numa base de dados de elefantes, também existe na Internet, estando aqui, onde poderá saber tudo o que diga respeito a elefantes.  

    Mesmo admitindo tratar-se de uma obra ficcional, mas baseada em funda investigação histórica, o livro de Mujica Lainez não hesita em dizer que o elefante de Bomarzo era Hanno, mandado de Portugal, e que as suas figuras humanas são Abul, o cornaca indiano, e Beppo, criado do príncipe Orsini: «Contei a história de Hanno tão prolixamente porque, muitos anos mais tarde, em Bomarzo, na época em que eu decorava o Bosque dos Monstros, pretendi que nele se eternizasse a memória do elefante de Abul, e mandei que uma das rochas fosse esculpida seguindo o modelo da sua forma.» E mais adiante: «Para começar resolvi que o rochedo situado atrás do Ninfeu, de um dos lados da larga plataforma superior, estaria destinado a evocar Abul e o elefante Hanno. Deitei logo mãos à obra, e Zanobbi executou o desenho correspondente, que mostrava o escravo em cima da testa do paquiderme, cujo lombo tinha em cima um castelo. (…) Quando começavam a entrever-se as linhas grosseiras do desenho na efígie monumental, lembrei-me de que a pétrea massa que subsistia diante da cabeçorra do animal podia metamorfosear-se num guerreiro vencido, agarrado poderosamente pela tromba. Esse guerreiro seria Beppo, morto por Abul. Enorme, o elefante perfilou-se nas anfractuosidades do parque de Bomarzo. Foi a minha obra inicial» (Manuel Mujica Lainez, Bomarzo, trad. de Pedro Tamen, Lisboa, Sextante Editora, 2008, pp. 542-543).
         Veja-se, aliás, a figuração do elefante de Bomarzo na obra de finais do século XVI da autoria de Giovanni Guerra (1544-1618) em Libri di imaggini, disegni e incisioni di Giovanni Guerra, conservado na Galeria Albertina, em Viena:

Desenho de Giovanni Guerra

 
 
         No Álbum das Antigualhas, Francisco de Holanda voltou a desenhar um elefante, obviamente o elefante Hanno, tal como este existia na Villa Medicis, em Roma...
 
Francisco de Hollanda, desenho da Villa Médicis, Roma
 
 
      … e a sua obsessão pelos elefantes era tanta que, regressado de Itália, propôs a construção no Rossio de uma fonte monumental com o busto de D. Manuel amparado por quatro paquidermes – o que, se tivesse sido edificado, teria ficado lindo mas lindo. Ora vede, a partir da reprodução do Códice da Ajuda constante do livro de Jorge Segurado, Francisco d’Ollanda, Lisboa, Edições Excelsior, 1970, pp. 101-102:
 

 

          Resumindo e concluindo, há várias fontes possíveis para o elefante de Bomarzo. Há quem afirme, como é o caso da historiadora de arte Liane Lefaivre, que a congfiguração feral e o desenho dos jardins – e crê-se que as suas estátuas – se baseiam no romance Hypnertomachia Poliphili (A Batalha de Amor em Sonho de Polifilo ou apenas O Sonho de Polifilo), de 1499, atribuído ao dominicano Francesco Colonna. Curiosamente, diz-se que o elefante que está em Roma, na Piazza della Minerva, se baseia igualmente numa ilustração constante de o Sonho de Polifilo. No entanto, há uma diferença substancial, no porte e na forma, entre esse elefante e o que está em Bomarzo….
O Sonho de Polifilo, 1499

 
Bernini, Obelisco da Piazza della Minerva, 1667
 
         Em síntese, e havendo fontes apontadas para o paquiderme de Bomarzo que me parecem muito duvidosas (como a do templo de Orissa, na Índia), e sendo necessária uma indagação mais profunda sobre se o desenho de Francisco de Hollanda terá circulado na Itália do seu tempo a ponto de ser visto pelos arquitectos e paisagistas que conceberam Bomarzo, essa hipótese não é implausível. De igual modo, determinar com precisão sobre se o elefante de Bomarzo é indiano ou africano afigura-se tarefa votada ao insucesso. O que parece seguro são duas coisas: (1) – quem concebeu o elefante, à falta de um modelo in vivo, teve de ter alguma fonte de inspiração em imagens e desenhos que circulavam na Itália da altura; (2) – e, na Itália da altura, as imagens que mais abundavam de elefantes eram as de Hanno, o proboscídeo papal, seja pela pena de Francisco de Hollanda seja pela de outro ou outros artistas. É extremamente provável que, mesmo sem a intermediação de Hollanda, o elefante Hanno tenha influenciado os criadores de Bomarzo, ou seja, houve quase de certeza mão portuguesa no parque do Lázio, a longa manus d’el-rei Dom Manuel I, o Venturoso.
 
António Araújo